A pandemia provocada pelo coronavírus jogou a educação para o fim da fila no Brasil.
Antes de tudo, é preciso reconhecer que estamos em uma crise mundial sem precedentes e não parece adequado disputar quem está na pior ou qual setor chegará ao fundo do poço primeiro. Todos fomos atingidos, todos perderemos.
Mas a educação, tal qual a saúde, é um direito básico universal, e é por meio dela – na escola, nas universidades e nas pesquisas – que se pavimentarão as rotas de saída para os males provocados pela Covid-19: algum remédio, tratamento e, daqui a algum tempo, alguma vacina. Então, não podemos aceitar que ela seja esquecida neste momento turbulento. Não em silêncio, ao menos.
Este momento que vivemos é cheio de contingências. Por óbvio, a prioridade número um é salvar vidas, porque sem elas não haverá estudantes, não haverá clientes, não haverá trabalhadores e nem atividade econômica alguma. E é por isso que economistas graúdos explicam que é falsa a premissa de que é preciso escolher entre salvar vidas ou preservar a economia. Esses especialistas também apoiam as medidas de isolamento social porque as pesquisas atuais e históricas, desse e de outros vírus, indicam que o melhor caminho não farmacológico para barrar a disseminação são a quarentena e o distanciamento social. Quando tivermos um tratamento seguro contra a Covid-19 e uma vacina, isso pode ser revisto.
Mesmo assim, é forte a pressão para reabertura dos estabelecimentos. O discurso do Planalto diverge do recomendando pelas autoridades de saúde e essa disputa divide a sociedade. As medidas de contenção social foram fundamentais para impedir um surto explosivo de casos de Covid-19, e é justamente a falta de números assustadores que alimenta discursos ora diversionistas ora esperançosos de que a doença não seria tão fatal no Brasil. Quem está seguindo a recomendação científica acaba ajudando os argumentos daqueles descompromissados com a saúde pública.
Prefeitos e governadores, que gerenciam as portas de entrada do sistema de saúde, estão mais conscientes dos riscos que vivemos, mas mesmo assim estão sob pressão de quem quer retomar a atividade econômica. Até o Ministério da Saúde acabou cedendo e impondo uma nova diretriz e assim, alguns estabelecimentos reabriram nos últimos dias, após implantação de novas medidas de higiene e prevenção a doenças.
Mas não é preciso pesquisar muito para ver como essa situação é disfuncional, basta uma pergunta. Muitos desses profissionais que voltaram à ativa têm filhos, dos quais muitos pequenos, que requerem cuidados. E onde estão enquanto pais e mães trabalham? Com a avó, essa é a resposta.
Em 12 de março, quando o Brasil ainda registrava os primeiros casos de Covid-19, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) divulgou uma nota afirmando que o fechamento de escolas não era indicado porque muitas crianças ficariam com avós, que estão no grupo de risco. Governos e municípios, porém, fecharam as escolas como medida de segurança. Com as medidas de home office implantadas pelos setores público e privado, e a suspensão de atividades de serviços e de comércio, muitos pais foram para casa e conseguiram assumir a responsabilidade de cuidar dos filhos.
Mas agora, com estabelecimentos reabrindo e escolas fechadas, as crianças estão ficando com avós, pois não há outra opção. Aliás, conhecendo a realidade brasileira, pode-se imaginar que há sim outras alternativas, nenhuma delas recomendável neste momento: crianças com vizinhos, cuidadoras ou irmãos mais velhos.
Por mais afeto e cuidado que essas pessoas possam dispensar às crianças, a situação está longe do ideal do ponto de vista educacional. A interrupção das atividades presenciais levou escolas privadas bem estabelecidas a implantarem o ensino a distância (EaD), e o poder público quer seguir o mesmo caminho. Os conselhos de educação em vários estados já deram essa permissão para as etapas do ensino fundamental e médio, considerando a excepcionalidade do momento em que vivemos. O ensino superior já tem regras específicas sobre EaD; na educação infantil, esse método não é permitido.
Então, vamos lá: saindo dos escritórios e indo para dentro das residências, como funciona o EaD na prática? As aulas virtuais têm um grande defeito, já que ultrapassam em muito o tempo recomendado para crianças e adolescentes ficarem em frente às telas. Com base em estudos científicos – que algumas autoridades mencionam ao falar da Covid-19, mas se esquecem ao propor o ensino virtual –, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta que o tempo de telas deve ser limitado ao máximo de duas horas por dia para crianças de 6 a 10 anos, e de três horas para adolescentes de 11 a 18 anos.
Como estamos em um triste momento excepcional, fica difícil querer aplicar os preceitos da SBP. Tudo bem, aceitemos que as crianças fiquem horas seguidas em frente a uma tela. E qual tela será? Mesmo em famílias de classe média alta, com dois adolescentes, é incomum ter mais de um computador em casa – lembrando que, para assistir cinco horas de aula por dia, recebendo todo o conteúdo como se estivesse em sala de aula, é recomendável mesmo uma tela maior, e não a de um celular. Para alguns, esses é um problema fácil de resolver, mas ajuda a contextualizar o grave problema: as famílias mais pobres, como farão?
Muitos gestores sabem da limitação socioeconômica da nossa sociedade, das desigualdades que imperam, e por isso tentam achar formas criativas de ofertar conteúdo, seja por sinal de televisão aberta ou até por rádio. Há um problema grande aí, pois a educação, por ser um direito universal, deve chegar a todos, de forma equânime.
Mais uma vez, aceitemos que nesta grave pandemia não há outra solução. Mas então voltemos à questão: uma vez que estabelecimentos estão retomando as atividades, quem serão os tutores das crianças para acessarem a sala de aula virtual? Avôs e avós darão conta do recado? Ou vizinhos? Ou irmãos mais velhos vão conseguir assistir suas aulas e cuidar para que irmãos menores fiquem atentos ao conteúdo que também receberão? Como as crianças brasileiras vão aprender, se muitas delas vivem em locais insalubres? Se familiares fumam, brigam dentro de casa, ou mal têm comida? Já foi noticiado que a violência doméstica aumentou com o isolamento social. E quando as vítimas são crianças, que não conseguem denunciar os abusos?
Esta discussão aqui não tem intenção de sugerir a reabertura das escolas – até porque famílias conscientes de que a situação está ainda longe do controle não deixarão seus filhos retornarem. O que precisamos é falar a respeito das dificuldades do ensino virtual e da necessidade de retornar à sala de aula o mais breve possível. Estamos em meio a um faz de conta, em que prefeituras e governos começam a lançar plataformas virtuais como se fossem um grande benefício para os estudantes. Não são. É uma forma inadequada e insalubre para as crianças aprenderem. Se não há alternativa que não o EaD neste momento, pois bem, isso deve ser dito de maneira clara e responsável, sem sorrisos e discursos de que as crianças vão aprender como se estivessem em sala de aula, porque sabemos que não irão.
Estados Unidos e transparência
O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), agência do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, tem vários documentos a respeito da Covid-19 e a situação escolar. Um deles apresenta algumas recomendações para a decisão de fechar estabelecimentos de ensino com base em pesquisa científica, relatos de outros países e opiniões de educadores. O documento também traça cenários, com vantagens e desvantagens a respeito de um fechamento desde pequenos períodos de semanas até meses. O mais importante: ao falar sobre outras considerações, “independentemente do grau de disseminação ou duração do potencial fechamento”, o CDC sugere que é preciso seguir um “raciocínio claro, tomada de decisão e comunicação com todas as partes interessadas. As famílias precisam saber quem está tomando as decisões, quais são elas e quando os esforços de mitigação nas escolas devem começar e terminar”.
Outra diretriz do CDC diz respeito a berçários e pré-escolas que permanecem abertos durante a pandemia de Covid-19, até porque os profissionais de saúde da linha de frente, que atuam diretamente com doentes, também têm filhos e muitas vezes ninguém de confiança com quem deixar os pequenos. O CDC lista outros trabalhadores de serviços essenciais: que atuam no transporte público, indústrias ou simplesmente de pessoas que não podem ficar em casa. Não importa tanto qual é a recomendação, mas sim o exemplo de como fazer um planejamento sobre todas as situações possíveis.
Nada mais distante do que estamos vivenciando no Brasil. Aqui não há nenhuma diretriz nacional. Nos municípios, as informações sobre suspensão de aulas são repassadas sem maiores explicações, sem detalhamento de qualquer embasamento científico.
Educação Infantil
A falta de transparência dos gestores é ainda mais grave no caso da Educação Infantil. Para a faixa etária de 0 a 5 anos, não é permitido o ensino virtual como forma de substituir o dia letivo. Por outro lado, a matrícula de crianças de 4 e 5 anos é obrigatória. O que as escolas devem fazer? O que os pais devem fazer?
Nas redes municipais, pouca coisa muda, mas o Brasil depende muito do setor privado. Segundo o Censo Escolar, o Brasil tem 8,97 milhões de crianças na Educação Infantil, das quais 2,5 milhões na rede particular. É preciso garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos estabelecimentos de ensino, sob pena de implosão das redes quando a Covid-19 deixar de nos ameaçar. O que se pode fazer a respeito? Por enquanto, deputados têm se preocupado com questões minúsculas, como tentar reduzir as mensalidades porque as escolas fechadas gastam pouco com água e luz – e se esquecem que o eventual retorno das aulas implicará em mais horas abertas e mais gastos. Pelas normas vigentes atualmente, será preciso ofertar as 800 horas regulamentares, seja com ampliação de horário, suspensão de férias ou postergando o ano letivo para 2021.
O ideal é que pais que continuem recebendo salário paguem normalmente as escolas, porque elas têm um contrato anual e funcionários para manter. Todos torcem para que a situação volte ao normal e, quando isso acontecer, será preciso reabrir as salas e acolher novamente as crianças pequenas.
Mas, em um cenário de desemprego, os pais conseguem pagar as mensalidades? Nesse caso, é preciso reconhecer que a educação é um dos setores que mais precisará de apoio financeiro do Estado para sobreviver à Covid-19. Mas, por enquanto, não estamos vendo nenhum plano emergencial a respeito.
Esse é um problema global, que está sendo monitorado pela Unesco, a qual chama a atenção para a ampliação das desigualdades com o fechamento das escolas e o ensino virtual. Mas as soluções devem ser propostas nacionalmente, por cada território, de acordo com suas características. Os países vivem situações diferentes: no hemisfério norte, as escolas caminhavam para o fim do ano letivo; no hemisfério sul, o primeiro semestre estava apenas no início quando as aulas foram suspensas.
Então, como jogar a educação para o início da fila de prioridades no Brasil? Não se imagina um buzinaço de pais e mães reivindicando a reabertura das escolas e se eximindo das responsabilidades que têm com seus filhos. Talvez caiba às entidades organizadas ou ao Ministério Público fazer uma ponte com legisladores e chefes do Executivo. Mesmo que o plano seja manter os estabelecimentos de ensino fechados por um longo período, precisamos de informações sobre isso, não datas fictícias de possíveis retornos das atividades.
Mais do que isso: é preciso comprometimento para a vida escolar retornar o mais breve possível com toda a segurança necessária. Sem aulas presenciais com professores, não há como retomar a atividade econômica sem prejuízos em várias frentes, não há como a rotina voltar ao normal.
Então, fica a pergunta: o que podemos fazer no combate à Covid-19 para garantir o retorno escolar com segurança? Qual pacto a sociedade pode fazer em nome da educação?