Na semana passada, um caso envolvendo quatro crianças com síndrome de Down que frequentavam Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) em Curitiba repercutiu entre pais e profissionais da educação especial. As crianças foram impedidas de continuar frequentando os equipamentos públicos depois que a prefeitura conseguiu derrubar uma decisão liminar da Justiça que permitia que essas crianças continuassem frequentando a educação infantil mesmo passando da idade máxima permitida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
De acordo com a Secretaria Municipal da Educação, a LDB não prevê a retenção de crianças que completem seis anos de idade na educação fundamental e a definição sobre a necessidade de acompanhamento com profissionais ocorre a partir da “observação individual de cada criança e estudante quanto ao nível de comprometimento e características individuais em relação à locomoção, higiene e alimentação”. Os pais foram informados que as crianças não poderiam mais frequentar os CMEIs e deveriam ser matriculadas no ensino fundamental, mesmo com o ano letivo já iniciado há meses.
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A decisão judicial que beneficiava os pais era amparada por uma manifestação do Ministério Público que afirmava que a retenção de crianças com desenvolvimento atípico na educação infantil podia ser “benéfica ao seu desenvolvimento, pois os primeiros anos de vida o cérebro está mais maleável permitindo a ampliação das sinapses e melhora da plasticidade cerebral”. O parecer foi dado pela 3.ª Promotoria de Justiça da Infância e Juventude de Curitiba.
O ocorrido é um exemplo de como a judicialização – a resoluções de questões na alçada da Justiça – alcançou a educação no Brasil. Bastante comum na área da saúde, com a abertura de processos para demandar o financiamento público de medicamentos originalmente não cobertos pelo SUS, ela também aparece em outros aspectos da vida cotidiana – entre eles, na educação.
Seja para resolver conflitos ocorridos no ambiente escolar, para dirimir questões sobre a idade de corte para efetuar uma matrícula ou, simplesmente, para exigir acesso a uma creche em tempos de escassez de vagas, cada vez mais pais têm recorrido aos tribunais. Mas como, exatamente, se dá a judicialização da educação, e no que ela acarreta?
“A judicialização significa que alguns problemas que são relativos a determinados direitos dos cidadãos passaram a ser decididos ou garantidos por órgãos do Poder Judiciário e não mais pelas vias mais tradicionais”, define o professor Carlos Roberto Jamil Cury, professor da pós-graduação em Educação da PUC-MG.
“É uma espécie de recurso de que o cidadão se serve para exigir um direito que não está sendo atendido pelo Executivo ou pelo Legislativo. Existe hoje no Brasil uma maior consciência social de que somos titulares de um direito e, portanto, temos a possibilidade de exigir esse direito”, completa.
Desde a implantação da Constituição Federal de 1988, que ampliou a gama de direitos e também facilitou o modo de acessá-los, “há um aumento da judicialização em várias áreas”, resume Álvaro Chrispino, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) e especializado no tema.
“Há motivos nobres e outros nem tanto para esse fenômeno. Por um lado, há maior facilidade de acesso à Justiça, como a criação dos Juizados Especiais que dispensam a intermediação de advogados e favorecem a entrada de processos. O motivo menos nobre é o fato de acharmos que os processos podem ser uma maneira de ‘ganhar dinheiro’ e também estamos mais intolerantes, judicializando questões que são próprias e naturais das relações sociais”, argumenta.
Judicialização e juridificação
Para Cury, é possível fazer uma distinção entre duas situações que ocorrem quando o Judiciário se envolve para resolver questões relativas à educação: o professor define a judicialização como a adoção de medidas para salvaguardar um direito líquido e certo da cidadania (como as vagas em creches), enquanto a “juridificação” seria um “excesso de intervenção do Poder Judiciário em espaços em que deveria haver antes o protagonismo, a iniciativa, do poder concernente àquele direito”. Esta situação aparece, segundo o professor, em casos que antes eram resolvidos dentro do próprio âmbito escolar e hoje são levados para uma resolução nos tribunais.
São vários os casos em que a juridificação se manifestaria, como em episódios de discordância, eventuais agressões no ambiente escolar, e até divergências sobre o currículo, que no passado eram tradicionalmente resolvidas através do diálogo interno.
“No passado havia uma mediação por outros atores pedagógicos. Você tinha o inspetor, o coordenador, o supervisor, o orientador. Era uma espécie de ‘barreira protetora’ antes de chegar ao professor que, hoje, muitas vezes, não existe mais”, aponta Cury.
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“O professor muitas vezes é obrigado a enfrentar uma situação dessas diretamente. Ao lado da função pedagógica de ser um transmissor de conhecimento, ele tem que encarar situações como um enfrentamento por parte de alunos e pais porque deu nota baixa, por exemplo”, completa.
De acordo com Alvaro Chrispino, existe uma transferência de responsabilidades de mão dupla operando nas relações atuais entre as escolas e as famílias. “A família pode, por exemplo, dizer que a ‘culpa’ da não aprendizagem ou da reprovação de seus filhos é da escola, tentando justificar o pouco tempo que pensam dispor no acompanhamento dos filhos visto que trabalham demais”, diz.
Já os professores podem apontar na direção oposta, indica Chrispino, argumentando que os pais não se ocupam o suficiente do atendimento às necessidades dos filhos, ao mesmo tempo em que justificam o déficit de aprendizado que as crianças trazem das séries anteriores.
Para o pesquisador, “uma solução viável é a aproximação da família com a escola e o acompanhamento mais rotineiro por meio de encontros ou mesmo de informação usando as redes sociais, impedindo que os problemas cheguem ao extremo, quando diminuem as possibilidades de reversão e solução”.
Os especialistas no tema apontam que a “juridificação” se manifesta especialmente com a entrada da Justiça para definir questões que deveriam ser prerrogativas dos órgãos competentes, como os conselhos de educação.
“O Judiciário pode acabar subtraindo dos órgãos educacionais a atribuição sobre os aspectos pedagógicos. Aqui no Paraná, vimos isso com as ações sobre o corte etário”, aponta Adriana Dragone Silveira, professora da UFPR, que estuda os efeitos da judicialização no Estado.
Ela se refere às discussões sobre a data-limite para a criança completar 6 anos e obter matrícula no Ensino Fundamental – enquanto o Conselho Estadual de Educação defendia 1.º de março como a data final, a Justiça atendeu ao requerimento do Ministério Público (MP) para que o prazo fosse estendido até 31 de dezembro, algo que depois foi garantido em lei pela Assembleia Legislativa. “A decisão ficou muito baseada nas opiniões do sistema de Justiça, não levando em consideração a normatização do Conselho”, entende Adriana.
Decisões travadas
O outro lado da moeda é a própria judicialização de questões como o número de vagas em creches, cujo acesso é um direito assegurado pela Constituição – na prática, porém, nem sempre o caminho até a garantia do direito é tão simples como a leitura da lei sugere. No Paraná, quando faltam vagas, decisões judiciais pela matrícula de novos estudantes têm sido suspensas, sob alegação do peso sobre as contas públicas.
“Temos muitas ações que estão travadas por decisão da presidência do tribunal. Em Cascavel, Londrina, Curitiba, praticamente todas as ações são suspendidas quando o juiz dá a decisão e determina que sejam concedidas as vagas, os municípios recorrem até o presidente do tribunal e ele suspende”, relata Marcelo Diniz, coordenador do núcleo de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado.
A maioria das famílias que busca a Defensoria é de baixa renda, e as ações costumam girar em torno de duas questões principais: o acesso à educação infantil ou a reivindicação por profissionais especializados para lidar com crianças com deficiência. Se este último caso tem obtido mais sucesso, a busca por vagas ainda esbarra na falta de consenso por parte do Judiciário.
“Nos últimos anos, a questão do acesso à educação infantil tem até diminuído, porque as famílias não têm recebido a resposta que esperam. Aqui em Curitiba já se diz que não adianta entrar com ação para resolver, porque a gente sabe que a maioria é travada no tribunal”, afirma Diniz.
Isso é mais notável nas ações movidas pelo Ministério Público, que costumam ter caráter coletivo, reunindo centenas de casos. “As demandas coletivas, apesar de serem mais isonômicas e justas, no sentido em que não atendem apenas os indivíduos que sabiam quais instituições procurar, não têm tido posicionamento 100% favorável quando chegam ao Judiciário”, comenta Adriana Dragone Silveira.
“Há ainda muita dissidência nas decisões. Vários desembargadores usam os argumentos da não-interferência sobre o Poder Executivo. No Paraná em específico, há uma decisão do Tribunal de Justiça que suspende todas as liminares da educação infantil em nome da questão orçamentária”.
Estratégias processuais
A realidade do estado tem levado à adoção de diferentes estratégias na defesa dos direitos das famílias que ainda buscam vagas em creches e outras instituições de ensino infantil. Buscando um caminho diferente daquele adotado pelo MP, a Defensoria Pública tem preferido ações individuais no lugar das demandas coletivas.
“Há uma dificuldade maior para argumentar pela suspensão do individual. Com a coletiva, podem dizer que se uma decisão beneficia mil pessoas, vai ter um impacto grande, causando uma lesão no erário público. O ônus argumentativo é muito maior quando se trata de apenas uma criança”, indica Marcelo Diniz.
Essa estratégia é legítima no caso do Paraná, entende Adriana Dragone, pois as ações coletivas têm encontrado mais restrição. No entanto, a especialista alerta que no longo prazo o problema das contas públicas permanece, pois conforme as decisões se acumulam, o número de vagas abertas poderia se aproximar daquelas criadas após uma decisão favorável em uma ação coletiva.
“O caso individual, quando se soma um conjunto grande, a centenas de casos em um ano, vai ter um enorme impacto. O município segue sem ter condições de se preparar para fazer esse atendimento com qualidade”, analisa a especialista.
Segundo Marcelo Diniz, “a Defensoria entende a posição do tribunal, pois não é como se as ações não tivessem impacto. Elas têm impacto. Mas a gente entende que a criança é prioridade absoluta da Constituição e que a educação é um direito fundamental. Se tiver que fazer corte em qualquer lugar para priorizar a educação, é ela que tem que ser priorizada”.
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