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SUPERAÇÃO

A improvável trajetória de um professor surdo até se tornar mestre em uma universidade federal

Hamilton já era o primeiro docente surdo concursado na UFAM. | Cortesia/Hamilton Pereira.
Hamilton já era o primeiro docente surdo concursado na UFAM. (Foto: Cortesia/Hamilton Pereira.)

Com uma trajetória marcada pela superação, o professor Hamilton Pereira, 42, coordenador do curso de Letras (Libras) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em Manaus, foi o primeiro aluno surdo a conquistar o título de mestre junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura da Amazônia (PPGSCA) – Hamilton já era o primeiro docente surdo concursado na universidade.

O professor teve sua dissertação aprovada no fim de março. O trabalho “A Interpretação da Amazônia na Língua Brasileira de Sinais – Libras: um estudo de caso no PPGSCA”, criou cerca de 50 sinais em Libras para explicar a Teoria da Complexidade de Edgar Morin. 

Em entrevista à Gazeta do Povo, o agora novo mestre fala sobre as dificuldades enfrentadas no início da vida acadêmica, sua pesquisa e o que pretende para os próximos anos. Confira: 

Antes de entrar na universidade, como era seu desempenho na escola? Quais as principais dificuldades enfrentadas? 

Em 1978 minha mãe descobriu que eu estava com meningite. Foi algo muito difícil para minha família. Em 1982, na instituição onde permaneci até a quarta série, tive contato com vários surdos. 

Mas quando troquei de escola e me tornei o único surdo da sala, encontrei muitas barreiras. Não havia intérpretes, nada era acessível e eu sequer sabia escrever. Me sentia muito sozinho. Só quando ingressei no supletivo (CEJA), em 1996, consegui progredir, já pensando no ensino superior. 

O vestibular foi outro desafio: me inscrevi na prova e chamei um intérprete para me auxiliar, mas o coordenador da faculdade desconhecia a lei 10.436/2002, que me dava direito ao intérprete e não o aceitou. Foi frustrante. 

No ano seguinte, a mesma faculdade aceitou o intérprete, mas o resultado da prova não foi bom; os avaliadores não entendiam as especificidades da Língua de Sinais (Libras) e fui reprovado. Mais tarde, porém, após uma reunião onde conseguimos esclarecer essas particularidades, 14 surdos conseguiram ingressar no curso de Pedagogia – e todos nos formamos em 2010. 

Como você se sente sendo o primeiro aluno do curso a conquistar o título de Mestre pela UFAM? 

Lembro de quando era criança, quando pensava em ser professor. Olhando agora, me sinto cada vez mais feliz, pois o mestrado e a educação em geral abriram portas que nunca imaginava – e hoje vários amigos e familiares tem orgulho do que conquistei. 

Além disso, estou mostrando para outros surdos que é possível progredir. Agradeço muito a minha orientadora e aos colegas que me auxiliaram durante todo processo. Infelizmente, a sociedade ainda enxerga o surdo como um “coitado”: mas agora, sendo formado e mestre, sinto uma satisfação indescritível. 

Qual foi a importância do programa de educação inclusiva da UFAM para a sua formação? 

Ele é desenvolvido aqui mesmo, na UFAM. Isso possibilita que estudantes pesquisem temas desta natureza. No início não foi fácil, claro, mas me acostumei. É um bom programa, pois foca nos assuntos da região. Nas minhas pesquisas, descobri o autor Edgar Morin e então absorvi este conteúdo para adaptar para minha dissertação. 

Como surgiu a ideia de abordar a interpretação da Amazônia na Língua Brasileira de Sinais na sua dissertação? 

Decidi analisar surdos indígenas do interior do Amazonas, no município de São Gabriel da Cachoeira. Mas em conversa com minha orientadora, Rosemara Staub, ela propôs que fizesse minha pesquisa em uma área até então não explorada. Foi nesse momento que decidi juntar a Teoria da Complexidade, de Edgar Morin, como base da minha dissertação, justamente porque me identifiquei com algumas características deste teórico. 

Tudo com o apoio da Rosemara, uma pessoa fundamental para minha pesquisa: sempre paciente, conseguia dirimir minhas dúvidas, me acalmava quando pensava que nada daria certo e me conduziu brilhantemente nesta trajetória. 

Além da falta de audição, existiram outras barreiras que você teve de superar para conseguir o mestrado? 

Na minha primeira aula haviam 19 pessoas na sala e eu era o único surdo. Como eram temas muito específicos, mesmo com dois e, vez ou outra, três intérpretes, eles não conseguiam dominar o conteúdo e passá-lo a mim.

Então alunos e professores se esforçaram para tornar tudo mais fácil, visto que eu não conseguia interagir: me apropriava do conhecimento, mas não conseguia compartilhá-lo. 

Mas com o tempo pude mostrar que um surdo é capaz de estar nestes espaços. Essa experiência em sala foi essencial, pois me motivava e fazia repetir na minha mente que eu seria, sim, o primeiro surdo mestre da UFAM. 

Quais seus planos para o futuro? Pretende seguir na vida acadêmica?

Quero seguir no doutorado, continuar a temática da minha pesquisa. Penso que se faz necessário a presença dos surdos nesses espaços científicos e sinto como se portas fossem abertas, para que cada vez mais os surdos possam se apropriar e construir conhecimentos nos diversos espaços da Universidade Federal do Amazonas.

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