A cartilha "Caminho Suave" não tem relação nenhuma com a Política Nacional de Alfabetização (PNA), lançada pelo Ministério da Educação (MEC) em abril do ano passado. Mesmo assim, os elogios do presidente Jair Bolsonaro à publicação e a falta de transparência de como a PNA será implantada – nada saiu ainda do papel –, dão espaço para ruídos na comunicação e incertezas até entre os especialistas que concordam em grande parte com as propostas do MEC.
Um deles é o presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Oliveira. Autor dos materiais didáticos utilizados no município de Sobral, no Ceará, o município com o melhor ensino do Brasil, Oliveira fundamenta com dados científicos o incentivo do governo à utilização de elementos fônicos na alfabetização, demonizados por muitos educadores que desconhecem as descobertas da ciência das últimas décadas.
Por outro lado, ele faz críticas ao modo como o MEC tem apresentado a questão, não só pela falta de diálogo com representantes da sociedade civil, mas também sobre a redação de pontos específicos do decreto da PNA, como a previsão de que haverá o desenvolvimento, por parte do governo, de materiais didáticos (artigo 8º). Apesar de o secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, garantir que não é esse o objetivo do MEC, o texto da PNA dá margem para essa interpretação.
"Se o governo começar a produzir livro didático... isso é coisa do século XIV", afirma. "São os países autoritários que têm meios oficiais, cartilhas oficiais (...). Isso assusta todo mundo que é democrata".
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Em entrevista para a Gazeta do Povo, Oliveira explica o que foi a cartilha Caminho Suave, o que se faz em Sobral, quais são as práticas equivocadas adotadas hoje no Brasil e o que ele vê de preocupante na postura do MEC ao tentar adotar a PNA.
Como o senhor avalia a cartilha Caminho Suave, recentemente elogiada pelo presidente Jair Bolsonaro?
João Batista Oliveira: A Caminho Suave é uma cartilha típica da década de 50, na qual se adotava o método silábico, como ba - be - bi - bo - bu. E, a partir da composição de sílabas, vão se formando as palavras, e as palavras, consequentemente, os textos.
Os textos eram escritos intencionalmente para conter grande número de palavras que contivessem essas sílabas e que, portanto, permitissem uma exercitação. Isso quer dizer que não eram só as sílabas puras e simples. Por inferência, o aluno acabava descobrindo a relação dos fonemas, mas não é um método fônico, em nenhum sentido da palavra, e sabemos que o método silábico não é o mais eficaz. Ele tem a sua eficácia, é claro, e pode ser aplicado ainda hoje, mas certamente não é o que se tem de mais desenvolvido.
Uma das coisas que mudou é que, quando se alfabetizava, primeiro se ensinava a ler as palavras e, nos outros passos, se começava a desenvolver um meio de subsistência desse aprendizado. Hoje, quando se alfabetiza, ao mesmo tempo, em outras partes da aula, se trabalha com texto, inclusive textos avançados, e outros instrumentos.
Sabe-se que, sem avaliar sua competência, a Caminho Suave foi responsável pela alfabetização de muitos brasileiros. Quando essa e outras cartilhas deixaram de ser recomendadas pelo MEC, que impacto isso causou?
João Batista Oliveira: O que aconteceu no Brasil quando expurgaram as cartilhas, na década de 90, é que a alfabetização ficou sem estímulo, os alunos não eram capazes de ler e não se fazia nada a respeito. Ao invés de acrescentar materiais à cartilha e aprimorá-la, seja no mesmo livro ou outros volumes, optaram pelos livros didáticos, como os atuais de 1º ano, que dão muita ênfase à compreensão de texto e nenhuma à leitura. E deu no que deu.
No conjunto de conhecimentos atuais que temos sobre o ensino da língua, é preciso ter instrumentos do tipo cartilhas e outros para o desenvolvimento de leitura, de fluência de leitura, e vários outros aspectos dos quais não se tinha conhecimento 40 anos atrás.
A Caminho Suave tinha algum instrumento para medir fluência de leitura? Se pensava nisso naquela época?
João Batista Oliveira: Não, naquela época não se cuidava dessas coisas, não era um tópico conhecido. Como não é no Brasil até hoje, não existe nenhum teste padronizado de fluência. Aliás, a palavra "fluência" é nova, se fala agora, na BNCC, embora seja mencionada poucas vezes.
Quando se fala em alfabetização no Brasil, Sobral é uma das referências, por seu sucesso educacional. Qual o segredo dessa prosperidade no aspecto "ler e escrever"?
João Batista Oliveira: O que eu posso dizer é que Sobral adota o material do Instituto Alfa e Beto há mais de 15 anos. Acho que a razão do sucesso está associada principalmente a isso. Eles foram os primeiros a adotar, e estamos sempre dando assistência técnica ao trabalho deles.
Os materiais se apoiam nos componentes fônicos?
João Batista Oliveira: Nós temos um currículo que define todas as habilidades a serem aprendidas e os principais componentes da alfabetização, como a consciência fonológica, a consciência fonêmica, o aprendizado da decodificação e a fluência de leitura.
No sentido do ensino da língua, há toda a preparação para conhecer como se mexe com livro, como é o nome das coisas, o que é página, etc. Desde os aspectos formais de ler até leituras mais avançadas, que o aluno não vai conseguir ler, a princípio, mas o professor vai ler para ele, para motivá-lo e desenvolver nele habilidades de compreensão de leitura.
O que os pedagogos e teóricos do Brasil não entendem é que ler e compreender são coisas diferentes, eles esquecem que há 10 milhões de analfabetos adultos que compreendem, mas não sabem ler. Por exemplo, se você contar uma história para uma criança de 5 anos que não sabe ler, ela entenderá, será capaz de responder perguntas sobre a história, repetir a história e, inclusive, mudá-la. Mas o que acontece quando você aprende é que você é capaz de ler sozinho.
Isso significa que, em um primeiro momento, não é necessário que haja tanta ênfase na questão da contextualização?
João Batista Oliveira: Um dos problemas do entendimento da questão da alfabetização no Brasil é essa ênfase exagerada na contextualização. Essa coisa de que tudo tem que ter sentido. Por exemplo, eles defendem que o texto para alfabetizar uma criança tem que fazer sentido. Essa ansiedade nacional de que tudo tem que ter sentido, na verdade, é que levou à procissão das cartilhas.
É necessário ter materiais próprios para alfabetizar, materiais próprios para desenvolver fluência de leitura e outros para compreensão de leitura. E é isso que o Alfa e Beto tem. Para cada uma dessas habilidades, há diferentes tipos de material.
Outros locais que adotaram o material têm o mesmo sucesso em "alfabetização" como Sobral?
João Batista Oliveira: Vários lugares do Brasil adotaram, mas não é como Sobral porque o sucesso de lá não é só de alfabetização. Sobral tem um sistema de ensino, uma estratégia contínua, tem orientação sequenciada, supervisionada, e funciona direito. Os outros municípios também vão bem, têm bons índices, mas não como Sobral, que é um caso de mais sucesso.
Isso também depende de bons professores...
João Batista Oliveira: Há duas situações. Você pode depender só de professor, mas aí os professores precisam ser muito bons.
Porém, como a maioria dos professores do Brasil não é bem preparado, é preciso ter um material muito bom. Além disso, é preciso ter um sistema de organização de aulas, avaliação, acompanhamento, gerenciamento. É isso que Sobral faz, e não apenas na alfabetização.
O gerenciamento é fundamental, sem dúvida. O conhecimento é a parte mais difícil. Se você perguntar a algum professor de Sobral, por exemplo, o que é fonema, dificilmente alguém vai saber definir com precisão. O mais importante, neste caso, é ter um material e um gerenciamento robusto, no curto prazo.
Quanto às ações do MEC em alfabetização, o senhor você vê alguma sintonia com o que é aplicado em Sobral, por exemplo?
João Batista Oliveira: Em relação ao MEC, eu não sei nada e não conheço ninguém que saiba, converso com jornalistas, colegas, e ninguém sabe o que está acontecendo na Secretaria de Alfabetização (Sealf). Tudo que sei é que foram realizados dois eventos, dos quais um eu participei. Mas não há nenhuma comunicação, pelo que percebo, nenhuma abertura ou diálogo com ninguém.
Há algo preocupante. O decreto que saiu no fim do ano fala em "produzir material". Se o governo começar a produzir livro didático... isso é coisa do século XIV.
O Instituto Alfa e Beto tentou diálogo? Houve acolhimento?
João Batista Oliveira: Não. E é um comportamento muito estranho por parte do MEC. As coisas têm que ser públicas. Se há um plano, o MEC tem que dialogar com as pessoas. A ideia proposta por eles de que "não existe nada e nós vamos começar do zero" é muito estranha.
Existe, sim, muita coisa. Por que não aprimoraram o que já existe? Não se redescobre a roda. Essa história de produzir material, imaginemos que se lance a "cartilha do Bolsonaro", e, depois, vem o PT, daqui alguns anos. Haverá uma nova cartilha, a do PT? Não é papel de governo fazer isso, material didático tem que ser algo diversificado, plural. Isso é muito assustador.
Ainda não se tem notícia concreta sobre isso, o decreto apenas fala em "produção de material". No entanto, sabe-se que o governo está estabelecendo diretrizes, um currículo baseado em evidências científicas, quanto à questão da alfabetização. Isso é bom, ao seu ver?
João Batista Oliveira: Sim, mas orientar é orientar. O MEC não é babá. Orientar é ter um documento, um currículo que preste. Mas não se sabe ainda o que eles vão fazer, e ninguém sabe. O que se sabe é que está escrito no decreto sobre produzir material – o que é estranhíssimo. Enquanto ninguém sabe, ficamos muito assustados, isso assusta todo mundo que é democrata.
A ingenuidade é grande. Ou ele [Bolsonaro] acha que vai permanecer no poder a vida inteira, ou ele não mede as consequências. E se, depois, vier um governo ideológico, mas que ele não goste da ideologia? Não é assim que uma sociedade democrática funciona, e não é esse o papel do governo. Orientar é dar direções gerais, um currículo, orientações para a produção de material, mas não se produzir. A questão é saber qual é o papel do governo, e quando não se dialoga com as pessoas, é muito difícil que saia qualquer coisa boa de um processo desse.
A Cartilha Caminho Suave, por exemplo, era uma cartilha entre várias, feita pelo setor privado, e que competia com outras. Ninguém era obrigado a adotar, mas ela tinha grande sucesso porque era competente. Era algo privado em um processo democrático de participação, nos critérios de compra do MEC.
O currículo será de adesão voluntária, segundo o MEC. Qual a sua opinião sobre isso?
João Batista Oliveira: Não faz sentido. Se há uma política, tem que ser política para todo mundo. Mas a forma de implementar a política é que deve ser plural. Não tem que ser voluntário para ser avaliado.
Se houver uma política nova de alfabetização, e concorrência para a produção de material para que o setor produtivo apresente propostas, certamente será bom. O que uma sociedade espera do governo é que ele formule políticas, que se goste ou não, mas que dialogue com o que existe, e que ele procure adesão para fazer aquilo que quer.
Mas, sem saber o que é, e sem diálogo, fica tudo muito estranho. Sobretudo, a ideia de produzir material é apavorante. Isso pode ser um estopim, porque, amanhã, pode ser assim para qualquer coisa.
Mesmo que a política seja boa, baseada em evidências científicas?
João Batista Oliveira: Pode ser a melhor cartilha do mundo, não faz sentido. E, além disso, é importante entender que em qualquer coisa produzida no governo, a decisão sempre é política. Quando uma empresa privada, como o Instituto Alfa e Beto, a Saraiva, decide colocar algo no mercado, tem alguém que é responsável por aquilo. Quando se tem um livro oficial, se perde essa dimensão fundamental de um material didático.
Coisas dessa natureza feitas pelo governo frustram a legitimidade original de um material didático, que depende fundamentalmente da autoridade do autor. Essa é uma questão muito séria, que é o que levou o mundo inteiro a ter um setor plural na sociedade que produz essas coisas. Se o governo começar a produzir livro didático... isso é coisa do século XIV. São os países autoritários que têm meios oficiais, cartilhas oficiais.
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