NOTA DO EDITOR: Este artigo é um dos poucos em português sobre o impacto das pesquisas científicas na China. O levantamento inédito foi feito a partir de dados de dezembro de 2019 da plataforma Scimago. O artigo é assinado por Marcelo Hermes-Lima (UnB), que analisou os números da ciência (cientometria), e Eduardo Fox, biólogo especialista em venenos de formigas, pós-doutorando na China por dois anos (pela SCAU e CAS-Beijing). Os autores ressaltam que os números foram reunidos antes do início da pandemia.
1. Os números das publicações chinesas
A China, em termos de ciência, tem duas histórias para contar. A primeira, iniciada no final do século passado, apresentou rápido crescimento na quantidade de publicações científicas. Em 1996, a China já era o 9º lugar do mundo em quantidade de artigos indexados na base Scopus. No ano seguinte, pulou para o 8º lugar, e em 1998, passou direto para o 6º colocado. Em 2001, ficou no 5º lugar, mantendo-se nesta posição até 2003. Em 2004, pulou direto para o 3º lugar do mundo. Em 2006, chegou ao 2º lugar, com 198 mil trabalhos publicados, versus 530 mil dos EUA (1º lugar)! Essa diferença foi-se reduzindo ano a ano, e, em 2018, vimos agora 599 mil publicações chinesas contra 683 mil dos americanos.
As publicações dos EUA multiplicaram-se em 29% entre 2006 e 2018, enquanto que as da China expandiram-se 203%! (entre 2012 e 2018 as publicações americanas aumentaram apenas 3,6%, e as da China em 44%!). A China brevemente ultrapassará os EUA em quantidade de artigos publicados. Para se ter uma ideia de escala, em 2018 o Brasil publicou 81,7 mil artigos indexados na plataforma Scopus.
Contamos, assim, a história da quantidade. Vamos falar agora de qualidade. Em 1996, dentre 36 países com pelo menos 3000 publicações, a China ocupava o 35º lugar do mundo em impacto (medido por citações por publicação – CPP). Utilizando o indicador Rank score (de 0 a 10 – onde zero indica a última posição no ranking e dez a primeira), a China pontuava 0,3 naquele ano. Ocorreu um lentíssimo aumento no Rank score até 2011, atingindo 1,2 naquele ano (51º lugar dentre 58 países). De 2012 em diante, no entanto, vimos uma acelerada melhoria no impacto da ciência chinesa. Em 2013, a China ultrapassou o Brasil em Rank Score. O impacto brasileiro, que nunca foi grande coisa, vem caindo desde 2005 – ano com Rank score de 3,9, nosso melhor resultado. Em 2017, os chineses atingiram o valor mais elevado no período analisado: Rank score = 5,1. Apesar do modesto 34º lugar mundial dentre 70 países (em 2017), grande mérito pode ser visto na melhoria substancial do Rank score, que disparou a partir de valores abaixo de 1,0. Para efeitos de comparação, em 2017 os EUA estavam em 29º lugar em impacto global (Rank score = 5,9), enquanto que o Brasil estava no 58º lugar (Rank score = 1,7).
Em termos mais “absolutos” de impacto, em 1996 a China detinha 22% do CPP do 1º lugar do mundo (Suíça). Em 2011, já havia subido para 35% do CPP do 1º lugar. Em 2017, atingiu 62% do impacto do 1º lugar (CPPChina = 3,07; CPPSuíça = 4,92). Em termo comparativos, em 2017 os EUA estavam com 69% do impacto da Suíça (CPPEUA = 3,40), enquanto o Brasil detinha 45,7% (CPP Brasil = 2,25).
2. Dez áreas do saber analisadas
Tendo em vista que cada área do saber apresenta desenvolvimentos diferentes, interessou-nos conhecer em quais áreas a China apresentou a maior melhora em impacto, perfazendo o grande salto de qualidade da ciência como um todo. Como sabemos, a Ásia exerce grande influência mundial nas disciplinas de Exatas, Ciências da Natureza e Tecnologias. Assim, resolvemos analisar o impacto chinês nesses setores da produção científica, comparando entre duas épocas: o triênio 2008-2010 (anterior ao grande salto Chinês de impacto em ciência) com o triênio 2016-2018. O gráfico abaixo mostra os Rank scores médios dos dois triênios, em azul (2008-2010) e amarelo (2016-2018) para dez áreas do saber da pesquisa chinesa. São as mesmas áreas em que analisamos os Rank scores do Brasil e Portugal em um outro artigo recente.
É nítido que somente a Física não apresentou qualquer variação relevante, mantendo-se no triênio atual com baixo impacto (Rank score = 1,2). Em Geologia, houve um aumento modesto de 0,8 para 1,9, mas que mostra-se estatisticamente relevante. Quatro áreas melhoraram para valores médios acima ou próximos de 6,0 em Rank score: Química, Engenharia Química, Ciência dos Materiais e Energia.
O gráfico abaixo mostra a diferença de Rank score entre os dois triênios. Cinco áreas tiveram aumentos acima de 3,0 pontos de Rank score: Engenharia, Engenharia Química, Ciência dos Materiais, Computação e Energia (são as cinco áreas de “Tecnologias”); a área de Energia aumentou mais de 5,0 pontos! Melhorias entre 2-3,0 pontos de Rank score ocorreram em Química, Matemática e Ciências Ambientais.
Vamos agora comparar o Brasil com a China nessas 10 áreas do saber em termos de Rank score. Verificamos que em apenas duas áreas o Brasil foi melhor que a China: em Geologia e Física. São exatamente as áreas chinesas que tiveram pouca ou nenhuma melhora de impacto entre os triênios 2008-2010 e 2016-2018. Além disso, são as duas áreas que apresentaram melhor (ou “menos pior”) desempenho de impacto no Brasil, com Rank scores de 3,5. Como discutido em um artigo recente (Link 2), ficamos com 47% do CPP do 1º lugar do mundo em Geologia (Irlanda), e 55% do CPP do 1º lugar em Física (Hong Kong). É preciso analisar a linha do tempo de cada uma dessas áreas do Brasil, para saber se no passado estavam em melhor situação ou se mantiveram-se com valores baixos. Um estudo preliminar do Prof. Peterson Dayan (IESB, Brasília) detectou um crescimento real do Rank score do Brasil em Engenharia, entre 1997 e 2018. Partimos de 1,9 (valor médio) no período 1997-2000 e atingimos 2,8 (valor médio) entre 2015-2018. No caso da Física, verifiquei que o nosso Rank score médio do triênio 2006-2008 foi de 2,2. Esse valor subiu para 3,5 em 2017. O Rank score brasileiro de Geologia do triênio 2006-2009 foi de 1,9, elevando-se para 3,5 em 2017.
3. Biotecnologia na China
Tendo em vista a relevância da biotecnologia para o desenvolvimento técnico das nações modernas, resolvemos comparar o desempenho desta área entre China, Brasil e EUA. Analisamos o Rank score de impacto em dois triênios (2008-2010 versus 2016-2018) dentre países que produziram pelo menos 100 publicações na área. No triênio 2008-2010 a China já estava em 2º lugar do mundo em quantidade de publicações em biotecnologia (atrás dos EUA, em 1º). No triênio seguinte, passou para o 1º colocado. Em termos de impacto, verificamos um grande avanço da China em comparando-se os dois triênios: o Rank score subiu de 1,7 (valor médio) para 5,0. O melhor resultado foi em 2017, ficando em 21º lugar dentre 48 países (Singapura apresentou o maior CPP do ano). O Brasil, por sua vez, apresentou um aumento muito discreto, chegando em 2016-2018 ao Rank score de 3,0. Os EUA mantiveram-se estáveis com Rank Score entre 7 e 8.
4. Universidades chinesas
Agora, vejamos alguns detalhes sobre suas universidades e instituições de pesquisa. O Leiden Ranking 2019 lista a posição das universidades chinesas melhor classificadas por impacto (medido como %top-10) em diferentes quadriênios. Em 2008-2011 a Universidade de Donghua foi a mais bem classificada na China. Ficou em 315º lugar mundial de impacto, com 10,3% de artigos “top-10” (ou seja, 10,3% dos seus artigos estavam entre os 10% mais citados do mundo). O 1º lugar do mundo em 2008-2011, o MIT, ficou com 24,6% de publicações top-10.
No quadriênio seguinte (2009-2012) foi a Universidade de Nankai a melhor classificada, com o 310º lugar, e impacto 10,4% de publicações top-10. O gráfico abaixo mostra a evolução do ranking da universidade chinesa melhora classificada. Verificamos que no último quadriênio analisado (2014-2017), a Universidade de Hunan ficou em 79º lugar mundial, com impacto 14,3% de publicações top-10. Verificamos uma melhora de 236 posições em seis quadriênios! O Brasil, em contrapartida, manteve suas melhores universidades (UFSCar, UFSC e UFBA) flutuando por volta do 700º lugar. O melhor resultado alcançado por universidades brasileiras foi de 7,1% das publicações top-10.
Há uma fortíssima correlação entre os Rank scores da China e suas posições relativas no Leiden ranking das suas universidades melhor classificadas no período: R2 = 0,86 (vide figura abaixo). Há ainda forte correlação entre Rank scores e o impacto absoluto (medido por % de publicações top-10) da universidade chinesa melhor classificada no ano (R2=0,846).
Esses resultados mostram que o aumento no impacto das pesquisas universitárias explica – ao menos em parte – a grande melhora da qualidade da ciência da China como um todo. Um ponto interessante é que o Rank score se baseia no banco de dados do Scopus e o Leiden ranking no Web of Science. Verifica-se uma excelente correlação entre os dois diferentes grupos de dados, advindos de bancos de dados distintos. Isso reforça a validade das observações iniciais desse estudo, de que a China melhorou muito em impacto científico (medido como Rank score)
5. Institutos de pesquisa da China
Vale enfatizar que grande parte da pesquisa chinesa de ponta advém de institutos de pesquisa, que ficam de fora da análise de muitos rankings universitários, como o Leiden. Alguns destes institutos gozam de grande reputação, tanto local quanto internacional. Dentre os principais, destacam-se algumas das diversas vertentes da Chinese Academy of Sciences (CAS) como a Guangdong Academy of Science, e Chinese Academy of Medical Sciences (CAMS) - bem como outros institutos diversos, como Peking Union Medical College (PUMC), China Meteorological Administration (CMA), e o instituto de pesquisa das forças armadas People's Liberation Army (PLA). O primeiro instituto mencionado – CAS – foi destacado pela revista Nature como o centro de pesquisa científica que vem crescendo mais rapidamente no mundo desde 2016.
Os institutos de pesquisa chineses focam primariamente em desenvolver tecnologias e soluções para problemas nacionais ligados a grandes questões tecnológico-científicas. Desta forma, estas instituições formam a espinha dorsal do desenvolvimento da China como potência tecnológica, através da produção de descobertas e patentes em tópicos do maior interesse internacional. De fato, produção de impacto é o resultado esperado de empreendimentos ambiciosos!
6. Sobre o salto de qualidade da China a partir de 2011-2012
Mas o que fez a ciência universitária chinesa “decolar” em qualidade? A explicação não tem como ser simples: a China sempre foi um país muito complexo e dinâmico. Diversos fatores contribuíram para esta evolução, e aqui tentaremos ensaiar sobre os principais. Recomendamos um número especial recente da revista Nature sobre o rápido crescimento da relevância da ciência chinesa.
Mesmo em face da tradição chinesa de respeito ao conhecimento formal e professores, a internacionalização sempre foi um gargalo para seu desenvolvimento. A cultura chinesa caracteriza-se por ser fortemente autocentrada e basear-se em preceitos lógicos e morais bem diferentes das nossas raízes greco-romanas ocidentais (p.ex. segue a base filosófica confucionista). Neste sentido, dois eventos foram muito importantes para o súbito aumento de qualidade e redução da defasagem em relação aos países de maior tradição em pesquisa científica: o retorno de “cérebros” chineses e a captação de recursos humanos estrangeiros. Pesquisadores chineses que haviam se estabelecido no exterior têm sido seduzidos por generosas ofertas salariais e incrementos na estrutura institucional. Este fenômeno somou-se a um investimento conjunto entre universidades chinesas e seus parceiros no exterior em programas de doutoramento mirando nas universidades mais renomadas nos rankings acadêmicos internacionais. O pragmatismo chinês valoriza muito estes rankings, bem como a resolução de questões logísticas internas.
Concomitantemente, as universidades chinesas têm recebido expressivos incentivos do governo para a captação de estudantes e pesquisadores estrangeiros. Desde 2015 que acontece uma explosão no número de oportunidades para pós-doutorandos em universidades chinesas: dependendo das qualificações específicas de cada candidato e departamento, um pós-doutorando estrangeiro pode conseguir na China um salário mensal de mais de 3 mil dólares (de 2 a 3 vezes mais do que o geralmente oferecido para seus pós-doutorandos locais). Some-se a este impulso das universidades as extensas mudanças recentes nos institutos de pesquisa chineses, encabeçados pela já mencionada CAS, derivada da antiga Academia Sinica, que despontou subitamente liderando a pesquisa mundial desde 2016.
Em uma esfera mais local, a China beneficia-se da extensa estrutura industrial recentemente estabelecida, sendo hoje o polo de produção da maior parte dos equipamentos e insumos de indústria e laboratório, além de celulares e computadores. Assim, tanto os pesquisadores podem ter acesso direto a tecnologia em questão de horas, quanto as universidades têm estreitado laços com a indústria e a iniciativa privada em diversos setores da química, biotecnologia e novos materiais.
Atualmente, os laboratórios de pesquisa dividem espaço e/ou recursos humanos com instalações privadas de análise, o que acelerou enormemente a produtividade e o avanço em importantes áreas prioritárias do século XXI, aqui destacando-se a Biotecnologia (ligada a biomedicina), Computação (ligada a pesquisa em genômica e inteligência artificial), Novos Materiais e pesquisas espaciais aliadas a Engenharia.
Outro fator local importante a ser levado em conta são marcantes aspectos da cultura chinesa, que têm sido habilmente explorados pelas estratégias de desenvolvimento implementadas pelo governo chinês. Cabe enfatizar que estas incluem certas práticas tidas internacionalmente como altamente polêmicas. Por exemplo, são comuns na China exigências sobre metas de Fator de Impacto de publicações, e até mesmo sobre citações dos artigos. Uma prática comum, encarada internacionalmente com sérias reservas, tem sido a premiação em dinheiro de autores de artigos internacionais: dependendo do número de autores e fator de impacto, algumas instituições chegam a oferecer mais de 25 mil dólares por um único artigo. Não menos importante, vale frisar a excelência dos chineses na coordenação de equipes e fascínio por velocidade ao competirem por metas e prestígio entre seus pares. Isso resulta em laboratórios de pesquisa competitivos que efetivamente funcionam por mais de 12 horas por dia, 6 a 7 dias por semana. Trabalhar na China não é para os fracos!
Um aspecto particularmente delicado e controverso advém da forte cultura de troca de favores (conhecida por guanxi) e – incentivado pelo governo - de cobiça pela supremacia mundial. Isso tem fomentado uma interação extraoficial entre pares na China, tanto nas citações de artigos quanto sobre o processo de peer review (revisão de artigos por pares). No conjunto, suspeita-se que estas práticas de cooperação informais tenham contribuído para o incrível aumento dos índices de citações e as taxas de aceite de artigos chineses. Sendo os chineses tão numerosos, o mundo científico tem recentemente experimentado uma verdadeira inundação por artigos chineses (599 mil publicações indexadas no Scopus em 2018), muitas vezes acompanhada de uma teia de influências que tem suscitado questionamentos sobre a robustez do sistema de editoração e peer review tradicional dos periódicos científicos.
Finalmente, bem sabemos que a China possui tradição milenar como habilidosos agricultores e comerciantes. Isto, no plano do desenvolvimento científico, pode ser sentido na habilidade chinesa de semear empreendimentos que geram frutos no médio-longo prazo, além de rapidamente saberem identificar o que o “mercado internacional” das publicações científicas espera de seus cientistas e de seus manuscritos enviados para publicação. De fato, qualquer pesquisador atuante hoje consegue perceber o contraste da qualidade entre artigos produzidos pela China meros 10-15 anos atrás para os atuais, muitas vezes sendo oriundos dos mesmíssimos grupos de pesquisa. Somados, todos estes fatores realmente contribuíram para um aumento do impacto chinês na ciência mundial tão que poderia ser comparado ao de um tufão asiático!
A discussão destes pontos ilustra o quanto o Brasil pode aprender com a China. Mas, ao mesmo tempo, buscamos enfatizar que devemos sabiamente selecionar para aprender e “importar” apenas aquilo que se mostra compatível com nossos melhores valores culturais e características nacionais. Nenhum país é perfeito, mas a China mostrou muitas vezes ao longo de séculos o seu potencial como nação! Essencialmente, as conquistas históricas dos chineses devem-se a uma grande habilidade de planejamento estratégico, ênfase nas tradições de estruturas familiares e de trabalho, respeito às autoridades intelectuais e institucionais, e um forte sentimento de nacionalismo. Temos muito o que aprender com nossos colegas chineses nestes campos.
Observação: Para acessar o script R dos gráficos desse artigo, aqui vai o link: https://gist.github.com/eduardofox2/81946bcb5103715daa9f3add2d36a97c
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