Em Chile, a memória obstinada, documentário do final dos anos 90 do diretor Patricio Guzmán, há uma cena simbólica: estudantes em idade universitária são colocados diante de cenas do palácio de governo sendo bombardeado na manhã de 11 de setembro de 1973, no momento do golpe que levou Augusto Pinochet ao poder. Confrontados com sua história quase 25 anos após os fatos, os jovens que não haviam vivido o acontecimento se surpreenderam e, em alguns casos, foram às lágrimas – mesmo com o país já de volta à democracia, eles jamais haviam visto as cenas que se passaram em seu próprio país e chocaram o mundo na época, mas seguiam como um tabu no Chile.
DIÁRIO DE CLASSE: O mínimo que você precisa saber para entender o que acontece dentro de escolas e universidades
Duas décadas mais tarde, o cenário é diferente – ainda assim, o assunto não deixou de ser delicado no país. A reforma educacional de 2009 incorporou oficialmente o ensino sobre o golpe de Estado e a ditadura no currículo nacional, algo que antes as aulas de História costumavam ignorar sob o pretexto de que se tratavam de fatos muito recentes para abordar na disciplina. A entrada do tema nas bases curriculares respondia a uma notória ausência no ensino dessas questões: em 2006, por exemplo, María Isabel Toledo, professora da Faculdade de Psicologia da Universidade Diego Portales (UDP), realizou um levantamento e constatou que 49% dos colégios simplesmente ignoravam o período posterior aos anos 1970 em seus programas de História.
Hoje, o currículo prevê uma discussão sobre as razões que levaram ao golpe militar, às discrepâncias entre os projetos políticos anteriores ao pinochetismo, e com frequência leva ao que muitos acadêmicos chilenos definiram como “teoria do empate” – e busca por contrabalançar os avanços econômicos obtidos pela ditadura com a brutal repressão do período, que levou a mais de 3 mil mortos e desaparecidos e a pelo menos 40 mil casos de prisões e torturas comprovados pelas numerosas investigações desde a queda de Pinochet. Os planos de estudo também sugerem a realização de diversas aulas para discutir a importância dos direitos humanos e de um Estado de Direito como o existente após a retomada da democracia.
Estudiosos chilenos, no entanto, entendem que os avanços ainda não foram suficientes para que o triste passado do país seja plenamente discutido pelos professores. Muitos professores ainda minimizam o tempo dedicado ao tema em sala de aula ou argumentam que “falta tempo” para chegar aos fatos da metade final do século 20, que englobam o período ditatorial. A Gazeta do Povo conversou com a pesquisadora María Isabel Toledo sobre a situação do ensino chileno no que diz respeito à ditadura de Augusto Pinochet:
Uma leitura do currículo chileno atual sugere que ele propõe discussões interessantes sobre a ditadura e as violações de direitos humanos. Parece suficiente o que existe hoje?
O currículo chileno, que é nacional e único, inclui tanto na educação primária quanto na secundária unidades nas quais se deve trabalhar as questões da ditadura e dos direitos humanos. Isso é muito relevante e deve ser reconhecido. Foi uma recomendação explicitada no Informe Valech (comissão da verdade que investigou casos de tortura e desaparecimentos políticos) e resultado de uma longa disputa entre os que consideram que a história é só o passado (o golpe de Estado ainda não era parte desse passado) e que defendiam que falar do tema não permitia uma reconciliação, e aqueles que reconhecem a história recente como parte da história e valorizam o trabalho da memória para que algo assim nunca mais se repita.
No entanto, dado que o currículo é sempre uma seleção, não basta que esteja escrito nos programas escolares se não há motivação para abordar o tema. As instituições em seus projetos formativos também selecionam os conteúdos ou induzem os professores a fazê-lo. O currículo nunca é neutro. Por isso, é importante que os estabelecimentos escolares incluam em seus projetos educativos institucionais a formação em direitos humanos, o trabalho de memória coletiva e a formação cidadã. Nem todos fazem isso.
Além disso, os professores também selecionam o que ensinam e o valor que dão ao tema trabalhado em sala de aula. Aqui operam medos, deficiências de formação, falta de conhecimentos históricos, condições de trabalho deficitárias para preparar as aulas, falta de material pedagógico para abordar esses temas.
Também ocorre que o sistema de avaliação de qualidade da educação privilegia outros temas sem relação com o aprendizado das ditaduras e dos direitos humanos e muito menos com o desenvolvimento de capacidades de tolerância e diversidade. Esse sistema avaliativo atua no sentido inverso, valorizando o individualismo e o êxito pessoal. Além disso, sabe-se que o que não é avaliado não é aprendido, dado que as escolas seguem operando com a lógica de conteúdos. Esse sistema opera apagando do currículo os conteúdos controversos e que geram emoções, diante dos quais é necessário tomar posição.
Muitos políticos, inclusive aqueles que lutaram contra a ditadura, tampouco ajudam a incorporar as novas gerações ao trabalho de memória, dado que postulam que esses fatos já são passado e que as novas gerações não viveram os acontecimentos do golpe. Não é assim. Todos somos parte da história, somos herdeiros de muitas histórias e construtores da história. O trauma das violações de direitos humanos é herdado e causa dano às gerações seguintes. Muitos estudantes chilenos estão interessados em conhecer o que aconteceu no país e se manifestam às vezes de forma violenta. Hoje, eles são criminalizados pelo governo.
O que pode ser melhorado?
Para que o tema seja trabalhado com a relevância que merece, é necessário que os governos implementem políticas de memória que promovam o trabalho da memória coletiva em todas as instâncias e formas possíveis. O trabalho de memória coletiva e de ensino dos direitos humanos é um dever de todos os cidadãos, ainda que a escola tenha um papel central. Deve se promover uma ação coletiva para o trabalho de memória onde os estabelecimentos escolares participem.
Parte disso implica em capacitar os professores para que apresentem esses temas nas salas de aula de maneira a expor todas as interpretações possíveis e que, uma vez tendo conhecimento delas, os estudantes possam tomar posições e desenvolver argumentos que permitam explicar essas posições. Eles devem fazer sua própria interpretação do passado. Mas o professor sempre deve tomar posição indicando que as violações de direitos humanos não são admissíveis em nenhuma circunstância. Não basta que esteja escrito no currículo. Todos os atores sociais devem se ocupar de que o tema seja ensinado nos colégios.
Sabemos que nem sempre o que se promete é cumprido. Os temas presentes no currículo estão sendo efetivamente apresentados aos estudantes?
Não tenho dados exatos, mas é evidente que ainda existem desculpas para não falar do golpe de Estado e da ditadura. Ainda segue sendo um tema controverso, que divide a sociedade, segue aparecendo nos meios de comunicação, na arte, na literatura. O golpe de Estado passa a ser um fato mais distante. Os atores diretos da época estão morrendo. Tudo faz com que, no ensino da história, o golpe se distancie no tempo. Portanto, por vezes começa a ser visto como um fato histórico a mais. Além disso, ainda há a ideia (influenciada pelo currículo) de que o ensino da história é linear e, portanto, não se chega ao presente nas aulas de história. Também há a questão de que os currículos estão muito cheios de conteúdos. Mas é aí que o professor deveria selecionar temas que são relevantes para a formação de cidadãos democráticos, reflexivos e participativos.
Ainda existe a desculpa de que não houve tempo suficiente para falar do período militar durante o ano letivo?
Ainda há desculpas para não ensinar sobre isso. Pelo medo de entrar em conflito com os pais e com as autoridades escolares devido a que professores de muitas escolas possuem contratos que não asseguram sua estabilidade, dependendo da vontade do empregador. Há também a impossibilidade de fazê-lo por parte dos professores devido ao fato de que, sem um trabalho de memória e reparação em nível social, muitas pessoas que foram vítimas de violações de direitos humanos não puderam reparar seus danos psicológicos. É preciso lembrar que as vítimas não são só os mortos, os desaparecidos, os executados. No Chile se instalou o medo generalizado e isso afetou toda a população. Por isso, muitas pessoas ainda não podem falar com tranquilidade do ocorrido. Menos ainda um professor diante de seus estudantes.
Existe medo de falar de algo tão polêmico?
Ainda há medo no Chile. Não só entre os professores. Ainda há muitas pessoas para as quais é difícil contar o que viveram ou o que sabem desse tempo. É grave dizer isso, mas no Chile ainda há medo de contar a um desconhecido o que se viveu durante a ditadura ou o que aconteceu por causa disso. Isso evidentemente é responsabilidade de todos os governos que não desenvolveram uma verdadeira política de memória e de reparação das vítimas. As ações realizadas foram positivas, mas absolutamente insuficientes. O grave é que, se não se fala do acontecido, a memória reaparece produzindo ações violentas, problemas de saúde mental e física, e problemas de convivência.
O fato de o Chile ter um governo conservador hoje em dia, com Sebastián Piñera, influencia no currículo nacional? Muda algo em relação ao governo de Michelle Bachelet?
O novo governo tem influência, devido ao fato de que existe um Conselho Nacional de Educação que supervisiona os conteúdos escolares e é nomeado pelo Presidente da República. Atualmente os programas do segundo ano do ensino médio estão em processo de atualização. Além disso, no governo anterior do presidente Piñera, o conteúdo (sobre a ditadura) explicitado para ensino primário se manteve presente, mas foi reduzido.
Quanta independência existe no ensino desse tema?
Os professores têm liberdade diante do currículo nacional. O que opera são os medos e dificuldades que indiquei antes. O que me preocupa é que, progressivamente, instalou-se a ideia de que os direitos estão associados a deveres. Instala-se a ideia de que, para ter direitos, devo cumprir meus deveres, sendo que os direitos são inalienáveis. Essa é uma ideia que aparece cada dia com mais força na escola. Os jovens são acusados de não cumprir seus deveres. Ao mesmo tempo, crianças e jovens exigem seus direitos. Quando eles fazem essa cobrança, diz-se que são problemáticos. Inclusive, temos estudos que mostram que professores e pais pensam que a existência de direitos da criança geraram mais situações de violência. Sendo que o problema é que nós, adultos, não fomos educados em uma sociedade de direitos e não sabemos como nos relacionarmos com jovens que têm consciência dos seus próprios direitos.