Sob comando da gestão Bolsonaro, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), subordinada ao Ministério da Educação, premiou teses de doutorado que adotam uma perspectiva marxista e atacam o próprio governo.
O Prêmio Capes, criado em 2005, seleciona anualmente as melhores teses de doutorado em cada área do conhecimento. A edição de 2020 premiou 49 teses e concedeu menção honrosa a outras 94. Mas, apesar da gestão mais conservadora à frente do Ministério da Educação, a lista inclui teses com conteúdo fortemente ideológico de esquerda.
O prêmio é uma parceria da CAPES com a Fundação Carlos Chagas, Comissão Fulbright e o Instituto Serrapilheira. O edital prevê que a comissão julgadora de cada área será nomeada pelo presidente da Capes - que é comandada, desde fevereiro, por Benedito Aguiar. A iniciativa adota os critérios de “originalidade do trabalho, relevância para o desenvolvimento científico, tecnológico, cultural, social e de inovação e o valor agregado pelo sistema educacional ao candidato” para escolher as teses que serão premiadas. Cada um dos premiados receberá uma bolsa de pós-doutorado em uma universidade brasileira. O edital também prevê uma premiação adicional para o melhor trabalho geral em cada uma das três áreas (Ciências da Vida, Humanas e Exatas). Neste caso, o autor recebe uma bolsa de pós-doutorado fora do país.
A lista das teses vencedoras de 2020, divulgada neste mês, traz trabalhos notáveis: um estudo sobre a física dos neutrinos, um sobre antivirais para combater o zika e outro sobre a mobilidade urbana durante os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro.
Mas, em especial nas ciências humanas e sociais, alguns dos trabalhos premiados revelam uma forte carga ideológica de esquerda. Isso não significa que a universidade não deva permitir ampla liberdade de pensamento, mas reflete a forte presença das ideias de esquerda na academia e nas teses - ao ponto de elas serem premiadas durante uma gestão conservadora.
Em nota à Gazeta do Povo, a assessoria de comunicação da Capes afirmou que “as listas com a relação de membros das Comissões de Premiação de cada uma das 49 áreas de avaliação não são públicas no intuito de preservar o trabalho dos consultores e para que possam seguir com a atividade de emissão pareceres para Capes de forma imparcial e isenta”. O órgão reconheceu, entretanto, que as organizações parceiras da Capes na premiação das teses indicam membros das comissões. A entidade afirmou ainda que “a Capes não interfere na escolha de nenhum dos premiados”.
A Gazeta do Povo separou cinco exemplos dentre as teses que receberam o prêmio ou a menção honrosa na edição de 2020.
1) Arquitetando o terror: um estudo sensorial dos centros de detenção oficiais e clandestinos da ditadura civil-militar do Brasil (1964-1985)
Área: Arqueologia
Instituição: Universidade Federal de Sergipe
Autora: Caroline Murta Lemos
Descrição: Embora trate de um tema relevante e necessário, esta tese de Arqueologia vai muito além de um estudo sobre os centros de detenção e de tortura mantidos pela ditadura militar: o trabalho lamenta o “golpe” sofrido pela presidente Dilma Rousseff, ataca Jair Bolsonaro e apresenta a Revolução Cubana sob uma luz favorável.
Trecho: “Ressalto que esta tese foi elaborada em um período político turbulento no país que se iniciou com o golpe de estado que retirou a presidenta Dilma Rousseff do poder, em 2016, e que culminou, em 2018, na eleição do deputado federal Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal, para a presidência da república. Bolsonaro é um político de extrema-direita, pró-armamento, que homenageia torturadores da ditadura publicamente, que diz que vai metralhar seus oponentes políticos e que fomenta discursos de ódio - a ponto da Comissão Internacional de Direitos Humanos se mostrar preocupada com os posicionamentos do novo presidente. Bolsonaro é produto do fortalecimento do conservadorismo e da intolerância política no país que demonstra como a justiça de transição foi falha, como a tradição autoritária do Brasil nunca realmente nos deixou e como a nossa jovem democracia é tão frágil. Levando isso em consideração, apresento esta tese como mais uma voz contra esse governo e tudo que ele representa. Esta tese sou eu colocando meu bloco na rua em defesa da democracia e dos direitos humanos.”
O que a autora disse à Gazeta: A autora da tese ainda não retornou o contato da reportagem.
2) Transversalidade de gênero em políticas de cuidado: uma análise comparada das políticas de cuidado infantil no Brasil, Argentina e Uruguai durante o giro à esquerda
Área: Administração Pública
Instituição: Fundação Getúlio Vargas
Autora: Mariana Mazzini Marcondes
Descrição: a autora argumenta que a política latino-americana passou por um “giro à esquerda” antes do mais recente “giro à direita”. Ao descrever os acontecimentos, ela atribui características amplamente positivas ao primeiro (incluindo o chavismo venezuelano) e descreve o segundo com termos negativos. Embora afirme que há governos de “extrema-direita” na América Latina, ela usa uma classificação mais amigável quando se refere ao chavismo: “esquerda contestatória”. A tese traz também 36 citações críticas ao “neoliberalismo”.
Trecho: “Na virada para o Século XXI, a esquerda ascendeu ao poder em diversos países latino-americanos, o que ficou conhecido como giro à esquerda. Eles compartilharam o contraponto à hegemonia neoliberal e a defesa da atuação estatal para a efetivação de projetos políticos fundados na garantia de direitos, promoção de justiça social e redistribuição de renda. A expansão e inovação de políticas sociais tornaram-se peças fundamentais desses projetos. (...) Pouco mais de uma década após sua emergência, o giro à esquerda na AL experimentou seu ocaso, e vem sendo substituído por um giro à direita. Nele, houve uma retomada de propostas políticas caras ao neoliberalismo, enfatizando-se a diminuição do Estado e do gasto público. E, em alguns casos, como o brasileiro, houve um recrudescimento das concepções conservadoras e fundamentalistas sobre as relações de gênero e sexualidade, de forte conotação religiosa”.
O que a autora disse à Gazeta: “Se entendemos a política como um processo coletivo, em que todas as pessoas manifestam posições e dialogam, visando à negociação de conflitos para construir acordos que nos permitam viver em sociedade, tudo é político. O que diferencia o conhecimento científico sobre processos políticos (caso da minha tese) de opiniões políticas é que o primeiro é construído por meio do método científico, e seus resultados são baseados em evidências/dados. Nesse sentido, é possível (e desejável) que haja conhecimento científico crítico e comprometido com a transformação social, o que não significa menos rigor na aplicação do método científico de produção de conhecimento.”
3) Faces e interfaces de um dispositivo tecnopenal: o monitoramento eletrônico de presos e presas no Brasil
Área: Sociologia
Instituição: Universidade de São Paulo
Autor: Ricardo Urquizas Campello
Descrição: Nesta tese baseada nas ideias do pensador marxista Giles Deleuze e com 40 citações a Michel Foucault, o autor argumenta que o uso de tornozeleiras eletrônicas atende a uma lógica “neoliberal” de controle da população mais pobre, usando métodos economicamente mais eficientes do que o encarceramento.
Trecho: “Observar o cenário social e político da introdução do sistema de controle eletrônico no estado é situar o cruzamento entre a implacável nacionalização dos conflitos faccionais - estrelados agora por novos coletivos do crime, nativos das regiões Norte e Nordeste (...) - e a incorporação de mecanismos georreferenciados de localização de criminosos, oriundos das grandes potências do capitalismo global e alimentados pela indústria brasileira da punição. É considerar o encontro inoportuno entre os limites programáticos da penalidade neoliberal - centrada no tratamento punitivo da miséria e na absorção penal e penitenciária da população negra e da marginalidade urbana - e o redimensionamento das mortes matadas, inauguradas pelas chacinas rurais e hoje amplificadas pelos massacres carcerários”.
O que o autor disse à Gazeta: “Minha tese não possui um teor ideológico, pois não se vincula a nenhum tipo de ideologia, nos sentidos técnico, científico e político do termo. O que se pode dizer é que o meu trabalho possui um teor crítico. A crítica é um procedimento necessário e fundamental ao desenvolvimento do pensamento livre. Sem crítica não há liberdade possível.”
4) Pedagogias da Sexualidade e Relações de Gênero: os Manuais Sexuais no Brasil (1865-1980)
Área: História
Instituição: Universidade Federal do Paraná (UFPR)
Autor: Antonio José Fontoura Junior
Descrição: O autor analisa publicações de natureza sexual ao longo da história brasileira sob a perspectiva de Michel Foucault, para quem a sexualidade era uma manifestação das dinâmicas de opressão das mulheres pelos homens.
Trecho: “Trata-se de análises que possuem o seu valor histórico, mas que, em essência, estão pouco presentes nos estudos acadêmicos de sexualidade nos dias de hoje. Foram especialmente superadas pela perspectiva analítica desenvolvida por Michel Foucault para quem o dispositivo da sexualidade se relaciona às relações de poder, das quais a sexualidade é elemento destacado. Segundo essa concepção, os manuais sexuais poderiam ser lidos como ferramentas estratégicas para a produção das sexualidades masculinas e femininas, enquanto disputas de poder de gênero, no campo da sexualidade.”
O que o autor disse à Gazeta: não foi possível contatá-lo.
5) #falaestudante!: Um Estudo sobre o Legado da Expansão dos Institutos Federais aos seus Estudantes
Área: Serviço Social
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Autora: Michelli Aparecida Daros
Descrição: Repleta de elogios ao governo Lula, a tese traz 32 menções à “burguesia” brasileira e argumenta que, se o governo do petista teve um defeito, foi o de não enfrentar o capital financeiro de forma mais incisiva. O texto traz 87 citações a Marx e ao marxismo, e 127 citações ao socialista italiano Antonio Gramsci.
Trecho: "O método desta pesquisa, ou seja, o caminho que escolhemos percorrer para capturar a essência de nosso objeto tem, em parte, inspiração no percurso desenvolvido por Marx na elaboração de sua teoria social, que teve por objeto o estudo da sociedade burguesa, orientando-se no materialismo histórico-dialético, que, na interpretação de Netto (2011), é nuclearmente marcado pelas categorias marxianas de totalidade, contradição e mediação".
O que a autora disse à Gazeta: ela não retornou o contato da reportagem.
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