Em uma aula, na semana passada, fui inquirido por um aluno: “Professor, o senhor sabe que há um projeto que pretende eliminar vários cursos nas universidades públicas, inclusive o curso de filosofia?”.
Imaginei que em algum momento, inevitavelmente, essa questão surgiria em alguma de minhas aulas. Ela expressa uma preocupação legítima, especialmente motivada por dúvidas sobre o futuro campo de trabalho desses estudantes que estamos formando.
Há outras razões também, mas essa me parece uma das mais presentes nas conversas entre os estudantes. O interessante é que essa questão me foi colocada no exato momento em que aqui na UFPEL uma professora do curso de história foi às redes sociais para conclamar seus simpatizantes a hostilizar, agredir e, inclusive, matar todos os que não se alinham à sua ideologia (de esquerda: aquela que sustenta o suposto “golpe de 2016” e a “prisão política” de sua deidade, o hoje justamente encarcerado Lula).
LEIA MAIS: Professora feminista ameaça alunos “escrotos”: “quero arrebentar fascista a pau”
Aos olhos dela e dos seus pares, todo aquele que não concorde com eles é “fascista”. Esse é um termo geral que eles usam para ‘liberais’, ‘conservadores’, ‘estudantes que realmente se dedicam aos estudos e se preocupam com o futuro’, ‘professores que preparam suas aulas com diligência’, ‘trabalhadores preocupados em pagar suas contas no final mês’, ‘empreendedores’, etc.
Quando não usam o termo ‘fascista’ eles usam um termo mais edulcorado: ‘coxinha’. A escolha do termo, penso, reflete seu grau de ódio em um dado momento. Mas mesmo no uso que eles fazem do termo há uma imprecisão. Não creio que eles próprios tenham clareza sobre o que exatamente pretendem denotar com esse conceito de ‘fascista’. A motivação deles é apenas agredir o adversário. Portanto, demandar alguma coerência deles, mesmo que conceitual, é perda de tempo. E cabe notar que o próprio termo é historicamente “vago”, como deixa claro um dos mais eruditos estudiosos desse conceito, Stanley George Payne.
Mas para a referida “professora” e seus pares o termo serve, em qualquer ocasião, para atacar aquele que não concorde com o que eles sustentam, algo que em lógica é conhecido como falácia ad hominem: se não posso atacar o argumento do oponente, então o ofendo atacando sua pessoa. E o uso que ela e seus pares fazem desse termo visa causar um efeito emotivo. Afinal, não parece bom algo (nesse caso, alguém) que possa ser chamado de “fascista”, não é mesmo?
Logo, esse é um termo que eles “tiram da manga” como um trunfo, dado não terem algo mais adequado para oferecer, como argumentos, por exemplo. Mas prosseguindo na descrição da manifestação da referida professora, ela segue sua incitação ao ódio (à agressão, ao assassinato) declarando:
“quero arrebentar um fascista a pau” ... “recomendo em fascistas só avoadora na cara, nos peitos, nas bolas, na alma... fascistas tem de morrer um a um... e me inscrevo para essa missão... tô de saco cheio de pacifismo e bom comportamento... morte aos fascistas”.
Essas são algumas das “pérolas” da referida professora. Não parece ser algo escrito por alguém que leciona em uma universidade. Mas é uma professora de história. Ou seja, estamos nas humanidades. E esse é precisamente o ponto.
LEIA MAIS: Em defesa das Ciências Humanas
Tendo isso em mente, respondi ao aluno que minha posição sobre o fim do curso de filosofia (e dos demais cursos referidos) era paradoxal. Em primeiro lugar, e mais importante, considero que as ‘Humanidades’ são parte fundamental, o principal pilar, das universidades. Mas estou falando, aqui, dos fundamentos da universidade.
Em uma breve incursão histórica identificamos os princípios que estimularam o surgimento e desenvolvimento das universidades na Europa Medieval. Vemos como as escolas, associações, corporações de ofícios, se transformaram nesse patrimônio de valor incomensurável para a humanidade, a saber na Universitas Magistrorum et Scholarium.
E vemos, também, que ela surge ligada às Ciências Humanas, que à época eram, de fato, Humanidades, diferentemente das “desumanidades” de hoje. Nesse sentido, elas estavam preocupadas (as universidades e Humanidades) com a formação humana. Entendia-se que a nossa plena realização humana envolvia formação. Por essa razão algumas “artes” surgiram, foram sistematizadas e desenvolvidas, como as “artes liberais” (Trivium e Quadrivium), descendentes da anterior ideia de Paideia, a qual remonta a autores gregos antigos como Pitágoras e Platão.
Não apenas isso, a universidade surge preocupada com a ‘Verdade’ (bem como com o ‘Bem’, com a Moral’, com a ‘Sabedoria’, etc), algo presente em muitos lemas de universidades centenárias, por exemplo na Europa e nos EUA. Lemas como “Veritas - Iustitia – Libertas”, “Die Wahrheit wird euch frei machen”, “Wissen schafft Brücken”, “In publica commoda”, “Treveris ex urbe Deus complet dona sophiae”, “Pour la Patrie, les Sciences et la Gloire”, “Amica veritas”, “Veritas et Justita”, “Sapientia Et Scientia”, “Veritas”, “Lux et veritas”, nos mostram precisamente os pilares sobre os quais foram erigidas as universidades, as quais brotaram da preocupação com tais valores expressos em seus mottos.
LEIA MAIS: Ciências Humanas, quem precisa delas?
Não apenas isso, elas assoalharam o caminho para a civilização. Assim, o desenvolvimento das “artes liberais” no medievo foi uma forma de resgatar a ideia Greco-romana de Paideia, de ‘formação’.
Por essa razão são fomentadas aquelas “artes” que, segundo autores como Agostinho, aperfeiçoam a civilização (primeiramente aprimorando o indivíduo). Não apenas isso, as sete “artes liberais” (gramática, lógica e retórica, no Trivium, aritmética, geometria, música e astronomia no Quadrivium) tornariam o indivíduo livre. Dessa forma, não se trata de apenas um uso instrumental dessas “artes”. O propósito é, em certo sentido, mais abstrato: tornar-nos livres e mais humanos (o que nos conduz à felicidade, entendida aqui em um sentido aristotélico/tomista, isto é, como “plena realização humana”). Essa formação seria essencial à formação universitária.
Portanto, a formação nas “artes liberais” envolve, em grande medida, o desenvolvimento de nossas habilidades cognitivas e morais. Somente após desenvolvermos essas habilidades estamos prontos para a formação universitária.
Todavia, desafortunadamente, “Verdade” (como os demais conceitos que outrora inspiraram o surgimento das Universidades) passou a ser um termo assignificativo, vazio, e, mesmo, “politicamente incorreto”, especialmente em uma cultura acadêmica que fomenta o relativismo (sobretudo, e ironicamente, nas humanidades). Tais conceitos hoje repousam quase exclusivamente em seus lemas, não servindo mais como inspiração para o que se faz no interior dessas “universidades” (especialmente nas “humanidades”).
Isso faz parte da degenerescência das humanidades e, hoje, também da universidade de maneira geral, embora algumas áreas estejam, apesar de tudo, avançando no progresso de suas pesquisas. Aqui na UFPEL destaca-se a pesquisa na área da Epidemiologia, por exemplo, a qual é referência internacional, dada sua seriedade e preocupação com a Verdade.
Com efeito, a exortação ao ódio, à agressão e ao homicídio, no caso da tal professora de história, só é possível (com a leniência institucional da própria UFPEL, sob o título de “liberdade de cátedra” ou “liberdade acadêmica”) porque estamos em um processo de decadência intelectual e moral há décadas.
É somente porque a própria instituição está decaída que algo assim ocorre nela e é aceito, inclusive, pela administração superior (embora certamente a maioria dos estudantes e professores repudie tal ato: o senso moral é, afinal, parte do senso comum). Há muito tempo a universidade e as humanidades estão distantes de seus fundamentos, especialmente essas últimas.
E isso me leva ao outro aspecto de minha resposta ao aluno. Se por um lado eu defendo a importância das Humanidades na universidade, por outro compreendo as iniciativas para se eliminar tais cursos.
Embora esteja em um curso que seria afetado diretamente por tal medida, me sinto impelido pelo bom senso a conceder aos nossos algozes que eles estão certos em considerar que há desperdício de recursos públicos e tempo nas humanidades. E isso não apenas pelas universidades, mas, mesmo, por agências de fomento. Exemplos?
Em 2014 houve alguma repercussão nacional do desfecho de um evento realizado, com recursos públicos, na Universidade Federal Fluminense (UFF), intitulado “Corpo e resistência — 2º seminário de investigação & criação”.
O “evento” foi encerrado com a festa “Xereca Satânik”, na qual, dentre as diversas bizarrices ocorridas, uma militante feminista costurou a vagina após enfiar em seu interior uma bandeira do Brasil.
Além disso, temos teses e dissertações (muitas com fomento estatal) que vão desde a trajetória intelectual de Mano Brown (Unicamp), passando pela discussão das “interações homoeróticas em banheiros públicos” (UFBA), até a “grande pensadora contemporânea Valesca Popozuda” (UFF).
Basta uma breve visita a repositórios de dissertações e teses na área das humanidades, e isso nas diversas universidades (especialmente nas públicas), para que tenhamos uma ideia do atual estado de coisas. O princípio adotado nesse tipo de dissertação e tese é claro: quanto mais agressivo à inteligência e ao senso moral (e, mesmo, estético), tanto melhor. Não surpreende que isso tenha efeito na avaliação de nossas pós-graduações. Na avaliação realizada pela CAPES referente ao quadriênio 2013-2017 todas as áreas tiveram um crescimento em programas de pós-graduação de excelência, exceto as humanidades (na área de ciências humanas).
A área das “ciências” (termo que muitas vezes lhe é atribuído meramente por mera cortesia) humanas o crescimento foi “zero”. Enquanto as ciências exatas, a física, a biologia, crescem, decrescem as humanidades. Trata-se da mais abjeta estultificação dos estudantes, que são diuturnamente colocados sob discursos que vão contra seu bom senso e sua bússola moral. E tudo isso em nome de algumas ideologias e posições político-partidárias. Por essa razão abundam atualmente eventos, disciplinas, etc, sobre ‘ideologia de gênero’, ‘construção do saber” (como se não houvesse Verdade), e, é claro, sobre o suposto “golpe de 2016”, um tema mais na moda no atual momento.
LEIA TAMBÉM: Onda de cursos sobre “golpe” expõe domínio “acachapante” da esquerda nas universidades
Sem entrar no mérito do tema, o que demandaria profundo conhecimento não apenas de filosofia política, mas de direito constitucional e de outras questões atinentes ao caso e seu desdobramento na Câmara dos Deputados e no Senado Federal (muito desse processo, aliás, está descrito em Impeachment - O julgamento da presidente Dilma Rousseff pelo Senado Federal, editado em 2016 pelo Senado Federal e disponível em seu site) eis um exemplo de como “construir uma narrativa” sem qualquer preocupação com os fatos, sem qualquer honestidade intelectual.
Aqui na UFPEL, tal como está ocorrendo em outras IES, haverá um seminário sobre o tema. E ele foi intitulado justamente “O Golpe de 2016 e o Futuro da Democracia no Brasil”. Trata-se um típico evento panfletário. Aliás, curiosamente a referida professora “natural Born killer” vai participar do evento. Pergunto-me o que ocorreria se alguém decidisse participar e questionar a tese/ “narrativa” (infundada: se ela possui algum fundamento eles ainda não o apresentaram) do “golpe”.
Receberia uma “voadora” “na alma”, “nas bolas”? Seria morto? Aliás, basta vermos a programação para percebermos que o tal seminário reproduzirá o tradicional discurso sobre os males do capitalismo, da malignidade do pensamento liberal, da ardilosa conspiração das “elites”, bem como, não poderia faltar, vão discutir também questões de gênero, direitos dos povos indígenas, imperialismo estadunidense e roubo de nossas riquezas naturais, etc.
Não tenho dúvidas de que vão também defender e enaltecer a “democracia”, o “pluralismo”, a “inclusão”, os quais, aliás, não se aplicam àqueles que não comungam de suas posições. Quase todos os temas clássicos, e já nauseantes, do universo das (des)humanidades estarão lá. E tudo sob a ideia geral de um “golpe”, o qual já está assumido como dado sem necessidade de qualquer justificação. Trata-se de um dogma já assimilado. Afinal, justificar tal tese demandaria estudo, pesquisa. Logo, é mais cômodo assumir a tese que se quer, independentemente de se ela se fundamenta ou não, e, então, “construí-la”.
E tal evento foi justificado, inclusive, pela administração da UFPEL, em nome, novamente, da “liberdade de expressão”, o que aponta para um total desconhecimento do que seja “liberdade de expressão”.
Aliás, essa ideia (“liberdade de expressão”) tem sido usada como um mantra que não denota coisa alguma (sendo, aqui, um pseudoconceito - assignificativo) especialmente quando são defendidas ideias de Esquerda (notem que tal direito não vale, por exemplo, para os estudantes da tal professora, os quais teriam causado tanto ódio nela em virtude de simpatizarem com ideias liberais e não considerarem que houve “golpe” em 2016. Eles cometeram aquele “crime” descrito no livro “1984”: um Thoughtcrime).
Mas em sua longa história, a qual podemos remontar à antiguidade grega, a ideia mesma de liberdade de expressão sempre esteve ligada a outras ideias fundamentais: “busca pela verdade” e “responsabilidade”. Noutros termos, temos, sim, liberdade de expressão. Mas temos esse direito em nossa “busca pela verdade” (a qual não é simplesmente o que gostaríamos que fosse o caso: muitas vezes a verdade conflita com o que queremos), e a ela está conectada a “responsabilidade” pelo que dizemos. Isso exclui, obviamente, discursos de ódio, como o da citada professora.
Há, pois, uma diferença entre um discurso de ódio e o uso da liberdade de expressão. Uma coisa é usarmos nossa liberdade de expressão para argumentarmos contra o sistema de cotas raciais, por exemplo. Outra coisa bem diferente é discursarmos em defesa da escravidão, do racismo. Apenas um psicopata não vê a diferença, tal ocorre quando é demandada a morte daqueles cujas ideias não se aceita (repudiando o “pacifismo”, nos termos da própria professora).
Nesse caso, da psicopatologia, não se pretende combater ideias, mas causar a morte daqueles que as possuem e defendem. Isso é psicopatologia pura e simples, o que aponta não apenas para a corrupção de algumas mentes, mas também das instituições que sustentam essas mentalidades.
Tais indivíduos e, eventualmente, instituições, seguem rigorosamente alguns princípios que encontramos em “1984”, de George Orwell: “He who controls the past controls the future. He who controls the present controls the past.” “War is peace. Freedom is slavery. Ignorance is strength.”
Trata-se de simplesmente criar uma narrativa e torná-la aceitável .. assentá-la no imaginário popular, especialmente do acadêmico (que acabará influenciando o senso comum em algum momento. Trata-se, como podemos depreender das palavras da tal professora, de incitar ao ódio e à violência como forma de gerar a paz ou algum outro bem (nos termos de Orwell esse é o “duplipensar”: “Doublethink means the power of holding two contradictory beliefs in one’s mind simultaneously, and accepting both of them”).
Notem que boa parte desses cursos - licenciaturas - forma professores. Qualquer ideia que se oponha a certas teses configura um “Thoughtcrime”: um crime de pensamento. Esse é o “delito” do suposto “fascista” (ou “coxinha”). Ele comete um Thoughtcrime. E logo será objeto de perseguição pela Thinkpol (Thought Police), a “polícia do pensamento”. Nesse momento parece, pelas palavras da dita professora e seus seguidores, que tal crime deve ser passível de pena capital (a qual, curiosamente, eles consideram – e nisso estamos em acordo – não se aplicar a criminosos homicidas).
Assim, as Humanidades, que pavimentaram o caminho para o avanço civilizatório, são, hoje, ironicamente, a causa de retrocesso nesse processo civilizatório. Em verdade, hoje elas colocam em risco os pilares da civilização ocidental, tendo já causado diversas rachaduras em seus pilares.
Assim, os acontecimentos nessas áreas nas últimas décadas deveriam servir para que resgatássemos, e reafirmássemos, os seus fundamentos. Voltemos aos clássicos, ao que é perene, às “artes liberais”, voltemos aos pilares da civilização. Ou fazemos isso ou nos aprofundaremos na barbárie vigente.
Tal aprofundamento na barbárie me faz considerar que o fim das “humanidades” pode ser a salvação da Humanidade. Ou o adiamento de seu fim. Dito de outra maneira, ou esses acontecimentos nos conduzem a uma reflexão imparcial ou as humanidades se tornam indefensáveis. Eis em que consiste o caráter paradoxal de minha opinião.
* Carlos Adriano Ferraz é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Doutor em Filosofia pela PUC-RS, fez estágio doutoral junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da State University Of New York (SUNY) e foi Professor Visitante da Universidade de Harvard.
Boicote do agro ameaça abastecimento do Carrefour; bares e restaurantes aderem ao protesto
Cidade dos ricos visitada por Elon Musk no Brasil aposta em locações residenciais
Doações dos EUA para o Fundo Amazônia frustram expectativas e afetam política ambiental de Lula
Painéis solares no telhado: distribuidoras recusam conexão de 25% dos novos sistemas