Colaboração e confiança são, sem dúvida, os fatores que definem o salto que a Finlândia deu enquanto sociedade e que culminou numa das maiores revoluções educacionais que o mundo já viu.
A primeira experiência que tive no país nórdico foi em 2014, por meio de um programa do governo brasileiro chamado “Professores para o Futuro”. Fui da primeira turma dos VETs (Vocatinal Educational Trainning). Éramos 27 professores de vários estados brasileiros que passaríamos por uma experiência de cinco meses imersos no sistema educacional finlandês.
Depois da nossa turma, houve mais três versões do mesmo programa, que capacitou cerca de 140 professores da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica nos anos de 2014, 2015 e 2016.
Um dos objetivos desse programa é entender como o ensino técnico e tecnológico é concebido na Finlândia e quais são as suas potencialidades. A ideia era estudar essas características a fundo e trazer os seus princípios para o cenário brasileiro. Quando voltamos ao Brasil, tivemos cinco meses para analisar e colocar em prática o que aprendemos por lá, não como uma mera reprodução daquele sistema aqui, mas adaptando e recriando o que vivemos por lá à nossa realidade. Com isso, já são diversos os projetos e as experiências exitosas que temos pelo Brasil e que provêm dessa formação.
O dia a dia nas universidades de Apllied Sciences (ciências aplicadas) finlandesas, assim como nas escolas técnicas, que correspondem aos nossos institutos federais e à universidade tecnológica, emana colaboração, que, no sistema educacional finlandês, tem um aspecto material evidente. As salas de aula possuem mobiliário flexível. Sofás, mesas de reunião, enfim, diferentes espaços podem ser redivididos de acordo com cada atividade pedagógica proposta.
Já na sala destinada aos professores, os docentes não têm lugar fixo e eles otimizam o uso do local ocupando espaços livres e reservados por eles em dias determinados. Dentre os espaços que podem ser escolhidos existem: diversos tipos de salas de reunião, de estudo individual, espaços de convivência confortáveis com redes, sofás, poltronas e pufes, café, mesas de trabalho, entre outros. A mesma ideia é utilizada nos espaços de convivência dos alunos. São espaços confortáveis nos quais os estudantes possam passar muitas horas estudando, trabalhando em equipe e interagindo com os demais alunos e professores.
A noção de colaboração também é perceptível no plano intersubjetivo. Nas escolas finlandesas, tudo é colaborativo. A maioria dos trabalhos é realizada em grupos, que podem ser somente de alunos ou de alunos e professores. Para cada projeto, um time é designado e realiza em conjunto todas as atividades, da delimitação do que será estudado no semestre à forma de estudo ou como será feita a análise do processo empreendido.
O papel do docente é o de conduzir o projeto e potencializar as características positivas de cada um dos membros de sua equipe; auxiliar o desenvolvimento da tarefa a ser realizada e, principalmente, criar um ambiente favorável ao desenvolvimento das habilidades e competências fundamentais para o grupo. Essas competências estão relacionadas ao respeito às diferenças, autoconhecimento, responsabilidade, dedicação, comunicação e confiança em si e nos parceiros de projeto.
Visitei a escola técnica de Kiipula, cidade que fica no sul do país, a cerca de 90 km da capital, Helsinque. Fui recebida por uma funcionária que me levou para tomar um café na cafeteria da escola. Lá, os alunos eram responsáveis pela limpeza, organização, produção e venda dos produtos à comunidade.
Nessa mesma escola, pude acompanhar o desenvolvimento de duas outras empresas ligadas aos cursos técnicos que a escola oferece, o de Informática e o de Vendas. No curso de informática, participei da reunião em que os alunos definiam o público-alvo da empresa; o fluxo de atendimento, propaganda e documentação necessária. Cada dupla ou trio tinha o seu papel bem definido e, na reunião, trazia os resultados do trabalho que havia desempenhado durante a semana.
O professor instigava os alunos a analisarem as tarefas e pedia que eles identificassem quais poderiam ser consideradas concluídas e quais ainda necessitavam de melhorias. Juntamente com o grupo, o docente definia quais eram as habilidades e competências necessárias para a finalização das atividades. Cada aluno, então, prontificava-se a finalizar uma das atividades, de acordo com as habilidades que considerava possuir.
O grupo de vendas tinha que fazer guirlandas de natal e vender em um mercado local. A tarefa envolvia desde conseguir o material para as guirlandas, confeccioná-las, conservá-las (eram feitas de galhos de pinheiro), analisar o valor gasto, alugar o espaço no mercado local, fazer a propaganda e calcular os custos e os lucros da ação.
Conversei com a aluna que seria a líder do grupo e ela me disse que, muitas vezes, no começo, ela teve que lembrar a todos que a principal função da atividade não era vender o máximo a qualquer custo, mas manter o espírito da coletividade e da confiança, manter o grupo unido.
Na Finlândia, uma das principais lições do trabalho colaborativo é a de que “mais importante do que chegar primeiro ou ganhar é chegar junto”. Ninguém pode ser deixado para trás, excluído ou desrespeitado, porque todas as habilidades são importantes e, combinadas, elas fortalecem o grupo. Confiar nos pares e sentir-se parte do grupo é fundamental.
Outro exemplo de colaboração utilizada no processo de ensino é o ambiente de aprendizagem desenvolvido pela TAMK (Tampere University of Applied Sciences). Chamado de Pro akatemia e conhecido como “a escola dos sonhos”, esse projeto tem foco no empreendedorismo e na formação de lideranças, atendendo a diversos cursos, entre eles o de gerenciamento de projetos, vendas, marketing, administração, eventos e web-design.
Nesses cursos, os discentes escolhem se continuarão a ter aulas regulares (nos moldes finlandeses) ou se dedicarão dois anos de sua formação a montar, gerenciar e dirigir empresas que atendam ao mercado local sob a tutela de seus professores.
Em um ambiente de apoio, os alunos desenvolvem seus projetos, contam com o amparo de consultores (seus professores) e têm as experiências mais valiosas de seu processo educacional: as práticas. Lá, eles podem ver suas empresas falirem, identificar as falhas e construir conhecimento a partir destas vivências, porque errar na Finlândia é tão valorizado quanto acertar, uma vez que é no erro que se dão as melhores oportunidades de aprendizagem.
Quem erra mais ousa mais, tem mais a aprender e pode se desenvolver muito mais. Assim, ao término do curso de Administração, os alunos terão gerenciado e dirigido empresas de sucesso e empresas que faliram por diferentes motivos e conhecerão muito mais a fundo o mundo que os espera fora dos muros universitários.
Em 2017, fui selecionada pelas universidades TAMK e HAMK (Hameelinna University of Applied Sciences), juntamente com outros dezenove professores, todos VETs, para a segunda etapa do desafio: desenvolver um modelo de formação continuada para a educação profissional e técnica e uma formação que auxilie os VETs de todo o Brasil, com outros professores da Rede Federal que estudaram gestão e empreendedorismo no Canadá e no Reino Unido, a oferecerem um curso de formação similar ao que tivemos na Finlândia aos professores que não tiveram essa oportunidade.
Estivemos durante um mês na Finlândia imersos na construção de um currículo inovador, ou, como denominamos, “fora da caixa”, que contemple os fundamentos para a educação para o século XXI e alguns dos fundamentos educacionais primordiais à educação brasileira.
Esse processo continuou no Brasil e dará início, no primeiro semestre de 2018, ao “BraFF” (Brasileiros Formando Formadores), que pretende desenvolver o currículo a ser utilizado para a formação de quase dois mil professores da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, no programa denominado PROFUTURO. Para tanto, os 140 profissionais que participaram dos programas VET Canadá e Reino Unido também participarão do BraFF.
Para desenvolver esses projetos, foi necessário criar entre nós um grupo aos moldes finlandeses: com colaboração e confiança. Durante esse processo, pude perceber algumas características culturais nossas, como a não valorização de qualidades, mas de falhas; a dificuldade que temos de discutir ideias sem sentir-nos ofendidos; o quão difícil é aceitar a opinião do outro e confiar que ela pode ser tão boa quanto a minha, entre outros aspectos socioculturais.
Talvez essas características sejam consequência de anos de ensino “tradicional”, que não tinha como foco desenvolver outras habilidades a não ser a de sentar, ficar em silêncio e reproduzir. Depois da formação que tivemos, o grupo que regressa agora ao Brasil não é o mesmo que foi à Finlândia.
Hoje, nos conhecemos melhor, sabemos no que podemos colaborar para o grupo, confiamos uns nos outros, desenvolvemos nossas habilidades de escutar e confiar que opiniões diferentes das nossas podem ser igualmente boas e gerar bons resultados. Essa vivência comprova, na prática, os benefícios de uma Educação voltada ao desenvolvimento do estudante.
*Maristella Gabardo é docente do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e doutoranda do programa de Linguística Aplicada da UNICAMP.
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