No meu último artigo, comentei sobre a falácia de colocar a Educação Domiciliar como risco à melhoria da Educação Pública. Neste, meu foco está no temor de que a Educação Domiciliar, a ter seu direito reconhecido, nos faça “retroceder na conquista histórica de um espaço de formação democrática”.
Este temor foi expresso em um artigo em que, por incrível que pareça, um movimento que se diz pela educação, celebra a decisão do STF de não reconhecer o direito das famílias educadoras.
O artigo inclusive conclui com a informação (contestada pela ANED) de que pais ou responsáveis que não matricularem seus filhos entre 4 e 17 anos em uma escola regulamentada poderão ser processados por abandono intelectual. Resta a dúvida se faz parte da “boa notícia” que celebraram, a possibilidade de tratar como criminosos pessoas inteiramente dedicadas ao desenvolvimento e educação dos filhos.
É preciso que se diga que este medo de perder o “espaço de formação democrática”, a escola, é bastante comum aos críticos da Educação Domiciliar. Segundo eles, o filho educado em casa “é privado de uma construção coletiva do conhecimento, que a partir do contato com a diversidade e a pluralidade de ideias, torna-se muito mais rico.” Diversidade e pluralidade de ideias. É o que eles dizem defender.
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Por um bom tempo, o debate em torno do contato com a “diversidade” se baseou menos em estudos empíricos rigorosos da Educação Domiciliar e mais em convicções ideológicas ou morais. Uma das teses jamais comprovadas cientificamente é a de que, educadas em casa, crianças estariam sendo criadas em uma espécie de “bolha” protetora, o que as incapacitaria de lidar com a realidade. À parte o preconceito da própria generalização em si, é preciso que se diga que “bolhas” e “castas” não são exatamente exceções no ambiente escolar.
Pais educadores brasileiros pesquisados citam a escola como uma instituição altamente segregadora e definidora de classes. Esta é inclusive uma das razões para alguns pais decidirem educar seus filhos em casa. A combinação de muitas crianças da mesma idade e, em geral convivendo por muito tempo, alimenta uma consciência aguda do status entre elas.
Tais castas, muitas vezes hierarquizadas, exercem poder — bullying — sobre os “inferiores”, os que não se enquadram, os que são verdadeiramente diversos. Isto é o contrário do que pregam os defensores da escola como ambiente para o aprendizado do convívio e inclusão. A verdade é que a escola como o tal “espaço de formação democrática” é bem menos comum do que querem nos fazer crer os críticos da Educação Domiciliar.
Por outro lado, não vou minimizar considerações legítimas. Em defesa de uma educação com pluralidade de ideias, muitos criticam as práticas de Educação Domiciliar em que às crianças não é permitido argumentar contra as crenças e valores familiares. Eles se referem a famílias que supostamente propagam a intolerância, baseadas em fundamentalismo religioso e resistência a visões alternativas de mundo. À falta de referências diversas, essas crianças não aprenderiam a pensar por si mesmas e fazer suas próprias escolhas; ou seja, não teriam autonomia. Para esses críticos, a educação deve se dar através da avaliação de visões alternativas e a Educação Domiciliar traz o risco de ser conduzida como doutrinação e, consequentemente impedir o aprendizado para a autonomia.
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A partir deste ponto de vista, bastante razoável, é preciso lembrar que aquele que é realmente educado para pensar autonomamente pode escolher caminhos não previstos; pode se insurgir. Uma vez considerados contra-argumentos e seus próprios princípios, pode inclusive recusar visões e narrativas impostas. Ora, em que outro lugar, se não nas escolas, impõem-se narrativas cada vez mais frequentemente?
Se considerarmos o contexto brasileiro, onde a doutrinação ideológica é percebida tanto no currículos das escolas quanto na formação docente, devemos nos questionar se de fato é a Educação Domiciliar que representa o maior risco para o aprendizado da autonomia, como acusam seus detratores.
E se os críticos da Educação Domiciliar desejam de fato garantir que crianças e jovens aprendam a exercer sua liberdade de escolha, deveriam se questionar até que ponto escolhas ideológicas, morais e religiosas são verdadeiramente possíveis no âmbito escolar. Até que ponto a escolarização vem de fato cumprindo o papel a ela atribuído de incentivar a autonomia do pensamento crítico em alunos, professores e na Academia em geral?
A verdade é que há cada vez menos espaço no ambiente escolar para o exercício do pensamento não hegemônico imposto. Em muitos desses ambientes acadêmicos que defendem a ‘diversidade’, o que tem prevalecido é a visão autoritária de um determinado tipo de ‘diversidade’ que se sobrepõe à real diversidade de pensamentos.
Felizmente, as discussões pouco fundamentadas sobre a Educação Domiciliar estão perdendo espaço. Com o passar do tempo e a expansão desta prática, principalmente nos Estados Unidos, temos à disposição um maior número de pesquisas sobre adultos que foram educados em casa. No final de 2017, foi publicada uma revisão literária bastante abrangente, contendo apenas artigos revisados por pares e o resultado sobre a desempenho acadêmico e a socialização de adultos que foram educados em casa são majoritariamente positivos.
Dentre esses estudos, destaco um que traz conclusões bastante tranquilizadoras para aqueles que temem que as pessoas educadas em casa em um contexto religioso tendam a ser intolerantes e pouco afeitas a exercer sua cidadania. Os resultados contrariam a crença de que para aprender tolerância política, um sistema de escolas públicas é essencial para todos e principalmente para aqueles mais religiosos e conservadores. O estudo conclui que, ao contrário de reduzir a tolerância política entre estudantes conservadores e religiosos, a Educação Domiciliar está associada à mais tolerância.
Quanto aos educadores brasileiros, precisam decidir se celebraram a decisão do STF de potencialmente restringir a liberdade de educar em casa, ou se defendem a autonomia de escolha. Se valorizam o que estudos acadêmicos rigorosos informam a respeito da Educação Domiciliar, ou se seguem o fundamentalismo da seita freiriana. Se defendem uma educação verdadeiramente crítica e diversa ou se desejam a manutenção da nossa escola doutrinadora e de currículo homogeneizante.
Como disse acima, quem pensa com autonomia pode se insurgir. Pode inclusive defender a ideia da ilegitimidade do estado como provedor da educação.
*Anamaria Camargo, Mestre em Educação com foco em eLearning pela Universidade de Hull, é diretora do Instituto Liberdade e Justiça e líder do projeto Educação Sem Estado
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