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Autora de tese de doutorado sobre Mr. Catra critica pensamento “elitista e preconceituoso”

Mylene Mizrahi (de blusa rosa, no centro), em baile funk na Fundação Progresso, no Rio, durante a elaboração de sua tese de doutorado | Arquivo pessoal
Mylene Mizrahi (de blusa rosa, no centro), em baile funk na Fundação Progresso, no Rio, durante a elaboração de sua tese de doutorado (Foto: Arquivo pessoal)

Em 13 de julho, a Gazeta do Povo publicou uma matéria sobre temas pouco ortodoxos escolhidos para teses de doutorado e dissertações de mestrado em universidades públicas brasileiras. Com o título de “Dez monografias incomuns bancadas com dinheiro público”, a lista apresentava, por exemplo, trechos de trabalhos sobre o Big Brother Brasil, a “categoria piriguete” e o youtuber Felipe Neto.  

O texto afirma que, apesar de a universidade ser um espaço de inovação, alguns projetos são difíceis de explicar ao contribuinte.

Agora, a Gazeta do Povo abre espaço para que uma das autoras citadas apresente seu ponto de vista. O artigo que segue foi escrito por Mylene Mizrahi, autora do trabalho “A estética Funk Carioca: criação e conectividade em Mr. Catra”, que lhe rendeu um título de doutora em Antropologia e Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Na terça-feira pela manhã recebi a notícia, através de uma professora amiga da Universidade Federal de Juiz de Fora, de que minha tese de doutorado estava sendo desqualificada, junto com outros nove trabalhos, em matéria publicada pelo jornal Gazeta do Povo. Minha amiga estava indignada, com a matéria e com o ataque ao meu trabalho, cuja qualidade e caráter precursor é amplamente reconhecido pela comunidade acadêmica. Tomo assim a revolta da professora amiga, que ecoou com tantas outras manifestações de solidariedade recebidas, como pista para minha resposta, gentilmente ofertada pelo jornalista autor da matéria. Parto assim de meu trabalho para chegar ao projeto mais amplo a que se refere o ataque recebido.

É difícil crer que os trabalhos elencados tenham sido minimamente analisados. A impressão que se tem é que o autor, movido por preconcepções e um certo elitismo, se deixou atrair pelos temas expressos nos títulos e assim fazer o seu recorte. Reuniu trabalhos de temáticas não hegemônicas e que, de sua perspectiva, não justificariam a pesquisa acadêmica: cultura popular, sexualidade, homoerotismo, corpo feminino, identidade negra. Além do mais, não é preciso muita investigação para saber que minha tese foi premiada em primeiro lugar em concurso realizado pelo Instituto Pereira Passos (IPP-Rio), ligado à Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro, em cerimônia conduzida no auditório do jornal O Globo. Recebi o prêmio das mãos do então prefeito Eduardo Paes como reconhecimento de que os saberes que eu desvendara permitiam entender melhor o Rio de Janeiro e seriam assim auxiliares na implementação de políticas públicas. Isso mesmo: um prêmio concedido em ambiente nada contra-hegemônico a uma pesquisa de caráter não utilitário que permitiria implementar políticas úteis.  

A pedido do Gazeta explico aqui o que levou à escolha de meu tema. Em seguida retomo meu argumento para tentar entender o que motivou a matéria que aqui analisamos.  

Como todo jornalista e todo editor de jornal deveria saber o funk é manifestação das mais expressivas da cultura brasileira contemporânea. As apresentações das cantoras Anitta e Ludmilla na abertura das Olimpíadas 2016 atestam o que falo. E foram os aspectos estilísticos, criativos e de inovação do funk que sempre me interessaram, justamente aqueles que o autor da matéria diz faltar nos trabalhos que relacionou. Ocorre que ele talvez não tenha conhecimento do que vem a ser a pesquisa nas ciências humanas e menos ainda nas ciências sociais. O que buscamos, enquanto produtores de conhecimento, é justamente o “incomum”, como no título de sua matéria, pois o nosso dever é justamente ir além dos saberes de senso-comum. Se fosse para reiterar o que é de conhecimento amplo não precisaríamos fazer pesquisa, e aí sim o contribuinte teria motivos para protestar.  

Venho investigando o universo funk carioca desde 2002, com minha primeira pesquisa, A influência dos subúrbios na moda da Zona Sul, conduzida em universidade privada. No mestrado, em trabalho de campo de dezoito meses, produzi uma etnografia do baile funk a partir da dança, da corporalidade e da indumentária, a ser publicada em breve. Por fim, chego ao doutorado e junto a Mr. Catra e sua rede de relações realizo outros dezoito meses de trabalho de campo e elaboro sobre a criação musical e as estéticas do corpo. 

É de se esperar portanto que o mundo que desvendo não seja óbvio. Com o funk, e os muitos deslocamentos que fiz para cumprir a agenda de shows dos artistas que acompanhei, vi um Rio de Janeiro conectado pela estética, cujas partes geográficas e sociais nem produzem um amálgama nem tampouco encontram-se cindidas, como em uma “cidade partida”. O funk produz conectividade, uma relação ambígua com a sociedade envolvente, com o alto gosto, com o poder oficial, na qual o conflito, o embate, não é sinônimo de recusa da relação, mas um dado dela. Esse aspecto conflituoso, loquazmente expresso pelos samplers que simulam tiros de armas de fogo, é ressemantizado por Mr. Catra em suas paródias musicais, por meio das quais ele subverte símbolos caros da identidade nacional. Ao erotizar peças icônicas da MPB e do Rock Brasil o “negro” Mr. Catra provoca o riso em seu público “branco” e com sua versão hilariante de, por exemplo, Tarde em Itapoã, engaja seu público e debocha da cultura oficial. Antes, contudo, ele jocosamente avisa: “Chega de funk!. Funk é só baderna, é tráfico de drogas! Agora chegou a hora da cultura...” O costume de querer ditar o que é ou não é cultura perdura entre as elites, como mostra a matéria que aqui discutimos. Aponta o que não deve ser estudado e, por extensão, o que deveria ser estudado.  

A matéria a que respondo acompanha uma agenda que vem ganhando força. Nela podemos vislumbrar interesses que se afinam com projetos como o Escola Sem Partido, que tem a falsa pretensão de despir o ensino de seu viés ideológico, como se isso fosse possível. O que se busca é revestir o ensino de uma outra ideologia, de viés conservador, que considera o ensino da história das religiões de matrizes africanas irrelevante ou que as identidades de gênero não devem ser problematizadas ou expressas em sua multiplicidade. Qualquer semelhança com os temas dos trabalhos elencados no artigo não é mera coincidência. Mas para além de querer controlar o que é ou não é dito em sala de aula, almeja-se deslegitimar as ciências humanas como campo de pesquisa, como produtoras de saberes relevantes para os desenvolvimentos humano e social. Como contrapartida, quer forjar-se a noção de que são os saberes técnicos aqueles que constituiriam as ciências e, o que é pior para o Brasil, contribuiriam para avanços sociais.  

A matéria na Gazeta do Povo traduz um pensamento que não é apenas elitista ou preconceituoso, mas sintetiza um projeto de nação não muito inteligente. Pois se a busca é por oferecer melhor qualidade de vida à população é preciso não apenas entender o que as rege mas reconhecer que avanços sociais não se fazem apenas de avanços econômicos, contas públicas equilibradas e saberes “técnicos” de ponta. Há no Brasil um abismo entre suas populações, uma dívida social como poucas, em parte porque parcela atuante de suas elites se recusa a reconhecer que se não forem feitos investimentos relevantes na área social não haverá ajuste fiscal que dê conta de populações historicamente marginalizadas, não apenas do mercado de trabalho mas da educação e da cidadania. Em vez de insistir em um “estado mínimo”, é preciso levar a sério o fato de que vivemos em um país profundamente desigual e que os ajustes fiscais precisam ser conduzidos lado a lado com o compromisso de evitar que privilégios de classe, raça e gênero permaneçam atuando e estruturando a nossa matriz social. Não podemos, como diz a sabedoria popular, jogar fora o bebê junto com a água do banho. 

Ainda durante o trabalho de campo, Mr. Catra, meu grande parceiro de pesquisa e a quem o jornal, por extensão, desqualifica, anteviu que a tese seria premiada. Sábio como é, captou a riqueza do que produzíamos ali, coletivamente: eu, ele, músicos, familiares, parceiros, amigos. Já a Gazeta do Povo, produzida por saberes hegemônicos, não teve a mesma perspicácia. Mas não deixou de reconhecer a relevância de Catra como ícone da cultura brasileira ao ilustrar sua matéria com uma imagem do artista e seu riso irônico...

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