Malba Tahan, no capítulo XI de “O homem que calculava”, pela boca de um de seus personagens, diz: medir é comparar. É sobre medidas e, portanto, de comparações, que falaremos. Medidas do desempenho em leitura, e comparações entre o que conseguimos no passado e o que conseguimos hoje, e entre o que nós realizamos e o que realizam outros países no ensino de leitura.
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No Brasil, o Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica) aplica os testes, e estima proficiências médias que populações escolares obtêm nesses testes. O Saeb não informa desempenho individual, por aluno. Proficiências médias são calculadas para unidades escolares, isoladamente, e para cada rede de ensino: municipal, estadual e federal. Essas proficiências médias são interpretadas pedagogicamente.
Cada intervalo numérico em que a escala de proficiência é dividida corresponde ao desenvolvimento de um conjunto específico de competências e habilidades. Por fim, o Saeb oferece meios para julgar a evolução do aprendizado, isto é, para saber se os alunos, nas unidades escolares de análise, desenvolveram aquele conjunto de competências e habilidades. A isso chamamos julgar o desempenho no aprendizado. Esse desempenho, então, é classificado como: insuficiente, básico, adequado ou avançado.
“Insuficiente” significa que o aprendizado ficou abaixo do esperado. “Básico”, quando ficou no limite planejado, um desempenho regular. “Adequado”, quando foi compatível com o esperado, obteve um bom desempenho no aprendizado, “fez o que tinha de fazer”. “Avançado”, se obtém quando o planejado excedeu o esperado.[1]
É de supor que ninguém se achará satisfeito com os níveis “insuficiente” e “básico”.
Em testes nacionais, sabemos, porém, que muitos apresentam níveis “insuficiente” e “básico” de desempenho no aprendizado de leitura em todas as fases de escolaridade. Sabemos, também, que não estamos melhorando na intensidade e na velocidade necessárias, considerado o patamar em que estávamos em 1995, quando o Saeb começou a produzir medidas comparáveis ao longo do tempo, e o patamar que alcançamos em 2017, última edição dos testes, como é possível perceber no gráfico abaixo:
Os indícios dos testes internacionais
Em testes internacionais, ao menos metade dos adolescentes brasileiros com idades entre 15 e 16 anos, população alvo do Pisa, apresenta, em média, capacidade apenas para acessar e localizar informação explícita em textos simples. No Pisa, esse desempenho é classificado como insuficiente.
A bem da verdade, contudo, deve-se ressaltar: o problema do mau desempenho em leitura não é exclusividade nossa. E aqui está o ponto a partir do qual pretendemos (e podemos) avançar.
Nos EUA, que sob alguns aspectos são comparáveis ao Brasil, dados da última edição do Naep (O Naep é o “Saeb deles”; eles o chamam, informalmente, de o boletim escolar da nação [²]) indicam: somente 37% e 36% dos alunos apresentaram, ao final dos períodos escolares aqui correspondentes ao quinto e nono anos do ensino fundamental, respectivamente, desempenho adequado e avançado em leitura.
Internacionalmente, o desempenho médio dos adolescentes dos EUA no Pisa em leitura, edição 2015, última com resultados publicados, colocou o país em 25º lugar no ranking, perto de Inglaterra, França, Portugal, Espanha e Rússia. Não é desempenho de ponta. Mas é compatível com o desempenho médio em leitura ostentado pelos adolescentes dos 35 países integrantes da OCDE.
Assim, comparados os resultados no Saeb, no Naep e no Pisa, fica evidente que, embora o desempenho do Brasil seja pior, os EUA também convivem com más notícias sobre o desempenho da população escolar em leitura.
A situação se inverte, entretanto, quando comparamos o Brasil, não somente aos EUA, mas também a países como a França e a Inglaterra, no quesito esforço científico para compreender a origem e a natureza desse problema do mau desempenho escolar em leitura. Idem no que diz respeito ao empenho para alinhar políticas educacionais aos achados produzidos pela ciência.
A maior parte dos achados da nova ciência cognitiva da leitura consolidada nos últimos 40 anos foi produzida nesses países: EUA, Inglaterra, França. Nesse corpo de conhecimentos alguns pontos restaram universalmente esclarecidos. Três são cruciais.
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Não existe jogo de adivinhação
Primeiro, ficou demonstrada a existência de um princípio fonológico universal nas escritas. Dito de outro modo, todo sistema de escrita bem-sucedido, e usado em larga escala, codifica unidades mínimas segmentadas de fala em unidades mínimas segmentadas de grafia. Em nenhuma escrita o registro fotográfico memorizado da sequência inteira das letras, sem a produção da imagem sonora da palavra via ativação e integração dos valores fonológicos dessas letras, leva diretamente à identificação do sentido da palavra.
O rastreamento temporal e espacial do processamento cerebral de informações durante tarefas de leitura, graças ao uso de tecnologias avançadas de produção de imagens funcionais, sepultou as ilusões de que a leitura de palavras seria global. E experimentos bem controlados invalidaram teses, de ampla circulação nos meios educacionais, de que a leitura seria um jogo psicolinguístico de adivinhação.
O princípio fonológico universal da organização das escritas foi clara e universalmente validado para todas as escritas baseadas em alfabetos. Evidências experimentais consolidadas mostraram que a alfabetização apresenta menor desafio pedagógico quando as línguas possuem baixa complexidade silábica e quando as relações entre grafemas e fonemas nessas escritas são mais estáveis e transparentes. E vice-versa.
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Ler não é natural para o ser humano: é preciso aprendizado sistemático
Segundo, do ponto de vista evolutivo, ficou evidente que fomos programados para falar. Não para ler. Ficou demonstrado que o aprendizado da fala é natural, isto é, presentes condições típicas de desenvolvimento psicofísico e intelectual basta a exposição a um ambiente de comunicação oral para que comecemos a falar. Em hipótese nenhuma isso ocorre com a escrita. Seu uso demanda aprendizado sistemático, explícito, guiado.
Se comprimíssemos em um ano, a exemplo do que fazem os astrofísicos, o período de existência da capacidade de comunicação oral na história da espécie humana, estimado indiretamente em 350 mil anos, a fala estaria presente em 1 de janeiro. Mas a comunicação escrita, baseada em artefato cultural que é em parte descoberta em parte invenção, somente apareceria nos últimos dias de dezembro, há mais ou menos 6 mil anos. Isso explica por que em nosso cérebro não se encontram redes neuroniais especializadas no processamento do tipo especial de informação codificada nas escritas.
Passamos centenas de milhares de anos comunicando-nos apenas oralmente. Inventamos e/ou descobrimos as possibilidades de comunicação escrita há meia dúzia de milênios. Mas o uso extensivo e massivo da escrita entre nós é coisa de pouco mais de uma centena e meia de anos, com a disseminação dos sistemas nacionais de instrução.
Nosso cérebro precisa, assim, modificar funcionalmente, e integrar, para novo uso, na leitura e na escrita, redes neuroniais original e exclusivamente desenvolvidas para outros usos.
Se não é natural, aprender a ler também não é sobrenatural, como assinalaram vários cientistas. Mas impõe um claro esforço de reconversão funcional de importantes áreas corticais. A isso o professor Stanislas Dehaene chama reciclagem neuronal.
Nada de “educação aberta”: a importância do ensino explícito do princípio alfabético
Terceiro, na metade do século passado, no Haskins Laboratories, afiliado à Universidade de Yale, EUA, descobertas sobre a percepção da fala inspiraram a abertura de uma nova linha de pesquisa sobre aprendizado da leitura. Os estudos nela desenvolvidos geraram evidências da importância do ensino explícito do princípio alfabético e das regras de decodificação para a alfabetização. Por sua vez, estudos comportamentais testaram essas evidências. Seus achados acarretaram a revalorização do papel da instrução fônica no ensino inicial da habilidade de ler e escrever. E reestimularam a pesquisa sobre o impacto diferencial de métodos de alfabetização.
A nova ciência cognitiva da leitura identificou os componentes cognitivos e linguísticos envolvidos no ato leitor e no processo de alfabetização. Nela, emergiram, e se consolidaram, evidências de que aprender a ler requer:
- Consciência fonológica em geral e capacidade de manipulação consciente dos fonemas em especial;
- Conhecimento e discriminação das letras;
- Familiaridade com a mecânica da impressão de material escrito;
- Conhecimento do princípio alfabético e das regras de codificação/decodificação;
- Desenvolvimento de vocabulário, fluência e estratégias de compreensão.
No que diz respeito ao ensino, ficou demonstrado que os atos didáticos que visam o desenvolvimento dessas habilidades cognitivas especiais e capacidades linguísticas gerais precisam ser arranjados, sequenciados e dosados, em programas, materiais e procedimentos de ensino, para responder adequadamente aos mais diversos perfis linguísticos e cognitivos com os quais as crianças chegam à escola.
Aos docentes não basta conhecer os aspectos cognitivo e linguístico envolvidos no desafio da alfabetização. A prática pedagógica de máxima eficácia, nas mais variadas condições, para as mais variadas crianças será aquela que otimizar a interação entre conhecimento do desenvolvimento neurocognitivo, conhecimento dos modelos psicolinguísticos mais atualizados do funcionamento da escrita e do ato de ler e expertise instrucional.
Método comprovado cientificamente
Por fim, e especialmente, do final dos anos 1990 até hoje, e sem exceção, as revisões da literatura científica sobre efeitos de métodos de alfabetização no aprendizado em leitura apontam: métodos fônicos, justamente os que usam abordagens de marcha sintética na alfabetização e ensinam precoce, explícita e sistematicamente o princípio alfabético e as regras de decodificação, são mais eficazes para iniciar crianças no aprendizado de leitura de escritas baseadas em alfabetos.
Tudo considerado, não há bala de prata para resolver definitiva e instantaneamente o problema do mau desempenho em leitura. Há fatores, além do método de alfabetização, a serem considerados. Mas sem resolver o problema da alfabetização, usando métodos ineficazes e negligenciando evidências científicas disponíveis, não se ataca com sucesso o problema do mau desempenho escolar em leitura.
E os formuladores de políticas nacionais de alfabetização e de formação de professores pelo mundo e no Brasil, como reagiram frente essa atualização científica?
Frente à nova ciência cognitiva da leitura, para onde caminhamos hoje em nosso país?
É o que veremos no artigo que encerrará a série dedicada a esse tema da relação entre educação escolar, desempenho leitor e estado da arte em ciência cognitiva da leitura.
* Luiz Carlos Faria da Silva é doutor em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp) e professor no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
[1] No Brasil, o Inep, responsável pelo Saeb, não publica linhas de corte para indicar o nível mínimo de proficiência necessária para cada fase de escolaridade. Nos EUA, o Naep – National Assessment of Educational Progress – as publica. As análises feitas no artigo usam proficiências mínimas para cada fase de escolarização. Elas foram estabelecidas, em 2011, pelo MTE - Movimento Todos pela Educação, em seu relatório intitulado De Olho nas Metas. O MTE, contudo, deixou de informá-las nas edições subsequentes de seus relatórios sobre metas. E o relatório de 2011 não está mais disponível no sítio eletrônico do MTE. O MTE parece ter assumido a posição do Inep quanto a isso.
As análises que circulam no Brasil tendem a usar a proficiência média nacional como padrão de comparação. As proficiências médias nacionais, entretanto, são impactadas por uma grande número de baixas proficiências. Por isso elas ficam sempre muito perto do mínimo esperado. As informações produzidas no âmbito do Saeb são públicas, inclusive os boletins de cada escola, e estão disponíveis no site do Inep.
[2] O Naep - National Assessment of Education Progress – é conhecido nos EUA como National Report Card. No Naep, desempenho esperado, em cada fase de escolaridade, é somente o classificado como proficient e advanced. Isso, no Saeb equivaleria a adequado e avançado. Mas, ao contrário do que faz o Naep, o Saeb considera esperados desempenhos dos níveis básico + adequado + avançado. Portanto, só considera abaixo do mínimo esperado desempenhos insuficientes. Por isso os resultados dos alunos brasileiros no Saed não parecem tão ruins quanto o desempenho dos estadunidenses no Naep. São, entretanto, de fato, muito piores.
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