Cultura dos bacharéis: corrida por diplomas desvaloriza graduações

No Brasil, tradicionalmente, um curso superior sempre foi visto como a porta de entrada para uma vida melhor. Ao possibilitar mais espaço no mercado de trabalho, salários atrativos e facilidade de progressão na carreira através da formação continuada, o diploma parecia trazer consigo uma série de garantias e estabilidade. Hoje, não mais. A expansão do ensino superior no país, a abertura de cursos de qualidade questionável e a crise econômica ajudaram a criar um cenário em que a formação superior se tornou requisito mínimo para a entrada em cargos de nível inicial. Como resultado, muitos jovens recém-saídos da graduação agora se deparam com as portas fechadas no mercado de trabalho, precisando aceitar pagamentos inferiores e funções desconectadas da formação. O culto ao diploma está chegando ao fim? 

Expansão sem absorção 

Os números são claros: o acesso ao ensino superior se democratizou enormemente no Brasil. Segundo o Censo da Educação Superior de 2015, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de estudantes matriculados na educação superior ultrapassava os 8 milhões de alunos – contra 4,6 milhões dez anos mais cedo. A grande maioria (75,7%) estava em instituições privadas e em cursos presenciais, embora um número cada vez maior (17,4% do total) optasse por modalidades de ensino à distância. 

Se a educação se expandiu, o outro lado da moeda foi a criação de um contingente inédito de jovens para quem a educação ainda era uma forma de avançar na vida, mas já como um diferencial menor do que nas gerações anteriores. “Não se pode mais acreditar que apenas a formação acadêmica inicial será suficiente para alcançar um bom emprego, pois possuir um diploma universitário hoje não tem o mesmo significado do passado. O mercado de trabalho mudou muito”, diz Aparecida da Silva Xavier Barros, professora do Instituto Federal da Paraíba, que pesquisou a expansão do ensino superior no país. “O diploma, portanto, é um detalhe na carreira”. 

A situação tornou-se mais dura com o aprofundamento da crise econômica. A multidão de jovens com formação superior passou a compor não apenas uma oferta muito maior do que no passado – também se depara com um cenário desolador em que a demanda se reduziu. Enquanto o desemprego nacional, hoje, é calculado em torno de 13%, o índice sobe para 25,9% entre pessoas com 18 e 24 anos de idade, que inclui os recém-formados. O dado é ainda mais alarmante quando colocado frente a uma série histórica: em 2014, antes de os efeitos da recessão serem sentidos com mais força, o desemprego nessa faixa etária era de cerca de 12,9%. 

“A crise de empregos que assola o país traz outro agravante: a falta de vagas compatíveis com o conhecimento adquirido na universidade”, explica Barros. Essa situação pode levar ao desemprego ou a uma atuação em áreas que exigem escolaridade menor, frequentemente sem relação com a formação original, e com salários mais baixos. 

Expansão sem qualidade 

Na opinião do antropólogo George Zarur, professor aposentado da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a busca por ampliar o acesso à universidade levou a um relaxamento dos critérios para a abertura de novos cursos, resultando em graduações de qualidade questionável. “A expansão do ensino superior respondeu a uma demanda da sociedade: os jovens viam no diploma uma maneira de subir na vida e foram enganados pela propaganda governamental e, especialmente, pelas instituições privadas de educação”, critica o antropólogo. “A educação superior tornou-se um jogo de faz de conta em que as condições exigidas do estudante são mínimas do ponto de vista acadêmico. Muitas universidades particulares são verdadeiras fábricas de diplomas”. 

A disparidade fica evidente em cálculos de qualidade de ensino como o Índice Geral de Cursos (IGC), que considera o desempenho da graduação e da pós-graduação. As universidades públicas recebem notas consideradas acima da média (3, em uma escala de 1 a 5) em proporções muito maiores que as particulares: 28% das instituições públicas receberam nota 4 em 2015, contra 15% das particulares. Quanto à nota máxima (5), foram 4,9% das universidades públicas contra 0,6% das privadas. A proporção se inverte quando se trata de notas abaixo da média: 14,7% das privadas recebeu nota 2, contra 12,3% da rede pública. 

O aumento de cursos de má qualidade teve um efeito nefasto que contraria a lógica de expandir o ensino para diminuir as desigualdades sociais: como o diploma tornou-se uma espécie de denominador comum mínimo no mercado de trabalho, correr atrás da formação passou a ser uma necessidade, independentemente da qualidade do curso. “O diploma, atualmente, ao invés de libertar, escraviza”, diz Zarur. 

Hierarquia de diplomas 

O investimento na abertura de novas escolas técnicas no Brasil, exaltado pela ex-presidente Dilma Rousseff na campanha eleitoral de 2014, pretendia seguir modelos de países em que a universidade não é vista como a única qualificação possível. No entanto, o modelo brasileiro é criticado precisamente por uma expansão que não planejava as consequências de uma falta de absorção. “Tivemos uma expansão sem precedentes do ensino superior no país, políticas públicas e programas que viabilizaram isso, mas por outro lado somos carentes em políticas públicas de inserção profissional dos jovens egressos do ensino superior”, aponta Bibiana Volkmer Martins, que em sua tese de doutorado em administração dedicou-se a investigar a realidade concreta de jovens ingressando no mercado. 

“Estamos formando milhares de alunos e não temos absolutamente nenhum controle de quem são, para onde estão indo, quais as dificuldades estão encontrando ao ingressarem no mercado de trabalho”, lamenta. 

A tese de Bibiana Martins centrou-se nos egressos de cursos tecnológicos da região metropolitana de Porto Alegre, buscando entender as dificuldades encontradas. Se por um lado muitos desses jovens representavam a primeira geração de suas famílias a entrar em um curso superior, por outro as origens humildes contribuíam para fechar as portas na hora de conquistar um emprego – em boa medida devido à própria instituição que frequentaram. 

“Criou-se uma hierarquização do ensino superior. As diversas instituições de ensino e os diferentes tipos de cursos não possuem o mesmo valor no mercado de trabalho. Em geral, os tecnólogos em gestão não possuem o mesmo valor que os bacharelados em administração, e isso sem entrarmos na questão da qualidade dos cursos”, conclui. 

Cursos técnicos são opção em outros países 

Fora do Brasil, a formação técnica e tecnológica tem sido um caminho utilizado como forma de qualificar sem saturar o mercado com diplomados cuja formação não encontra demanda. O sistema alemão costuma ser apontado como exemplar nesse sentido, com cursos técnicos e tecnológicos qualificados (conhecidos como Ausbildung) que frequentemente fazem os jovens optarem por não entrar em uma universidade. 

“A Alemanha possui um sistema econômico voltado para o lado social e a mão de obra assalariada recebe o suficiente para ter um padrão de qualidade de vida independente do curso acadêmico. Por esse motivo, as pessoas aqui não sentem a necessidade de possuir um diploma acadêmico”, descrevem Lucé Souza, Lucemar Souza e Luzinete Ferreira, autoras do blog GermanyForYou, que presta consultoria a estudantes brasileiros interessados em ir para a Alemanha. 

Um número crescente de especialistas também tem apontado que a formação superior, seja ela técnica ou universitária, é cada vez menos capaz de se adaptar à velocidade das mudanças tecnológicas. “O sistema escolar precisa ensinar melhor às pessoas como aprenderem por conta própria e de outras fontes (além da escola e da universidade)”, defende o economista James Bessen, professor da Boston University School of Law e autor do livro Learning by Doing: The Real Connection Between Innovation, Wages, and Wealth (“Aprender fazendo: a real conexão entre inovação, salários e riqueza”, sem edição brasileira). 

Segundo Bessen, cerca de 54% da força de trabalho dos EUA entende que não tinha as habilidades adequadas para exercer suas funções no momento em que assumiram seus empregos. “É necessário mais que o estudo tradicional. Essas habilidades precisam ser aprendidas no trabalho ou de pessoas que já aprenderam como fazer dentro do próprio emprego”, indica o especialista, para quem as políticas educacionais devem também pensar em favorecer uma “formação” dentro do emprego. “Algumas coisas que podem incentivar esse aprendizado são políticas que favoreçam a mobilidade dos empregados, compartilhamento de conhecimentos, certificação de habilidades, programas de trabalho e estudo concomitantes, e novos tipos de contratos de aprendiz”. 

O Brasil sempre se caracterizou pelo bacharelismo, pelo apego ao diploma, como indicador e símbolo de classe social”, George Zarur, antropólogo, professor aposentado da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). 

Tendência histórica

A valorização do diploma pelo brasileiro é antiga. Data ainda dos tempos do Império, quando famílias mandavam os filhos estudar em Portugal ou nas raras escolas superiores que aos poucos foram sendo estabelecidas por aqui. No século 19, o Brasil era um país onde o acesso à educação superior representava um privilégio de uma elite muito reduzida ligada às oligarquias rurais. Mesmo para os poucos que chegavam lá, as próprias opções de carreiras universitárias eram limitadas: Engenharia, Medicina e, especialmente, Direito, concentravam o grosso dos graduados. 

Com a vida política e econômica do país ainda fortemente centralizada no Rio de Janeiro, as vagas eram poucas mesmo para os raros casos de formados em cursos superiores. O “bacharelismo” tornou-se um fenômeno comum no país: juristas que não conseguiam iniciar uma carreira como magistrados e passavam a usar seu prestígio para pressionar pela ocupação de cargos burocráticos proeminentes. O diploma era, mais do que uma garantia de aptidão, um instrumento para garantir a continuidade de um status social elevado. 

“O Brasil sempre se caracterizou pelo bacharelismo, pelo apego ao diploma, como indicador e símbolo de classe social”, afirma o antropólogo George Zarur, professor aposentado da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso). “O diploma funcionava não apenas como instrumento para a conquista quase automática de um emprego, mas ainda como marca aristocrática. Vide, por exemplo, o privilégio de prisão especial para os detentores de diploma universitário, uma herança do tempo em que o diploma era sinônimo de posição social”. 

Para Zarur, a cultura do bacharelismo nunca foi deixada para trás no país: a popularização dos cursos universitários fez com que a busca de status social através da formação só desse um passo além, partindo para a pós-graduação: “Diplomas de mestrado e doutorado, muitas vezes sem qualquer conexão com o mercado de trabalho, são perseguidos, dentre outras razões, como marca de diferença aristocrática na medida em que os diplomas de bacharelado se banalizam”.