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Embora a defesa de alguns movimentos que insistem que a Terra é plana seja um entre os exemplos atuais mais incontestáveis de anti-intelectualismo, da mesma forma determinadas correntes que imperam nas universidades - essas que, em tese, deveriam ser voltadas à pesquisa por método científico e ao cultivo do conhecimento - são totalmente refratárias à ciência e se "camuflam", muitas vezes, em discursos de justiça social.

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É o que acontece, sobretudo, nos campos das ciências sociais. Especialistas ouvidos pela reportagem discutem sobre os efeitos que o anti-intelectualismo oriundo das academias de ensino têm na sociedade. Para muitos, essa rejeição à ciência tende a gerar o que chamam de "apartheid cultural".

O Brasil "prático"

O viés anti-intelectualista, em grande parte, parece refletir uma característica histórica do Brasil de "raciocínio prático", decorrente de uma ordem social formal precária e mantida em um equilíbrio muito tênue, à custa de circunstâncias de vida imprevisíveis. "Em geral, o brasileiro sempre procura o sentido prático de tudo o que faz", diz Guilherme Wood, doutor em Psicologia pela Universidade de Aachen, na Alemanha.

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"Amanhã tudo pode mudar - de uma hora para outra, a seca pode destruir a lavoura, o mercado financeiro oscila e muda as relações de trabalho. Desde os mais pobres até o topo da organização social, há temor de que a ordem social possa ser abalada a qualquer momento", diz ele. "E pelo fato de que as coisas mudam numa velocidade muito rápida e de que o brasileiro vive em um ambiente hostil e imprevisível, as pessoas são forçadas a serem práticas".

Essa conjuntura imprevisível tenderia a provocar certo desinteresse pela intelectualidade - tida, muitas vezes, como supérflua. "Não significa que o brasileiro seja indolente, burro ou subdesenvolvido. Na realidade, são poucas as situações nas quais o cidadão tem oportunidade de navegar justamente na outra direção: a do desenvolvimento intelectual. Por causa desse ambiente tão hostil a todo mundo, ninguém espera nada da alta intelectualidade", afirma o especialista.

"Universidade cultiva anti-intelectualismo como virtude"

Nas academias de ensino, contudo, espaço que, em tese, deveria ser voltado à pesquisa por método científico e cultivo do conhecimento, há quem menospreze a intelectualidade. O anti-intelectualismo é, até mesmo, cultivado como uma espécie de virtude nas universidades, afirma Guilherme Wood. "É um absurdo, mas é assim".

Diferentemente do que ocorre em áreas de Exatas, por exemplo, nas quais, em geral, o caráter empírico das ciências não é colocado em questão, o viés anti-intelectualista tende a predominar no campo das ciências humanas e tem suas raízes na Escola de Frankfurt, a partir da década de 60. Os especialistas apontam que essa corrente, que busca colocar conceitos em xeque e identificar relações de poder em todos os aspectos, tem hegemonia, sobretudo, no campo da Pedagogia.

Vitor Haase, professor titular no departamento de Psicologia da UFMG, afirma que a tentativa de politizar todos os aspectos da vida fez com que a atividade acadêmica deixasse de se debruçar sobre o conhecimento, tornando-se espaço para ativismo político.

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"Curiosamente, nas universidades o anti-intelectualismo é subvertido, muitas vezes, por um discurso de justiça social", diz. "Na minha opinião, é algo paradoxal, porque ao mesmo tempo em que as pessoas falam em justiça social e igualdade, estão fechando as portas para isso", afirma.

Em "A falácia socioconstrutivista", Kátia Benedetti, professora na rede básica de ensino de São Paulo, desvenda os efeitos da ignorância científica entre os linguistas - subvertida, muitas vezes, por um discurso de justiça social. Ela explica que permanecer refratário aos achados da ciência não apenas nos coloca nos últimos patamares em rankings internacionais que medem a qualidade da educação no mundo. Na prática, esse cerco ao conhecimento adoece o ensino do "chão da escola" e faz com que alunos tenham desempenho sofrível (leia aqui).

Norma culta da língua relativizada

Ao desprezarem o que há de mais atualizado por parte da ciência cognitiva da leitura e permanecerem alheados contra a intelectualidade, educadores fecham janelas de oportunidades para o aprendizado dos alunos. Os especialistas lamentam que a academia de ensino se ancore, há mais de 20 anos, em dogmas que simplesmente não dialogam com a ciência produzida mundo afora.

Tome-se como exemplo o estudo da psicóloga Emília Ferreiro, discípula de Jean Piaget, cujos conceitos ainda hoje são tidos como "bússola" da alfabetização na América Latina, em especial. Sua pesquisa foi desenvolvida com base em uma amostragem significativamente baixa: 13 crianças, sendo que 8 delas eram de classe média. Ainda que do ponto de vista científico o estudo careça de credibilidade e respaldo na realidade, muitos educadores insistem em permanecer "desinteressados" por conceitos já consolidados e revistos sistematicamente.

Quando analisado o teor propriamente dito da pesquisa de Emília, a Psicogênse da Língua Escrita, o "negacionismo" científico é ainda mais explícito. Com as descobertas do linguista e cientista cognitivo Noam Chomsky, que identificou uma predisposição no cérebro humano para a aquisição da linguagem verbal (pelo simples fato de estarmos inseridos em ambientes letrados, aprenderemos a falar), a psicóloga considerou que esse mesmo padrão identificado por Chomsky se aplicaria à aquisição da leitura-escrita.

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Ainda na toada segundo a qual a língua não deve ser concebida como um sistema e sim como um objeto social, Emília também considerou que não haveria necessidade de que alunos recebessem ensino explícito por parte de um professor. Para que se tornassem sujeitos de seu próprio conhecimento, crianças deveriam agir com autonomia diante do próprio aprendizado, defende.

Os achados científicos atuais já provaram, contudo, que esse conceito é totalmente inverídico. Em entrevista à Gazeta do Povo, o especialista Augusto Buchweitz explicou que, embora nosso cérebro tenha uma predisposição para a fala, o órgão não é programado para ler, já que é a escrita um código cultural inventado pelo ser humano. Só sendo possível aprendê-lo por meio do ensino sistemático e explícito.

"Na área da pedagogia, esse preconceito intelectual é defendido por muitos autores, como nas ideias de Paulo Freire de que 'ninguém sabe mais do que ninguém, não existe um saber superior ao outro'. Existe esse desprezo pelo conhecimento, de que a escola não deve se restringir à mera transmissão do conhecimento", diz Haase. "Logo, se você não precisa transmitir conhecimento e, além disso, não se identifica com o legado cultural da civilização ocidental, obviamente você não terá motivação nenhuma para transmitir o conhecimento para gerações subsequentes".

Pedro Caldeira, professor na UFTM, explica que justificativas teóricas dessa natureza defendem que crianças sem oportunidades não sejam forçadas a aprender a norma culta da língua da língua já que "não é a maneira natural de elas falarem". "A exigência em termos de ensino da língua, em basicamente todo o mundo, foi se degradando muito ao longo da primeira década do século 20. Há autores consideram que, desde que a pessoa se faça comunicar, qualquer coisa que ela escreva é aceitável", diz.

"Mas, curiosamente, todos os autores que vão por esse caminho escrevem bem, invariavelmente. Autores brasileiros que consideram isso, começando com Paulo Freire, dominam a língua portuguesa de tal modo que, inclusive, escrevem tão bem que algumas coisas aparentemente não fazem sentido e é preciso prestar muita atenção até conseguir extrair um significado".

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Quanto a isso, Wood ainda questiona: "não seria, contudo, a função da educação justamente a de elevar as pessoas acima de sua natureza imediata, a um plano superior?".

"Adotando essas abordagens, você corta toda e qualquer possibilidade de elevar alguém acima de seu próprio meio. Naturalmente, deixa estudantes indefesos, sem oportunidade de construir uma vida intelectual, no final das contas. O conhecimento é só trivial, que ele já encontra cotidianamente e, obviamente, o resultado disso é o desânimo, o desinteresse, já que a criança não tem nenhuma razão para aprender".

Um dos principais motivos para que Guilherme Wood deixasse o Brasil e se mudasse para a Áustría é o anti-empirismo e anti-experimentalismo cultivado na psicologia brasileira.

"Há uma doutrina na psicologia que sempre teve birra contra a experimentação, a observação sistemática e quantificação de dados psicológicos, em favor de outras abordagens que até hoje não saíram do limiar entre a psicologia e a filosofia. Preza-se mais o trabalho especulativo e a observação privada, entremeada de subjetividade como a única alternativa possível para a psicologia. O anti-empirismo na psicologia fala mais forte e vozes destoantes são massacradas", lamenta.

Universidade presta contas à sociedade?

Entre as variadas consequências de um alheamento científico no ambiente acadêmico, pode-se citar, ainda, a falta de "prestação de contas" à sociedade. Há universidades cujo orçamento é, muitas vezes, superior ao do próprio município na qual estão estabelecidas. Apenas a UFRJ, por exemplo, tem um orçamento volumoso de mais de R$ 3 bilhões.

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"Em geral, elas só precisam de notas fiscais para justificar a sua existência ao TCU - o que é um parâmetro muito baixo para justificar todo o investimento que o brasileiro faz na universidade", lembra Guilherme Wood. "Universidades não têm que prestar conta à sociedade civil, mas só à [torcida] organizada, como aos sindicados, parceiros de cooperação e que determinam o sentido da atividade intelectual na academia".

Uma "moderação" nesse sentido ainda está muito longe de acontecer para alguns especialistas, sobretudo à medida em que várias instâncias do poder público fomentam o "isolamento" da universidade, a proteção ao ambiente físico, onde, por exemplo, a polícia é "proibida" de entrar.

"Mais de 50% dos nossos alunos não aprendem o mínimo de leitura ou matemática ou ciências. Mais de 50% do orçamento da educação é deitado no caixote do lixo, ano após ano. Nosso dinheiro não cresce em árvore, embora algumas pessoas parecem insistir nisso", provoca Pedro Caldeira.

"Só a crítica nos permite melhorar, e eu tenho a forte impressão de que a universidade pública precisa passar por um processo de crítica mais intenso", diz Wood.