Todas as crianças são capazes de aprender a ler e escrever bem, desde que não sejam suprimidas as etapas essenciais da alfabetização. Se houver lacunas no ensino, os alunos podem até ser prejudicados. É o que afirma o professor da Universidade Estadual de Maringá, Luiz Faria da Silva, que integrou o Grupo de Estudos da Academia Brasileira de Ciências (ABC) sobre Aprendizagem Infantil.
Faria, que participou recentemente da 1ª Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências (Conabe), organizada pelo Ministério da Educação (MEC), concorda com a maioria dos especialistas internacionais do evento de que é preciso deixar de alfabetizar de forma “ultrapassada” para melhorar os resultados em todas as etapas de ensino. “Não sou eu quem afirma isso, todos os indicadores estão apontando que o desempenho em leitura não é o que se espera e não é compatível com o tempo que as crianças e adolescentes passam na escola”, afirma. “Ou seja, estamos fazendo algo errado”.
Na conversa com a Gazeta do Povo, Faria explica por que o Brasil consolidou o uso de abordagens ineficazes para a alfabetização e aponta caminhos de solução.
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O número de crianças na escola aumentou nos últimos anos, assim como a quantidade de educadores com ensino superior. Por que, então, a alfabetização continua a ser um problema no Brasil? Por que no terceiro ano do ensino fundamental metade das crianças não está alfabetizada?
Você tem razão. Dado o tempo e instrução que eles passam na escola, deveríamos ter um desempenho melhor. Por que isso ocorre? Por uma série de fatores.
É preciso melhorar a forma como medimos o nível de alfabetização, mas pelos indicadores indiretos que temos, a informação é a seguinte: desde a redemocratização, enveredamos por um caminho de enquadramento e equacionamento da questão do ensino inicial da leitura que hoje nós sabemos que é equivocado e que induz ao mau desempenho.
Por outro lado, como a formação de professores seguiu essa mesma direção, seguindo as diretrizes curriculares, o equacionamento e enquadramento não são o equacionamento e enquadramento que a ciência cognitiva da leitura que se firmou nas últimas décadas preconiza e faz.
Então, eu penso que essas duas coisas, equívocos nas diretrizes curriculares e na formação de professores, aliados a uma série de outros fatores, como as dificuldades socioeconômicas das famílias, contribuem para esse baixo desempenho.
O senhor já disse que não gosta da expressão “guerra de métodos”. Por quê? Não existe uma “guerra de métodos” no Brasil a partir do momento em que os cientistas recomendam abordagens fônicas e muitos professores de pedagogia afirmam que eles são dispensáveis?
Não gosto muito dessa expressão, herdada dos Estados Unidos. Penso que, quando se tenta mudar, seja a formação de professores, seja o equacionamento das diretrizes curriculares, podemos falar mais de uma resistência, de uma dificuldade de incorporar a atualização que a ciência cognitiva fez ao equacionamento ou enquadramento da prática desse ensino inicial de leitura que a gente chama de alfabetização, de forma que em relação da guerra dos métodos, não sei dizer se há isso, mas certamente há dificuldade de incorporar ao ensino as últimas descobertas científicas.
O que o Brasil faz e qual seria o melhor caminho para alfabetizar as crianças?
A partir de evidências científicas da ciência cognitiva da leitura não há mais dúvidas sobre a necessidade de usar abordagens fônicas. Já há mais de 30 anos, em todos os lugares do mundo vem se firmando essa perspectiva: quando as crianças são sensibilizadas a prestar atenção na dimensão acústica da fala e no valor fonológico associado a essa dimensão acústica, dito de outra forma, quando as crianças são treinadas a manipular os componentes da fala, quando é ensinado explicitamente o principio alfabético, treinando a decodificação, as crianças aprendem mais rapidamente a ler. O Brasil não tem feito isso.
Agora com a nova Política Nacional de Alfabetização, há uma chance de retomar isso.
Qual foi a importância da Conabe e a presença de especialistas em alfabetização de vários países para discutir alfabetização em evento do MEC?
Essa é uma iniciativa emblemática porque nós não tínhamos feito nada parecido até agora. O que tínhamos eram iniciativas isoladas, uma delas da Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 2003, que, liderada pelo deputado Gastão Vieira, resultou em um primeiro relatório científico sobre o tema. Naquele momento, estiveram no Brasil quatro cientistas muito importantes, atendendo ao chamado da Comissão de Educação, que elaboraram um relatório, durante um grande seminário em Brasília.
O relatório foi publicado, mas isso não foi absorvido, nem pela política educacional, nem pelas universidades, nem pela formação de professores, nem por aqueles que são elaboradores de programas de ensino ou de material didático. Depois, em 2007, o deputado Gastão Vieira fez uma segunda edição desse relatório, mas aconteceu a mesma coisa, o mesmo silêncio.
Depois, em 2011, a Academia Brasileira de Ciências produziu um documento muito importante, fez dois seminários internacionais, mas também não houve incorporação das sugestões.
Só agora estamos levando essa questão a sério e a importância da Conabe é essa: pela primeira vez nós trouxemos aqui para uma exposição pública um conjunto de pessoas que são líderes mundiais, que têm experiências tanto em condições políticas quanto na elaboração de conhecimento. De forma que eu penso que a sociedade brasileira precisa olhar com mais atenção sobre isso, porque nós estamos dando um passo muito importante para gente começar a abordar de maneira adequada essa questão.
É claro que outros fatores estão associados à questão da alfabetização, mas sem esse primeiro passo nós não seguiríamos um bom caminho, de forma que com esse primeiro passo as coisas começam a andar na direção certa.
E agora, como o MEC deveria adotar tudo isso que foi visto na Conabe? Quais deveriam ser os próximos passos?
Retrospectivamente, houve o decreto, o lançamento do caderno sobre a PNA, a Conabe e agora o MEC vai dar consequência a isso, com aprofundamento de programas e orientações. O MEC também tem uma grande possibilidade e capacidade, porque ele pode lidar e induzir autores de livros a redesenhar seus conteúdos, eu penso que essas coisas vão acontecer. Eles também vão induzir a formação de novas diretrizes curriculares e dialogar com as universidades para que elas adaptem a formação de professores. Há um grande trabalho pela frente a ser feito.
Por que o senhor acha que existe essa resistência às abordagens fônicas?
Essa é uma longa história. Em 1896, Rui Barbosa publicou aqui no Brasil uma tradução de uma obra do Norman Alisson Calkins, chamado “Primeiras Lições das Coisas”. Esse material preconizou o que se chama de abordagem analítica do ensino de leitura. Para resumir, é uma abordagem que privilegia o tratamento da palavra inteira, quando na verdade a abordagem mais eficaz é a abordagem sintética. Àquela época, a abordagem sintética era feita pela via do que a gente chamava de método alfabético ou método silábico ou método alfabético silábico, muito simples: para se ensinar a ler, se ensinava o abecedário, a reconhecer e a distinguir as letras, ensinava-se a unir as letras para formar sílabas e depois as sílabas para formar palavras. No final do século XIX e começo do século XX, popularizou-se uma experiência feita por James McKeen Cattell em um laboratório na Alemanha que falou do “princípio da superioridade da palavra”.
A partir daí, todo mundo entrou nessa concepção de que ler-se-ia melhor e aprender-se-ia melhor a ler se fosse privilegiada a abordagem da palavra inteira. E muitos autores, como Henri Wallon e outros, seguiram isso.
Então, a resistência vem disso: como essa abordagem foi consolidada, é muito difícil mudar, até porque se pensa que os métodos fônicos são ultrapassados, mas não são. Hoje, quando se fala de métodos fônicos as pessoas associam às antigas cartilhas, que não eram fônicas.
A ciência cognitiva da leitura que se consolidou nos anos 80 e 90 indica que a abordagem fônica é essencial para uma alfabetização eficaz. A partir dela, em três países houve questionamentos e mudanças de políticas educacionais fortes, na França, na Inglaterra e nos Estados Unidos. Onde a política educacional mais está aprofundada e organizada nessa direção me parece que é na Inglaterra, mas também na França, também na Austrália, em Israel e outros países. O curioso é que em outros lugares, ainda criticando, os educadores fazem algum tipo de abordagem fônica assim.
As pessoas têm muita resistência e estão preocupadas achando que, quando se fala em abordagem fônica, vai se obrigar todo mundo a usar a mesma sequência em todos os lugares, não há nada mais equivocado do que isso.
Isso porque a abordagem fônica não esgota o processo de alfabetização.
Sim. A abordagem fônica é parte da alfabetização, é um processo inicial, depois é preciso ir para outras etapas. Mas não podemos pular essa etapa sem perder; se confundimos o ensino da leitura com o chamado ensino da compreensão, em vez de ajudar, prejudicamos as crianças.
Eu não tenho dúvida de que boa parte da dificuldade em adotar a abordagem fônica está na confusão que existe entre “ensinar a ler” e “ensinar a compreender”. Embora a finalidade da leitura seja a compreensão, ler não é compreender, nem se pode ensinar a ler e ensinar a compreender ao mesmo tempo, didaticamente falando, nem com os mesmos materiais.
As evidências científicas acumuladas nos últimos 40 anos para todas as escritas, de todas as línguas, inclusive as que não são baseadas em alfabeto mostram que exigem um constrangimento, uma constrição fonológica da escrita. É preciso dar à criança uma chave, assim ela vai abrindo as portas e essa chave é isso: o domínio dos aspectos técnicos e fonológicos da escrita. Tem que dominar o princípio alfabético.
Ao mesmo tempo, se estamos melhorando o ensino de leitura, temos de mudar a forma de avaliar. Se nós estamos orientando o ensino de leitura para adaptá-lo ao estado da arte é preciso então avaliar de acordo com o estado da arte, detectar a criança que está alfabetizada significa medir a produtividade do processo de reconhecimento e identificação automatizado de palavras.
O senhor está otimista? Acha que o processo de alfabetização no Brasil vai melhorar?
Eu sou otimista em relação a isso. O passo que foi dado era o passo que aguardávamos que fosse dado já há algum tempo. Estamos trabalhando há tempos para colocar o Brasil em contato com essa nova ciência, com essa atualização. Agora houve essa reorientação e nós temos ferramentas e mecanismos de discussão. Claro que isso é um processo que avança com seus problemas e intercorrências, mas a partir de agora com as novas diretrizes curriculares, com o poder de indução que o MEC tem, por intermédio do plano nacional de livros didáticos, as universidades vão se adaptar. Sabemos que há resistências, mas teremos de lidar com isso e imagino que não vai demorar muito. A avaliação nacional de alfabetização foi suspensa e proximamente já vão redesenhar isso. Vai sair o relatório científico da Conabe e então espero que se possa dar bons passos para melhorar a alfabetização no país.