A liberdade de expressão é um atributo essencial à forma universitária. Dito de outra forma, não há universidade propriamente dita sem que haja – ao menos em seu interior – plena liberdade de expressão.
Para não retrocedermos demasiado na história das universidades, que remonta à Europa do século XI, contexto no qual as comunas universitárias já gozavam de liberdades garantidas pelos senhores locais, voltemos apenas dois séculos, quando ocorreu a constituição do atual modelo de universidade de pesquisa.
Trata-se da fundação da Universidade de Berlim (hoje Humboldt Universität zu Berlin), em 1811. Naquele momento, após um intenso debate entre filósofos, cientistas e a administração pública prussiana, a universidade deixa de ser concebida como uma instituição primordialmente de ensino, passando a ser vista como local de produção de conhecimento.
O ensino, até então pautado em manuais e programas aprovados pelo Estado, passa a ter por objeto o estado da arte das pesquisas desenvolvidas pelos docentes na universidade e nos laboratórios a ela ligados. A aula expositiva, as grandes conferências e palestras catedráticas convivem em pé de igualdade com a realização de seminários – a formação de pequenos grupos de estudantes engajados na pesquisa liderada por um professor, à moda dos laboratórios de química e agronomia da época, reformulando o modelo de tutoria já há muito conhecido das universidades inglesas e seus colleges.
Refletindo sobre a configuração dessa nova instituição, Wilhelm von Humboldt – um dos encarregados pelo projeto – afirmou que sua principal característica era que professores e alunos, “ambos [todos] estão lá [na universidade] pela ciência [pelo conhecimento]”. A busca por conhecimento seria, a um só tempo, o motor da vida universitária e a força centrípeta que congregaria sua comunidade, o cimento da união.
Para que essa missão infinita rumo ao conhecimento possa se desenrolar da melhor forma possível, Humboldt recomendou ao Estado não interferir em demasia nas universidades. Seria dever do Estado fornecer meios materiais (financeiros, estruturais, etc) para que pesquisadores, professores e alunos pudessem fazer o que lhes era próprio.
Além disso, caberia ao Estado regulamentar a carreira universitária e constituir uma rede de instituições. Em troca, a comunidade acadêmica ofereceria o que houvesse de melhor em saber e conhecimento disponível à época, a serem usados pelo Estado e pela sociedade civil no desenvolvimento da nação.
Ainda que o resultado de algumas investigações científicas fosse contrário ao interesse político imediato do Estado, argumentava Humboldt, seria melhor deixá-las acontecer do que as proibir, pois o preço de estar sujeito à crítica é muito menor do que o preço da censura. Esta ocasionaria o bloqueio do progresso acadêmico-científico, o que resultaria na perda de potencial de desenvolvimento e no consequente “ficar para trás” do país na competição internacional.
Que o cenário político, social e econômico tenha se alterado profundamente nos últimos duzentos anos, disso não há dúvida. Mas dois pontos permitem que olhemos para esse momento histórico na busca por elementos que nos ajudem a refletir sobre o presente:
1) talvez mais do que nunca, conhecimento e desenvolvimento (social e econômico) estão estreitamente ligados – a maneira como uma sociedade investe, prioriza e cuida da produção de cultura, ciência e tecnologia tem impactos inegáveis na sua geração de riqueza e bem-estar;
2) o modelo atual de universidade continua sendo aquele de universidade de pesquisa, a despeito das muitas alterações e adaptações pelos quais passou – mudanças na dinâmica da produção científica, na carreira, na estrutura dos currículos e diplomas, a busca por internacionalização, entre outros.
Hoje sabemos que se nos adaptamos aos diferentes tipos de inteligências, 98% dos alunos terão melhor resultado. #GazetadoPovo via #Educação
Publicado por Gazeta do Povo em Domingo, 17 de dezembro de 2017
Se isso fizer sentido, podemos afirmar também para o momento presente que – retomando a frase que abre o texto – a liberdade de expressão é um atributo essencial à forma universitária. Sem ela, a busca por conhecimento fica gravemente comprometida e, com isso, também o desenvolvimento econômico e social do país.
Pois bem, ao olharmos para o cenário do ensino superior brasileiro, o que menos vemos é essa tal liberdade. Protestos contra a exibição de filmes sobre o Plano Real ou o pensamento de um filósofo conservador, contra a realização de seminários discutindo gênero na infância e adolescência, contra eventos comemorando e lamentando o centenário da Revolução Russa, palestrantes, convidados e congressistas impedidos de falar sob a “acusação” de serem fascistas, comunistas, reaças, tucanos, petralhas, coxinhas ou mortadelas. E, claro, um projeto de policiamento contra supostas doutrinações ideológicas no ensino superior (Universidade Sem Partido?).
Há dois séculos como agora, o equívoco é estruturalmente o mesmo, e quem perde somos nós, enquanto sociedade, porque esses entraves são prejudiciais à busca por conhecimento. Nas humanidades, nas ciências ou nas artes, o conhecimento humano “progride” – com as aspas que o termo requer após o decurso do século XX – por meio de disputas, de rupturas, de mudanças de paradigma – para falar com Thomas Kuhn.
Princípios básicos do método científico, visões de mundo conflitantes e concepções de arte entram rotineiramente em choque e sofrem revisões de quando em quando; no reino do conhecimento, as crises são a normalidade – assim como no capitalismo, dirão alguns.
Ora, ao impedir o livre confronto de ideias, tanto os paladinos de ideologias dogmáticas que se pretendem hegemônicos e unânimes quanto os cruzados da doutrinação concorrem para um mesmo efeito: desmontam a dinâmica própria da busca por e produção de conhecimento.
Naturalmente não se trata de defender um vale-tudo, e o tema da tolerância, no âmbito da liberdade de expressão, possui bibliografia de altíssima qualidade em quantidade suficiente para encher um punhado de prateleiras.
Se a universidade é o lugar de produção de conhecimento por excelência – e essa é uma das premissas do modelo de universidade de pesquisa –, então ela é o locus onde deve se desenrolar essa dinâmica de crise e crítica: a tarefa que congrega as diversas disciplinas universitárias é a de refletir sobre modelos de racionalidade, sobre formas de apreensão do mundo e hipóteses explicativas.
Para isso, lançamos mão de confrontos radicais, retomamos hipóteses há muito esquecidas, questionamos fundamentos empíricos de teorias em voga, produzimos estudos de confirmação, extensões e novas aplicações e propomos chaves de leitura.
Sem a garantia da liberdade de expressão, a universidade não pode realizar a missão que lhe cabe. Se for assim, melhor voltarmos ao antigo modelo de instrução, com manuais aprovados pelo Estado ou pelos iluminados da pureza doutrinária ideológica. O preço a se pagar? Apenas a evolução do conhecimento, coisa pouca no mundo globalizado altamente competitivo e numa economia baseada em inovação criativa. Façam suas apostas.
*Rafael Barros de Oliveira é Mestrando em Filosofia pela USP e colunista do Terraço Econômico
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