A possibilidade de centralização de um código de ética para disciplinar o exercício da docência tem ganhado mais palco em discussões. Interlocutores apontam que isso poderia ser benéfico no sentido de dar identidade corporativa à profissão. Também poderia restringir episódios de proselitismo político, por exemplo. Sem, contudo, engessar e ferir a autonomia didático-pedagógica dos profissionais.
Mas há quem questione a legitimidade de se tentar resolver dilemas éticos "à base da canetada". Nesse sentido, o ideal seria aprimorar a formação de professores. Trata-se, de toda maneira, de uma ideia longe de prosperar.
É no meio desse debate e no vácuo de literatura que surgem iniciativas como a proposta pelo artigo "Código de Ética Docente: Um Dilema". Um dos autores, Paulo Fraga da Silva, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e professor do programa de pós-graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi convidado pela Gazeta do Povo para comentar o tema.
Os autores indicam a necessidade de que o currículo de formação de professores abarque o tema, evidenciando o descolamento entre teoria e prática nos cursos de pedagogia e nos de licenciatura. A formação inicial é o momento propício para se antecipar questões complexas e problemáticas que o profissional deve enfrentar em sala de aula.
Embora a pretensão do artigo tenha sido a de simplesmente provocar a discussão, seus autores trabalham, sob uma linha mais investigativa, para apresentar dados empíricos coletados junto a professores da educação básica, estudantes de licenciatura e formadores de professores. O objetivo é entender se há interesse por um código de ética docente e quem poderia elaborá-lo.
Leia a íntegra da entrevista.
Em sua perspectiva, há receptividade para discutir o tema na academia?
Paulo Fraga da Silva: É um temário complexo. Na academia, tudo que envolve o termo "ética" não ganha tantos holofotes, porque é de difícil discussão e carrega em si uma complexidade que acaba por torná-la um pouco dificultosa. Esse repertório de conteúdos atitudinais está presente, mas costuma ser mais invisível, não ganha tanto palco.
A universidade é um contexto muito voltado para as hard sciences. Dentro do conhecimento de humanidades, há um recorte ainda mais complexo, que é a temária de valores, algo que ninguém quer problematizar. Essa é uma dificuldade histórica, e não apenas da academia.
É preciso admitir que o tema necessita ganhar certa racionalidade, sobretudo no aspecto da discussão. Mas, nesse processo de diálogo, precisamos nos antecipar. Nossa cultura é muito reativa, não conseguimos ser proativos. Por exemplo, mesmo que um indivíduo confirme sua intuição, há um processo mais racional, de tomada de decisões diante de dilemas, que deve ser enfrentado.
Profissionais da educação estão preparados para o enfrentamento de dilemas éticos em sala de aula?
Paulo Fraga da Silva: A grande maioria não está. E isso justifica, inclusive, a necessidade de se antecipar a discussão durante a formação de professores. Na pedagogia, há um certo descolamento entre a teoria e a prática. E estamos correndo atrás desse prejuízo. A colocam como um eixo de formação, como em programas de residência médica, nos quais o aluno vai para o hospital entender o ambiente.
O cenário atual de polarização política e casos de proselitismo em sala, por exemplo, também fomentam a discussão?
Paulo Fraga da Silva: O momento em que vivemos não é tão acolhedor. É desafiador. Mas é preciso fazer um trabalho contracultural e dar ferramentas para a comunicação dialógica. Nosso objetivo é inserir o tema nos cursos de formação de professores.
No cotidiano, o professor terá que ser um mediador de conflitos desde muito corriqueiros a outros mais complexos. E a tomada de decisões também vai depender do professor - se ele é legalista ou relativista. Ele, por si só, carrega complexidade. Nesse sentido, o código surge como um mote interessante.
Docentes concordam, em geral, com a existência de um código de ética? Por que a simples sugestão de adoção de um código de ética costuma ser polêmica?
Paulo Fraga da Silva: Em geral, não. Isso também depende muito do senso moral de cada pessoa. Alguns poderão se apropriar do código como uma lei. Mas, na minha opinião, o mais interessante é sair da legalidade e ir para a legitimidade. A sociedade brasileira é muito heterônoma, é preciso criar leis para questões de bom senso, do óbvio, até que alguém chegue a agir por princípios.
Alguém poderia indagar: "mais um código?". Sim, diante de outras leis que tem por aí. Às vezes, é preciso ter uma lei, regulamentá-la, e é preciso uma outra lei para que as pessoas a obedeçam.
Há queixas de que isso poderia engessar a atuação do profissional?
Paulo Fraga da Silva: Essa é uma das inquietações que existe, e ela é legítima. Surgem dúvidas como "quem vai elaborar o código?", por exemplo. Na minha opinião, deveriam ser os próprios professores. Mas, mesmo assim, os ganhos tendem a ser maiores. Ainda que o código não exista, ele deveria ser discutido na formação inicial do professor, sobretudo com esse caráter mais educativo.
Na prática, ele daria uma delimitação política para o professor, no sentido de corporação, como se tem entre advogados, médicos, engenheiros. Tudo que envolve educação, parece que se pode abrir mão de uma racionalidade. A sociedade, por exemplo, tem a bandeira do Escola sem Partido.
Como o senhor vê iniciativas como essa?
Paulo Fraga da Silva: A própria proposição não faz sentido. Primeiro, é preciso definir o que se entende como partido. É uma falsa ideia de que a educação e o território escolar têm "portas abertas", a famosa "casa da mãe Joana". Qualquer um pode falar o que quiser. Isso não acontece em outras profissões e, portanto, acaba esvaziando a profissão docente.
Estamos colhendo frutos de uma má formação de professores que fragiliza os profissionais diante de uma sociedade que quer pautar o que quiser. A escola é um espaço social, sim. Mas não dá para inverter os papéis. Os professores, bem ou mal, são pessoas que foram minimamente formadas para fazer o que fazem, possuem competências desenvolvidas ao longo de sua formação. Mas a educação, de modo geral, tem sido desbaratinada.
Há inúmeros especialistas falando sobre educação sem propriedade, porque não falam como alguém que tem a experiência da sala de aula. É a mesma coisa que não escutar os médicos durante a pandemia. São eles que lidam de frente com a situação. Mas na educação, todo mundo quer palpitar. Um corpus ético, portanto, daria uma delimitação e identidade à profissão.
O senhor afirma que os ganhos são maiores. O fato de não se centralizar o código de ética tem quais implicações?
Paulo Fraga da Silva: Como ele está disperso, e é ligado a instituições, acaba não dando identidade ao professor. Outro aspecto positivo, a despeito da ideia de que ele poderia engessar, seria tê-lo como mote, objeto de ensino na formação inicial do professor. Ele deveria entrar no currículo, deveria ser discutido. Até para sofrer modificações, junto a uma comunidade, uma vez que os dilemas se modificam ao longo do tempo.
O que podemos colher de exemplo da comunidade internacional nesse sentido?
Paulo Fraga da Silva: Em geral, os países propõem uma conduta ética não só com relação aos colegas de profissão, mas com relação aos pais, aos alunos, à comunidade. Nas sociedades democráticas, houve uma elaboração representativa do documento.
O que os códigos estabelecem são mais princípios e padrões. Eles não são tão específicos. O ideal é nivelar por cima, preservando a autonomia do profissional. Não é possível ser assertivo, o código não consegue prever toda e qualquer situação. Algo interessante de alguns dos códigos é que eles falam sobre uma espécie de auxílio aos professores principiantes por parte dos veteranos. Há estudos que apontam que professores abandonam a profissão nos anos iniciais. E isso acontece por fatores que vão além de salário baixo. Existem códigos que preveem que o professor seja acolhido pelo professor já maduro.
Quais exemplos de dilemas éticos são mais comuns?
Paulo Fraga da Silva: Há inúmeras situações. Por exemplo, professores que fazem vista grossa a alunos que não cumprem a taxa de frequência para ganhar uma bolsa de estudos. Em outros casos, profissionais se associam a determinado grupo, que quer derrubar um gestor, sob a consequência de perder o emprego. Também há relato de professores que maquiam dados de alunos para ter bom conceito em um determinado departamento.
Muitas vezes, o profissional precisa mediar conflitos mais complexos. Por exemplo, uma professora que se queixa para os pais de uma aluna que a filha não se comporta bem em sala. Os pais não acreditam e a docente precisa filmar a conduta da garota. Mas descobre que o pai da aluna é traficante. É preciso enfrentar esse tipo de situação.
E situações de proselitismo político em sala? Como ter equidade de tratamento em ambientes coletivos e tempos polarizados?
Paulo Fraga da Silva: O professor tem uma posição de autoridade. Mas, embora possa problematizar questões com os alunos, não deve persuadi-los. Trata-se de uma relação de poder assimétrica. É preciso tomar cuidado. E isso envolve uma postura ética. O problema é que chegamos em um ambiente muito inóspito.
O caminho é sempre o diálogo. O professor tem que ter educação para a cidadania ativa, precisamos fomentar que os alunos tenham gosto e hábito pela discussão. E isso envolve a questão do respeito a posições, que são legítimas. Buscar dar voz aos estudantes é muito importante, isso gera neles a sensação de pertencimento. Ele começa a perceber que as posições dele são consideradas, respeitadas.
Mas o país ficou muito dividido. E o mundo está muito chato. Não conseguimos nem conversar com outra pessoa. É algo tão extremo. Toda essa discussão ética envolve algo mais procedimental. Temos que construir consensos. Esse é o desafio. É competência democrática, não só ética.
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