Aos 13 anos, a vida para Rogério Gomes da Silva mudou completamente. Dentro de uma sala de aula, de repente, tudo ficou preto. Era o prenúncio do desafio que estava por vir: um glaucoma que tiraria sua visão. Hoje, com 37, esposo, pai de duas filhas e jardineiro no Viveiro Redenção, Gomes já não enxerga mais. O glaucoma pode ter feito com que perdesse a visão, mas não o impediu de conquistar muitas coisas, incluindo se tornar um dos novos alunos do curso de história da Universidade Federal de Goiás (UFG). Para chegar lá, porém, o caminho foi longo.
“Eu estava sentado, dentro da sala de aula na Escola Estadual Dom Pedro I, em Aparecida de Goiânia. Estava olhando para o quadro e, do nada, minha visão começou a ficar turva. Minha mãe logo me levou ao médico e não deu outra resposta, era glaucoma”, conta Gomes que, 15 dias após o diagnóstico, teve de enfrentar cirurgia.
Depois disso, consultas quinzenais, tratamentos a raio laser, remédios e mais remédios. Com o passar do tempo, sua visão foi ficando cada vez mais debilitada, até que, três anos atrás, a doença tirou totalmente sua capacidade de enxergar.
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Em 2006, Gomes ficou na 2º colocação em um concurso público para entrar na Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg), onde trabalha até hoje, no setor de jardinagem, cortando garrafas pet e enchendo de terra que, posteriormente, são levadas para as praças da cidade. Embora sem enxergar, faz tudo com muita habilidade, como mostra uma reportagem da TV Record.
Dificuldade na escola
Os dias mais difíceis de Rogério, com a visão debilitada, seriam ai, na escola, onde tudo começou. Nos primeiros meses da doença, já sabendo que poderia para de enxergar, ele começou a aprender braile no Instituto Artesanal dos Cegos, em Goiânia, Goiás. “Aquilo me ajudou muito, porque havia pessoas como eu lá, éramos todos iguais, os professores me ajudavam”, conta. Meses mais tarde, a casa dos cegos teria que ser fechada e todos seriam transferidos à escola comum. Durante esse período, o estudante conta que cansou de sair das aulas chorando.
“Foi muito difícil na escola pública, não tinha ninguém para me ajudar, não havia professores de apoio, os alunos tinham preconceito. Eu perdi a conta de quantas vezes voltei pra casa chorando. Por causa disso, fui ‘empurrando com a barriga’, parei de estudar várias vezes”, relata.
Um ano estudando, outro fora da escola. Até que, um dia, ele ganhou uma bolsa para ser aluno da modalidade EJA (Educação para jovens e adultos) do Sesi-GO. “Tive professor de apoio pra mim e os próprios alunos se ofereciam para me ajudar. A realidade era muito diferente”, conta.
Gomes conseguiu concluir o ensino médio em 2017, muitos anos depois de descobrir a doença. Nesse mesmo ano, o estudante acabou perdendo o prazo de inscrição para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), e decidiu se preparar para a edição de 2018. “Eu estava tão ansioso que acho que fui a primeira pessoa que fez a inscrição”, brinca. “No dia, pedi para sair do meu serviço e ir a uma lan house. Dessa vez eu fui esperto”.
A filha Quênia Rodrigues, 17, e a esposa, Núbia, eram responsáveis por ajudar Rogério a estudar. Foi na internet, por meio de vídeo aulas e conteúdos disponibilizados pelo MEC, que ele se preparou para fazer a prova. “Elas liam para mim todas as noites. Eu fazia o serviço de casa, deixava a janta pronta para que, quando elas chegassem, pudessem me ajudar”, conta. “Às vezes, quando eu não podia ir para a aula, a professora mandava foto do quadro para minha filha e ela gravava um áudio pra mim. Eu ficava escutando a noite inteira no meu quarto”.
Apenas 1 vaga
Depois do Enem, amigos o incentivaram a se inscrever no Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Na hora de optar por um curso, ele conta que não teve dúvida do que queria: “Licenciatura em História”, matéria que sempre gostou e tirava as melhores notas. Mas não seria tão simples assim. Para a modalidade, só havia uma vaga. “Eu confesso que fiquei um pouco preocupado, até sem muita esperança de ser aprovado”, desabafa.
Divulgado o resultado, sua esposa lhe contou a conquista: “Rogério, você foi aprovado. Agora tem que ir levar seus documentos lá na faculdade”, disse Núbia, e ele duvidou: “Você tem certeza de que eu passei mesmo? Leia pra mim o resultado, por favor”. No mesmo dia, ligou para o médico para pedir o laudo e levar a documentação à UFG.
Depressão
Mesmo com a doença e as limitações, o goiano sempre foi considerado pelos amigos como um exemplo de alegria e, inclusive, como animador de festas. “Eu participava de eventos da associação dos deficientes da cidade, gostava muito. Via os velhinhos bater bengala sozinhos e ia dançar junto”, conta. “Meus amigos falavam: ‘coloca o forró que o Rogério chegou’”.
Ficar em casa, sozinho, sem poder enxergar, no entanto, quase o levou à depressão. “Quando eu fiquei cego, vi o quanto é difícil viver assim. Às vezes eu chegava em casa, trocava de roupa e sentava no sofá. Eu ficava pensando um monte de coisas naquela escuridão”, desabafa.
Depois de chegar a tomar remédios, ele decidiu buscar uma alternativa para não entrar em depressão profunda. “Eu tomei a decisão de ser uma pessoa feliz. Comecei a procurar coisas pra fazer. Eu lavava louça, lavava banheiro, varria a casa, fazia qualquer coisa pra não ficar parado. Isso me deixava em desespero, não sei nem explicar, é algo muito ruim”. Pescar e jogar xadrez também foram atividades que o ajudaram.
Andar pela cidade, sobretudo, era (e é) um desafio. O município, segundo ele, não tem boa acessibilidade. “É bem difícil sair sozinho, os lugares não são acessíveis, as pessoas me veem caindo e não falam nada. Sem falar no ônibus. Dão cotovelada, puxam, derrubam, é salve-se quem puder”, critica. “Mas quando eu penso em desistir, lembro que tem duas meninas para sustentar lá em casa, aí eu crio força para continuar”, afirma o jardineiro.
Amigo de infância
José Evangelista, 47, que também trabalha na Comurg, responsável pelo setor de vasos ornamentais, acompanha a história de Rogério Gomes há muito tempo. “Eu era professor em um projeto de Goiânia chamado ‘Trabalhando com as mãos’, que atendia adolescentes carentes e meninos de rua. Rogério era um dos alunos, e foi nessa época que ele começou a perder a visão”, conta.
O programa foi extinto e os dois acabaram se encontrando de novo da Companhia, após o concurso. Para o amigo, não faltam elogios: “Ele é uma pessoa extraordinária, de um astral muito bom, nunca deixou a deficiência limitar ele. O Rogério tem, definitivamente, luz própria”, elogia. “Decidiu estudar, foi para o Sesi, fez o segundo grau e continuou estudando em casa, se preparando para a universidade federal. A única vaga era para ele mesmo”.
“Ele me chama de ‘papai’. Todo mundo dá risada. Mas é muito bom estarmos perto e, como ele mora próximo a minha casa, vamos embora juntos todos os dias”, conta Evangelista, que também é deficiente físico, teve um reumatismo com 3 anos que o deixou com baixa estatura. “Eu posso, eu consigo, eu vou lutar. É assim que o Rogério é. E ele contagia outras pessoas ao seu redor. Temos orgulho dele”.
Professor exemplar
Sobre o futuro, ele já deixou claro que vai lutar para ser um docente exemplar. “Pelo que eu vivi, pela falta de professores de apoio, eu vou correr atrás para ser um professor que vai mudar a cabeça dos alunos. Para fazê-los entender que é preciso ajudar aqueles que têm deficiências”, afirma. “Várias vezes, na escola pública, a professora mandava a sala fazer trabalhos em grupo. Eu ficava excluído em um canto, de cabeça baixa”.
As aulas de Rogério começam em março, “estou muito ansioso, nem tenho mais unha, já comi tudo”, brinca. “Mesmo com todas as dificuldades, eu nunca desisti. Sempre disse que um dia eu iria terminar o ensino médio e entrar no ensino superior. A idade não importa, é necessário ter vontade e correr atrás”.