O engenheiro florestal André de Jesus, de 26 anos, saiu de Macapá, no Amapá, em 2016, para cursar mestrado em Ciências Florestais na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Jerônimo Monteiro, região na metropolitana de Vitória.
Ao terminar os estudos, o engenheiro florestal imaginava encontrar emprego no mercado de trabalho em sua área logo ao retornar para o Amapá pelas próprias características do lugar de origem. É o estado mais preservado do país. Somado a isso, é vasto em cultivo de soja, em atividades garimpeiras e minerais e com multinacionais que atuam com manejo e reflorestamento.
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Na área acadêmica, o Amapá é o terceiro que tem menos mestres no país, com apenas 341 pessoas atuando em ensino e pesquisa, conforme o Painel Lattes, do Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).
A esperança de André, porém, deu lugar à frustração. Mais de um ano depois da pós-graduação, ele ainda busca emprego na área. Atualmente, vive do sustento das aulas de reforço particular de matemática para crianças.
“Levando em consideração a grande diversidade do Amapá, se tivéssemos um pouco mais de vontade política para a criação e realização de concursos públicos seria uma área que contribuiria grandemente com a população. A questão ambiental cresce ao longo do tempo e se torna cada vez mais exigida pelas grandes empresas. É decepcionante. Você investe altos custos na carreira. Volta ao seu estado para tentar contribuir e bate com a cara na porta. [Dar aulas de reforço] não é o que esperava para minha carreira. Mas é o que tem no momento”, lamentou.
Carioca, a doutora em Engenharia Química, Kelly Cristina, de 37 anos, também utiliza dos conhecimentos matemáticos para dar aulas particulares a crianças e adolescentes. Com pesquisa inovadora sobre produção de biodiesel a partir de óleos ácidos, terminou a pós-graduação pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2018 e agora se diz frustrada em não poder empregar o que sabe da maneira como imaginava.
O salário por mês também não é o que esperava. Ela cobra R$ 75 por hora/aula para ensinar matemática, física e química. Moradora do bairro Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, ainda gasta com transportes no deslocamento até a casa do aluno.
“Dou aulas particulares de química, física e matemática. Acredito que o mercado de trabalho nos enxerga como profissionais de custo elevado. Não esperava por isso. É muito frustrante ter um amplo conhecimento e não poder empregá-lo como se deve. Em curto e médio prazo creio que não vá haver mudanças. Em longo prazo, pode ser que se perceba que investir em pesquisa não é um gasto e sim um investimento”, opinou.
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A situação de André e Kelly é uma realidade que atinge o Brasil de maneira macroeconômica. O país amarga o número de 13 milhões de desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Os pós-graduados fazem parte desta estatística.
Mercado disputado
Números mais recentes do Relatório Mestres e Doutores, divulgado pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), mostram que o mercado mudou. Cada vez mais, os profissionais passaram a se qualificar e os títulos de mestre ou doutor deixaram de virar sinônimo de emprego.
Em 20 anos, entre 1996 e 2015, houve o aumento de 401% no número de mestres e doutores segundo o estudo. Isso também é reflexo de mais oportunidades de acessar a pós-graduação. Outro levantamento, da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), revela que a quantidade de programas de pós-graduação de mestrado e doutorado saltou de 714 em 1995 para 2.147 em 2015.
Outra base de dados, o Painel Lattes, que reúne informações de todos os 3,5 milhões de currículos na Plataforma Lattes, revela que, em 2016, houve o cadastro de 18.466 de novos doutores. Dez anos antes, em 2016, a inserção de recém-doutores chegou a 6.294.
Em relação aos mestres, passou de 10.572 para 43.739, no mesmo período. O número inclui estrangeiros residentes no Brasil.
Sobre a empregabilidade, a proporção de desemprego de doutores recém-titulados se estabilizou em 27%, entre 2009 e 2014. Contudo, aumentou para 30,7%, em 2016. Entre mestres, a taxa de empregabilidade é de 65,8%, conforme o CGEE.
O mercado de trabalho educacional, maior ramo empregador dos mestres e doutores, com mais de 70%, estagnou desde 2014. A abertura de universidades federais, por exemplo, parou e as faculdades particulares alegam crise para contratar.
Até 2002, existiam 45 universidades federais, sendo que dessas, seis criadas entre 1995 e 2002. No período de 2003 a 2010, o melhor intervalo, 14 universidades surgiram. Entre os anos de 2011 e 2018, somente seis passaram a funcionar, registra o MEC. Paralelamente, nas instituições particulares, recentes demissões em massa foram registradas.
A concorrência tende a crescer a cada ano. O Plano Nacional de Educação estipulou a meta de formar 25 mil novos doutores em 2020. Como os dados no Painel Lattes e do Relatório Mestres e Doutores são divulgados em um intervalo de 48 meses após a coleta dos dados do referido exercício, para 2019 estão previstos ainda os números de 2017.
No Lattes: mestre e doutor; no dia a dia: vivendo de “bicos”
Para manter o próprio sustento em meio à crise, mestre e doutores recorrem a outras atividades, geralmente informais, popularmente conhecidas como “bicos”. Além de aulas particulares, os profissionais atuam em correções de trabalhos acadêmicos, como a ortográfica ou alinhamento às normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) – formatação padrão usada no país.
Essa foi a alternativa encontrada pela enfermeira Eduarda Signor, de 28 anos. Sem bolsa de estudos, cursa doutorado no Programa de Pós-Graduação em Enfermagem na Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), no Rio Grande do Sul. Natural de Sarandi (RS), corrige trabalhos acadêmicos para se manter no município pelotense. O serviço, no entanto, não cobre nem 10% dos gastos mensais, conforme calcula. O complemento vem do auxílio dos pais.
Esse problema não faria parte da vida de Eduarda caso tivesse um emprego. Ela enfrentou a demissão do cargo de enfermeira em um hospital particular seis meses após ingressar no doutorado. Diferentemente do setor público, o privado não valoriza o profissional qualificado, segundo avalia. No último emprego, sua contratação não levou em conta o mestrado em Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
“As empresas não têm interesse que o profissional cresça – por experiência própria. Não dão folgas, não flexibilizam os horários de trabalho, não dão redução de carga horária e não te dão um aumento salarial - mesmo que o mínimo - pelo título. Muito pelo contrário, exigem mais, criticam mais, ‘puxam o tapete’ mais pelo fato de o profissional estar estudando, sem facilitar o trabalho para que siga estudando, se qualifique e se torne um profissional melhor”.
Da mesma forma, a mestre em Ensino e Processos Formativos pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Isabela Lia, de 29 anos, consegue sobreviver em Araraquara, interior de São Paulo. O caso dela representa como a correção de trabalhos virou uma alternativa de sustento levada a sério. O pagamento pelo ofício se dá através de uma Microempresa Individual (MEI) aberta somente para esse tipo de serviço.
“Fui contratada como MEI por uma empresa de correções de redação. Recebo pelo trabalho feito. Neste caso, é por redação corrigida. O salário é muito variável, o que me faz ter bastante instabilidade. Para complementar, eu trabalho fazendo revisões gramaticais e normatização ABNT de trabalhos acadêmicos, mas também é imprevisível”, relata.
Mãe de uma filha de 3 anos, Carla Silveira, de 32 anos, seguiu outro caminho alternativo para obter renda extra. Passou a vender sapatos. Sem conseguir emprego depois que perdeu a bolsa de estudos em março, comercializa sandálias e sapatilhas para pessoas conhecidas e na Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde cursa doutorado em Engenharia de Pesca, em Salvador.
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“Após perder a bolsa de doutorado por conta do término do período de vigência dela, eu passei a vender sandálias e sapatilhas a pessoas conhecidas e até mesmo dentro da faculdade, com divulgação pelas redes sociais. É algo recente, apenas 15 dias”, comentou. Carla ainda não sabe se o valor dos sapatos dará para cobrir suas despesas e da filha. Ela vendeu os itens a prazo.
Redatora freelancer, fotógrafa em eventos, animadora de festa infantil e recepcionista de cerimonial são as atividades que a jornalista e mestre em Comunicação, Nara Bretas Lage, de 29 anos, desempenha para fechar o mês ao lado do marido, que é engenheiro agrônomo, mas que atualmente, trabalha como motorista de aplicativo por também não conseguir emprego.
Depois do mestrado na Universidade Federal de Outro Preto (UFOP), ela mudou com o marido, em 2017, para Belo Horizonte, a fim de se planejar para o ingresso no doutorado em Linguagem, no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).
Na mesma esteira da realização do sonho acadêmico, surgiu a sombra das despesas do dia a dia.
“O que aparecer eu pego. É assim que estamos vivendo todo mês, sem saber se vamos conseguir pagar o aluguel. Mês passado, pagamos no último dia. Neste, não sabemos. Tudo depende das oportunidades. Às vezes pegamos emprestado dos pais para comer. Isso prejudica a minha pesquisa porque fico preocupada, não sei se vou à aula e gasto o dinheiro com a passagem. (...) Como nunca sei se vou fechar o mês, não sei se decido por trabalhar fim de semana em festa de criança ou se opto por entregar trabalho do doutorado na segunda-feira seguinte”, acentua.
Vidas diferentes, um sentimento em comum
Para chegar ao topo da pirâmide acadêmica, são necessários pelo menos dez anos de dedicação no Brasil. Isso inclui quatro anos de doutorado, dois de mestrados e mais quatro da graduação. Em alguns casos, o curso de nível superior é de cinco anos. É o máximo que um pesquisador pode chegar de titulação, pois o pós-doutorado não é considerado um título acadêmico.
Toda essa dedicação cria sensações em comum entre mestres e doutores que chegam ao mercado de trabalho. É uma mistura de frustração com decepção, com doses de tristeza. Os pós-graduados contam que esses sentimentos se afloram pela maneira como o mercado enxerga esses profissionais.
“É muito frustrante. Dediquei muito tempo estudando para ser uma boa profissional e me deixa muito triste perceber que as escolas têm preferência para aquele que sairá mais barato. Além disso, percebo um movimento intenso de precarização da profissão, com essa tendência de MEI, porque assim perdemos todos os benefícios. Esperava que meu currículo fosse um diferencial, pois tenho muita gana em estudar e ter conhecimentos de várias áreas. Acho que é sempre bom ampliar nossa mente. Porém, sinto que ele mais afasta empregos do que chama”, diz Isabela Lia, mestre pela UNESP.
“Entrego currículo e nas entrevistas falam que sou capacitada demais, que sou muito qualificada para a vaga que precisam e por isso não tem como me pagar. Então, no meio profissional, na minha área, o mestrado e doutorado mais atrapalha do que ajuda. Para algumas vagas, eu até omito a pós-graduação, a não ser se for uma relacionada à educação. É muito frustrante. É mais valorizado um certificado de marketing digital do que dois anos de mestrado”, desabafa a mestre Nara Lage.
“Tenho sensação de impotência. Não esperava por isso, achava que o mercado seria mais acolhedor. Espero que o mercado de trabalho mude a posição que se encontra atualmente, que venha acolher e valorizar os estudos, independentemente da área de atuação”, completou a doutoranda em Engenharia de Pesca, Carla Silvana.
O sociólogo e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Ricardo Lopes, de 31 anos, se arrepende, por um lado, por não ter prestado concurso para dar aulas na rede pública gaúcha de ensino fundamental e médio. Por outro, a continuidade no ramo da pesquisa o fez conhecer no doutorado – ainda em curso – o que considera ser o bem mais valioso: a família.
“Eu poderia ter passado nos concursos, mas foquei na pesquisa, achando que mais adiante seria reconhecido como professor universitário. Do ponto de vista racional, deveria ficar triste porque eu só fiz o que a sociedade me disse, que era estudar e ser honesto, mas nem entrevista de emprego eu consigo. Mas quando penso no que realmente importa, foi através da pesquisa que conheci minha esposa e temos um filhinho maravilhoso”, analisa.
Lopes acredita que o momento faz parte de um ciclo de dificuldade econômica do país, diferente de outros vividos recentemente. Segundo o Ministério da Educação, entre 2003 e 2012, houve concurso para 21.241 vagas para docente efetivo nas universidades federais, chegando a 67.635 professores naquele ano.
“Crises são inevitáveis e passageiros, a única coisa permanente é a capacidade de nos ajudar mutuamente. A população brasileira não valoriza a educação e é essa é a realidade, não vou mudar isso reafirmando minha autoridade científica”, comenta.
As incertezas sobre o futuro também rondam a cabeça do pós-graduado neste cenário de crise em um futuro em curto, médio e longo prazo.
“Confesso que sinto medo após a conclusão do doutorado. Não sei se haverá emprego, não sei se haverá remuneração justa pelo tanto que estudei. (...) Me questiono: haverá colocação para todos os doutores?”, indaga sobre o futuro em longo prazo a doutoranda em enfermagem pela UFPEL, Eduarda Signor.
Em curto prazo, outros pós-graduados querem apenas sobreviver em meio às despesas diárias. É o caso da nutricionista Elynne Barros, de 24 anos. Após terminar o mestrado em Alimentos e Nutrição na Universidade Federal do Piauí (UFPI), ela tenta encontrar uma oportunidade em Teresina para não retornar à cidade de origem, Imperatriz, interior do Maranhão, a fim de continuar com a carreira em um doutorado.
“Academicamente, é desmotivador ver que muita gente acha que só queremos estudar pós pra "ganhar bolsa do governo", como se a bolsa fosse muita coisa. Do meu futuro, a curto prazo, só queria encontrar um emprego pra pagar meu aluguel”, espera a jovem pesquisadora, que mora em um imóvel com aluguel de R$ 550 na capital piauiense. Ela diz ter dinheiro apenas por mais dois meses. Esse é o prazo máximo para conseguir um emprego e seguir a carreira nos estudos se não quiser retornar ao Maranhão.
Qual a saída?
Para a presidente da Associação Nacional dos Pós-Graduandos (ANPG), Flávia Calé, o retrato do desemprego no Brasil entre mestres e doutores tem relação com a economia do país, que afeta diretamente os investimentos em conhecimento e pesquisa, o que consequentemente diminui as vagas no setor público. Na mesma esteira, a iniciativa privada demonstra incapacidade para arcar com salários condizentes com a titulação do profissional.
“As medidas que o Brasil tem tomado no último tempo não resgataram a dinâmica econômica. Investir em educação é uma forma de construir caminhos de retomada da economia, principalmente no contexto que vivemos, do século XXI, que é baseada no conhecimento e inovação tecnológica. O Brasil não apresenta uma perspectiva de retomada econômica e por isso não tem um cenário de absorção dessa mão de obra qualificada”, comentou.
Flávia Calé acrescenta que o relato de mestres e doutores na informalidade do mercado de trabalho está cada vez mais comum.
“O que temos de mestres e doutores que escondem o seu título é imenso e é uma tristeza. É muito comum tirar a titulação do currículo para serem contratados por faculdades privadas. É uma situação muito dramática, realmente. Eles estarem na informalidade é o mesmo que perder recurso público porque esses profissionais são formados pela universidade pública brasileira e quando não são aproveitados é um desperdício de dinheiro e de cérebros”, completou.
O economista Guaracy Lacerda, que estuda mercado de trabalho, concorda que o desemprego nos profissionais qualificados é reflexo da economia. Ele avalia que o Brasil titula por ano uma quantidade condizente de mestres e doutores com a população, tamanho e potencialidade de pesquisa. O problema, segundo ele, está na absorção na mesma escala.
“O Brasil é um país continental e tem um número de mestres e doutores de acordo com sua população, tamanho e especificidades de pesquisas ambientais, tecnológicas e sociais que o país proporciona. O problema está no fato de que as universidades federais e estaduais estão sem dinheiro para concurso por conta de arrochos do setor público e as faculdades também enfrentam dificuldade para pagar o salário que o profissional merece porque os alunos estão dando calote nas mensalidades por não darem conta de pagar. A saída está na economia”, interpreta.
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