Um dia recebi a newsletter de uma ONG em meu email com o seguinte texto:
“Bom dia! :)
Vamos começar com uma boa notícia? O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu não reconhecer o ensino domiciliar, também conhecido como homeschooling, no Brasil.”
No dia 12 de setembro de 2018, para decepção de milhares de famílias educadoras brasileiras e para todos os que acreditam na liberdade para educar, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o reconhecimento do direito à Educação Domiciliar, por falta de legislação que ampare a prática.
Sei que a ONG em questão defende fortemente a interferência estatal na educação; logo, não fiquei propriamente surpresa. No entanto, não pude deixar de sentir pesar ao ler que eles explicitamente celebraram a decisão do STF como uma “boa notícia”.
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Em artigo publicado um dia depois, justificaram seu contentamento com uma das mais surradas justificativas contra a Educação Domiciliar: “não podemos retroceder na conquista histórica de um espaço de formação democrática. Muito pelo contrário: é essencial que toda a sociedade, em toda sua diversidade, se engaje na melhoria da escola e da Educação Básica Pública.”
Tratarei da questão da escola pública como “espaço de formação democrática”, teoricamente ameaçada pelos praticantes da Educação Domiciliar, em um próximo artigo.
Foco aqui na crítica de que práticas educacionais que frequentemente priorizam a autonomia individual e a transmissão de valores privados, como a Educação Domiciliar, tenderiam a pôr em risco a melhoria da escola e da Educação Básica Pública.
Desinformação
Para os que acreditam nessa tese, o reconhecimento do direito de educar em casa legitima um descomprometimento das famílias educadoras com o bem-estar da sociedade. A escolha pela educação individualizada colocaria em risco a melhoria da escolarização da coletividade, representada pela população em geral.
Ora, dizem os críticos, se a qualidade da escola, principalmente da escola pública, é baixa, motivo pelo qual as famílias educadoras não a julgam adequada aos seus filhos, que esta seja melhorada, e não abandonada. Ou seja, o que se critica aqui é que, em nome de prover melhor educação individual, famílias negligenciam o compromisso com a sociedade, deixando de fortalecer a escola pública.
O problema desta tese é que ela não se sustenta. Diversos estudos (1, 2, 3, 4, 5) demonstram que a forma mais adequada de fortalecer a escola pública é fomentar, através de financiamento público, um mercado educacional livre e diverso que atenda à diversidade de demandas e que permita que apenas as melhores escolas sobrevivam. Ou seja, a defesa da escola pública não passa pelo desrespeito à liberdade de educar em casa. Passa, sim, pela competição, pelo mercado.
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É a competição pelos recursos disponíveis que faz com que escolas melhorem. É o que vem acontecendo com grande sucesso em muitos estados dos Estados Unidos e em países, como a Estônia, 3° colocado no ranking do PISA, à frente inclusive da badalada Finlândia. O Chile e seu sistema de vouchers é um exemplo na América do Sul: escolas competem pela preferência dos alunos, o que leva à melhoria das escolas públicas. Como não querem perder alunos, as escolas passam a funcionar com mais eficiência.
A liberdade educacional, assim como a liberdade econômica, conferem ao Chile uma democracia estabilizada com índices sociais, como IDH, e educacionais, como o PISA, muito superiores aos brasileiros. Detalhe: nem a democracia, nem o bem-estar social demostrados por esses índices estão em risco apesar de o direito à Educação Domiciliar ser reconhecido no Chile.
Desonestidade
Se obrigar pais e mães a matricular seus filhos em escolas garantisse qualquer avanço qualitativo de desempenho acadêmico com impacto de bem-estar para a sociedade como um todo, a educação brasileira e nossos índices sociais seriam maravilhosos.
Na verdade, o que explica o desastre da educação brasileira é justamente o fato de vivermos em um contexto de quase-monopólio de escolas públicas. A baixa qualidade da educação no Brasil se deve principalmente à falta de competição e de estímulos para que escolas sejam mais eficientes — justamente o que os estudos citados acima apontam como essencial.
Ora, o potencial desengajamento de famílias em relação a escolas, caso o direito à Educação Domiciliar tivesse sido reconhecido, nem de longe afetaria esse quase-monopólio. Mesmo nosso já existente sistema de escolas privadas não chega perto disso.
Nos Estados Unidos, país onde há o maior número de praticantes da Educação Domiciliar, o percentual dos educados em casa não passa de 4% do total de estudantes. Claramente, acusar o possível aumento no número de famílias educadoras no Brasil de afetar a “melhoria da escola e da Educação Básica Pública” é desonesto e falacioso.
Hipocrisia
Voltando ao fato de que um movimento — que se diz pela educação — celebrou o não reconhecimento da liberdade para educar. Considerou como “boa notícia” a possibilidade de que as famílias praticantes de Educação Domiciliar sejam restringidos na sua escolha educacional. Embora a defesa explícita da escola pública esteja presente no artigo em que comentam a decisão do STF, a escola privada sequer é citada, ao lado da Educação Domiciliar, como potencial ameaça à educação pública. Aparentemente, ameaça mesmo é a Educação Domiciliar.
Uma possível explicação para as escolas privadas serem normalmente poupadas desta crítica é que talvez, os filhos desses críticos — educadores, burocratas de educação e políticos — sejam alunos de escolas privadas.
Neste caso, não estariam também esses críticos mais preocupados em garantir para os seus a educação que eles julgam de melhor qualidade, assim como os pais educadores? Como justificar então a afirmação de que “é essencial que toda a sociedade, em toda sua diversidade, engaje-se na melhoria da escola e da Educação Básica Pública”? Melhor calar e celebrar a derrota alheia.
*Anamaria Camargo, Mestre em Educação com foco em eLearning pela Universidade de Hull, é diretora do Instituto Liberdade e Justiça e líder do projeto Educação Sem Estado