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“Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos.” Assim a Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 26.3), o primeiro e possivelmente mais importante documento de todo o sistema internacional, introduz a primazia educacional dos pais. No que diz respeito à tutela da família, das crianças e ao próprio direito à educação, este princípio da primazia da educacional dos pais é, como se verá, uma constante em todas as normas internacionais de direitos humanos. E é precisamente este princípio que induz a conclusão de que a educação domiciliar é um direito humano.
A liberdade ou direito – expressões empregadas de forma intercambiável em diferentes normas – dos pais de garantir aos seus filhos educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções é previsão encontrada na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San Jose; art. 12.4), no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 18.4) e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 13.3).
Numa abordagem antropológica personalista (ser humano como ser racional e relacional), simplesmente não há como separar o aspecto intelectual dos aspectos moral e espiritual do ser humano, de maneira que garantir primazia quanto aos últimos implica necessariamente reconhecer primazia quanto ao primeiro: o florescimento humano integral, responsabilidade primordial dos pais quanto a seus filhos, pressupõe o pleno desenvolvimento moral, espiritual e intelectual de forma integrada. Numa leitura personalista do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, portanto, é dos pais a responsabilidade primordial pelo desenvolvimento desses três aspectos fundamentais do florescimento de seus filhos.
Aliás, “responsabilidade primordial” dos pais “pela educação e pelo desenvolvimento” dos seus filhos é exatamente o que assegura a Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 18.1). É de fato muito significativo que a norma internacional por excelência sobre a proteção e os direitos das crianças articule, em vista do melhor interesse dos menores, a afirmada primazia educacional dos pais.
É não menos significativo que nesta última (Convenção sobre os Direitos da Criança; art. 28.1.a), assim como no Pacto sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (art. 13.2.a), convivam a responsabilidade estatal de universalização de acesso à educação com a primazia educacional dos pais. Na verdade, isso somente deixa claro que se trata de esferas de atuação distintas, e que a responsabilidade do Estado em garantir acesso à educação básica para todos não pode impedir que os próprios pais eduquem seus filhos em casa.
Portanto, na perspectiva do sistema internacional de proteção dos direitos humanos não há qualquer conflito entre a responsabilidade estatal de garantir acesso universal à educação e a responsabilidade primordial dos pais de garantir a educação e o desenvolvimento integral de seus filhos, a partir da qual a educação domiciliar é compreendida como um direito humano. Não há, reforça-se, nenhuma incompatibilidade, quer do ponto de vista lógico (trata-se de coisas conceitualmente distintas), quer do ponto de vista jurídico (as normas não são antagônicas entre si).
E a ausência de conflito lógico-jurídico entre acesso universal de responsabilidade estatal e educação domiciliar como expressão da primazia educacional dos pais é afirmada pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), no relatório da sua missão especial à Alemanha no ano de 2006.
O relator especial, Vernor Muñoz Villalobos, embora assumidamente um “forte advogado da educação pública”, tendo recebido “reclamações sobre ameaças de remoção dos direitos dos pais que escolhem métodos de educação domiciliar para seus filhos” (na Alemanha, a educação domiciliar é proibida desde a época do III Reich), afirmou expressamente que a educação “não pode ser reduzida à mera frequência à escola” e, consequentemente, que a educação domiciliar deve ser considerada um método válido diante do art. 13 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (já citado acima). Diante disso, a conclusão do relatório recomenda expressamente à nação alemã que “as medidas necessárias sejam adotadas para garantir que o sistema de educação domiciliar seja adequadamente supervisionado pelo Estado, sustentando desse modo o direito dos pais de empregarem esta forma de educação quando necessária e apropriada, tendo em mente os melhores interesses da criança”.
Somado à análise das normas internacionais realizada no início, o relatório especial da ONU ilumina a compreensão de que a proibição da educação domiciliar configura uma grave violação de direitos humanos. Tão séria é esta violação que as famílias educadoras alemãs podem ser consideradas, nos Estados Unidos, como um “grupo social particular” para fins de concessão de asilo político.
Mas por que tudo isso importa no Brasil? Isso importa porque, por aqui, as normas internacionais de direitos humanos têm, segundo entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, status de supralegalidade – o que significa que, embora ainda estejam abaixo da Constituição, estão acima da lei. Diante disso, deduzem-se três conclusões.
A primeira é que a educação domiciliar como direito humano decorrente da primazia educacional dos pais reconhecida pelas normas internacionais deve ser considerada, no Brasil, como um direito supralegal – posicionado, portanto, hierarquicamente acima das leis que estabelecem matrícula obrigatória em instituição de ensino (art. 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente).
A segunda é que, não havendo o Supremo Tribunal Federal considerado de forma expressa a tese da educação domiciliar como um direito humano, o julgamento do Recurso Extraordinário 888.815 simplesmente não pode ser tomado como um precedente quanto ao ponto.
Já a terceira conclusão está ligada ao caráter negativo do direito à educação domiciliar (direito que não admite violação da comunidade política), recentemente sumariado por aqui num ensaio que tratou do assunto na perspectiva da lei natural. A proibição à prática da educação domiciliar deve ser considerada uma séria injustiça (por contrariar a lei natural) e uma grave violação de direitos humanos (por contrariar a primazia educacional dos pais consagrada pelo sistema internacional). Por isso, a mera inexistência de lei sobre a educação domiciliar no Brasil – fundamento determinante da decisão do Supremo – não pode ser considerada como impeditiva à prática da educação domiciliar. Ainda que as famílias educadoras brasileiras não tenham, segundo o Supremo Tribunal Federal, um “direito público subjetivo” (ou seja, um direito de exigir prestações materiais do Estado), elas estão respaldadas, segundo a ordem internacional, por um direito humano negativo (ou seja, um direito oponível a qualquer tentativa estatal de proibir a prática).
O caráter negativo do direito humano à educação domiciliar é também fundamental para iluminar o debate legislativo acerca do tema: a legislação deve apenas reconhecer este direito, sendo descabido, assim, pretender-se uma regulamentação minuciosa da atividade pela comunidade política. Se hoje as dezenas de milhares de famílias educadoras brasileiras, embora amparadas por um direito humano e natural negativo, estão numa situação precária de informalidade em razão da falta de lei, é importante perceber que sua integração à formalidade será inversamente proporcional à quantidade de restrições existentes em qualquer lei que venha a ser aprovada sobre o assunto.
Em conclusão, como a adesão de famílias brasileiras à prática é um fenômeno social concreto, crescente e irreversível, é urgente que a sociedade também se conscientize de que se trata de um direito humano negativo.
Não existe educação onde não há liberdade!
* Carlos Eduardo Rangel Xavier: Mestre em Direito, Advogado Público, membro da Associação Nacional de Educação Domiciliar e autor do livro “Educação Domiciliar, um Direito Humano Negativo: Uma abordagem a partir da lei natural”.