O Brasil vem consagrando números não positivos quando falamos em alfabetização, etapa conhecida como o "coração do ensino". Os índices mais recentes preocupam: 60% dos alunos concluintes do 3º ano do ensino fundamental estão em níveis insuficientes de leitura, 33% em níveis insuficientes em escrita e 54% têm insuficiência em matemática.
Mas talvez mais preocupante do que isso seja o que fazemos com esses alunos em "níveis insuficientes".
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Por entender que há "algum problema mais sério" que afeta esse contingente de estudantes, como disfunções neurológicas e transtornos funcionais (dislexia, TDAH, etc.), as instituições de ensino, muitas vezes, os encaminham a consultórios terapêuticos.
Quando chegam aos consultórios, no entanto, poucos são os alunos diagnosticados com transtornos e disfunções. O problema é mais simples (ou nem tanto) do que se imagina: a alfabetização não foi adequada.
Ana Luiza Navas, fonoaudióloga especialista em distúrbios da leitura e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, em São Paulo, pesquisa o tema há vários anos. Com o intuito de entender por que algumas crianças não aprendem a ler, Navas frequentou um centro especializado de estudo em neurociência em Connecticut. Recentemente, ela também foi indicada para fazer parte do Painel de Especialistas da Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Conabe).
Em entrevista à Gazeta do Povo, Ana comenta sobre as "vítimas" de processos inadequados de alfabetização.
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O que há de errado com esses alunos "em níveis insuficientes" de leitura e escrita?
No Brasil, há números assustadores de crianças que não estão adequadas para o nível de leitura e escrita. Nos outros países, em que o número é muito menor, crianças que têm transtornos de aprendizado da leitura estão dentro desse grupo. Mas aqui aquelas que têm transtornos são confundidas com aquelas que não foram alfabetizadas da forma adequada.
Há crianças que chegam até a idade de 11 anos sem estar alfabetizadas. E descobrimos que, na verdade, elas têm dificuldade porque nunca foram ensinadas adequadamente. Mas há outras – uma parcela pequena – que realmente têm uma dificuldade intrínseca, neurológica, que dificulta o aprendizado.
É por isso que a fonoaudiologia começou a se envolver tanto nas questões da alfabetização, pois é dentro desse contexto que muitas crianças são encaminhadas para a terapia. Mas, na verdade, não precisariam estar lá. O problema poderia ter sido resolvido na própria escola, com uma alfabetização adequada. Muitas vezes, quando elas vêm para a saúde, o que fazemos é simplesmente “realfabetizar”.
Há mais alunos com transtornos e disfunções ou que apenas foram mal alfabetizados?
Eu posso dizer que cerca de 80% das crianças que recebemos para atendimento, que vêm com queixa de que não estão aprendendo a ler e escrever, na verdade, foram vítimas de um processo de alfabetização inadequado. Elas acabam sendo encaminhadas para nós como se tivessem distúrbios. Mas, na verdade, o que vemos, depois de avaliações, é que elas, de fato, poderiam ter sido alfabetizadas da forma correta.
É um atraso no processo de alfabetização, e elas são vítimas desse sistema que não está sendo eficiente. Em uma idade em que já poderiam estar compreendendo textos, muitas não conseguem nem ler palavras.
Mas, é claro, há muitos outros aspectos sociais que dificultam esse processo. Hoje em dia, as crianças têm uma linguagem muito empobrecida, os pais já não conversam com as crianças, ninguém lê mais livros, não têm hábitos de leitura. Isso tudo contribui para essa situação.
Em comparação com outros países, os números do Brasil são alarmantes?
Muito. É só a gente ver os resultados dos exames nacionais. O último dado é que 40% das crianças não leem adequadamente para a idade.
E dessas, nem todas têm transtorno de leitura. A maioria desse grupo é vítima – não sei se essa é uma palavra muito forte – mas é recorrente desse processo de alfabetização que não foi completo. Posso dizer que cerca de 10% dessas pessoas realmente têm dificuldades neurológicas.
Muitos professores encaminham os alunos para a terapia, pois, no dia a dia, em uma sala cheia, algumas crianças têm mais condições do que outras, por ter estímulo em casa. Mas outros, não. E aqueles que vão ficando para trás, a escola acaba encaminhando, por achar que é um problema maior, mas o problema poderia ter sido resolvido na própria escola.
Em outros países, ainda restam dúvidas quanto à melhor forma de se alfabetizar crianças? O debate de métodos já foi ultrapassado?
Em vários países, o debate já está bastante claro, ninguém tem dúvida do que é necessário fazer. O que a gente debate hoje aqui no Brasil quase não existe em outros países, a não ser na América Latina. Mas, na maioria das nações mais desenvolvidas, esse debate já foi superado.
No último encontro da Society for the Scientific Study of Reading (Sociedade de Estudo Científico da Leitura, em tradução livre), por exemplo, o que mais se discutiu foram as questões da compreensão de leitura. Isso depende de uma boa base e bom desenvolvimento do vocabulário, o que é suficiente para compreender o que se lê. Não adianta apenas reconhecer as palavras isoladas e não conseguir entender o que o texto diz, e esse é um grande problema entre os jovens atualmente.
A minha sensação é que quando alguém diz "só esse método é importante" ele vê a alfabetização como aprendizado da leitura de palavras – e aí a ciência não deixa nenhuma dúvida de que o método que prioriza a relação dos sons com as letras [fônico] é fundamental.
Só que isso não é suficiente. Para dizer que alguém está lendo e compreendendo, é preciso avançar em outras habilidades, como a velocidade e fluência de leitura. Lá na frente, esse tipo de metodologia dá uma boa base, mas isso precisa ser aprimorado com outras habilidades. Uma criança que não tem bom vocabulário, não consegue falar e contar coisas, não consegue ler e compreender.
O debate do método é uma parte do assunto. É o início de tudo, mas não é só isso o que interessa e que vai garantir uma boa leitura. Alguns grupos ficam focando só nisso e esquecem que é um processo maior.
Muitas pesquisas já demonstraram que quanto mais prestamos atenção nos sons das palavras e nas unidades (fonemas, sílabas, morfemas), mais fácil será o aprendizado. No início, não é tão importante o significado, mas o som. Essa é uma relação essencial da linguagem oral com a escrita, a criança precisa entender que, quando ela escreve, está escrevendo algo que ela pode falar. No início, é importante fazer essa relação da linguagem oral com o código gráfico, estabelecer essa relação que os sons têm com a escrita.
Mas penso que a grande crítica de quem é contra o método de alfabetização fônica é de que ele "para por aí". E isso é um erro. É uma habilidade essencial no início da alfabetização, mas não para por aí.
Para mudar esse quadro, é preciso melhorar as diretrizes? Mudar a formação de professores?
Eu acho que é preciso dar diretrizes mais específicas de como alfabetizar. A PNA tem essa grande vantagem de explicitar quais são as habilidades importantes. Muitos de nós pesquisadores estamos mais preocupados com as habilidades que têm que ser desenvolvidas do que com o método em si. O método é uma consequência, pode ser um e outro. Mas desde que essas habilidades fundamentais sejam desenvolvidas.
E esse é um dos desafios. É difícil dar diretrizes gerais, porque o Brasil tem muitas diferenças regionais, principalmente em relação à formação dos professores. Mas eu acho que, minimamente, é preciso descrever melhor quais são as habilidades necessárias e quais os materiais que podem ser usados para estimular essas habilidades.
Quando eu dou dicas para os professores, alguns dizem: "Nossa! Se eu soubesse disso antes, teria sido tão fácil!". Não é que eles não querem fazer, às vezes falta formação pra eles.
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