“A gente quer oferecer à militância brasileira, a quem estuda, a professores, professoras, à galera que está na área da educação, um material para contar a história dos povos em luta pela revolução, pelo socialismo, contra o imperialismo, e desmistificar algumas coisas”, diz o educador popular, professor de História e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Jones Manoel, ao falar sobre seu trabalho literário em uma live do cursinho popular da Associação Cultural de Educadores e Professores das Universidades de São Paulo (Acepusp), transmitida no dia 19 de abril.
A apresentadora da live é Raquel Luxemburgo – professora de Química, coordenadora pedagógica dos cursinhos populares da Acepusp e militante da União da Juventude Comunista (UJC) e do PCB. Os dois cumprimentam-se e passam a falar sobre o livro “Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista” e sobre as opressões capitalistas. A transmissão faz parte de uma série de lives que buscam divulgar as aulas do cursinho popular da associação, que terão início em maio.
O objetivo das aulas é ajudar estudantes, de forma especial aqueles de baixa renda, a passar no vestibular e a ter bons resultados no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Porém, paralelamente aos conteúdos ministrados, há uma densa carga ideológica sob o rótulo de “formação crítica”.
Proposta dos cursinhos integra movimento influenciado por Paulo Freire
Os cursinhos populares integram o movimento político-pedagógico conhecido como Educação Popular, que ganhou força nos países latino-americanos a partir da década de 60. O principal nome do movimento é o filósofo marxista brasileiro Paulo Freire, que defende que a educação deve estar a serviço da revolução. A Educação Popular defende que mais importante do que os conteúdos técnicos, que podem conduzir o estudante a ascender socioeconomicamente, é o aprendizado sobre justiça social, para que os jovens – sobretudo aqueles de classes mais baixas – desenvolvam consciência sobre suas condições de vida e questionem as injustiças que sofrem. Em grande parte desses cursinhos populares, portanto, os conteúdos preparatórios para o vestibular e Enem caminham paralelamente com o ensino de doutrinas marxistas. À frente estão pessoas ligadas a movimentos sociais e partidos políticos de esquerda, que enxergam nos estudantes potenciais adeptos a seus projetos políticos.
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A maioria desses cursinhos destinados a estudantes de classes baixas são gratuitos ou cobram valores simbólicos. Há, no entanto, exceções, como é o caso da Acepusp, em que o curso preparatório pode chegar a cerca de R$ 2.500 por sete meses de aulas (de maio a dezembro).
Uma das principais entidades organizadoras dessas iniciativas é a Rede Emancipa, que gerencia diversos cursos populares distribuídos em seis estados (Bahia, Rio Grande do Norte, Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Minas Gerais) e no Distrito Federal. A rede se autodefine como “um movimento social de Educação Popular que luta pela democratização do acesso à Universidade e por uma educação de qualidade, crítica e gratuita”. “Nossa luta também é contra as desigualdades econômicas, o racismo, o machismo, a LGBTQIA+fobia, em defesa do meio ambiente e da saúde pública!”, consta na página de inscrições do site.
A rede é composta por cursos preparatórios em diversos municípios nos estados em que está presente. Na cidade de Natal, por exemplo, há o cursinho Marielle Franco; em Cambuí, na capital mineira, há o cursinho Paulo Freire; e em Itupeva, no estado de São Paulo, o cursinho Olga Benário – em homenagem à militante vinculada ao Partido Comunista Alemão que foi casada com o líder revolucionário Luís Carlos Prestes, que integrava o Partido Comunista Brasileiro.
O cursinho Carolina de Jesus, que também integra a rede, define-se como um “projeto de educação aliado a uma luta social e política”. “Luta é nosso fôlego e suor que sustentam a estrutura do projeto pela militância”, cita trecho da apresentação no site oficial.
Várias dessas iniciativas têm em sua coordenação ou em sua equipe de professores integrantes de partidos políticos. Esse é o caso, por exemplo, do Comupode, que foi fundado pela vereadora Fernanda Curti, do Partido dos Trabalhadores (PT). A parlamentar, que se autodefine como “militante do Cursinho Popular pré-vestibular Comupode, militante feminista do coletivo de mulheres do PT e membro da Direção Estadual do PT/SP”, esteve presente na abertura das aulas do cursinho no final de abril. Já o curso preparatório da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da USP, até recentemente tinha em seu quadro Duda Hidalgo, que no início deste ano assumiu o mandato de vereadora de Ribeirão Preto pelo PT.
Na comunicação oficial da organizações de alguns cursos preparatórios populares está presente a linguagem neutra – modelo defendido por movimentos sociais, mas não por linguistas. Um desses casos é o Cursinho Popular EACH, que funciona dentro da USP e é organizado por alunos da Escola de Artes, Ciências e Humanidades. Tanto no site do cursinho quanto em suas redes sociais há palavras como “alunes”, “todes” e “bem-vindes”.
Defensores da linguagem neutra afirmam que essa é uma forma de acolher linguisticamente os chamados "não binários", pessoas que afirmam não se identificar nem como do gênero masculino nem do feminino. Entretanto, a forma não é aceita nos principais vestibulares e no Enem, nos quais é exigida a linguagem padrão.
“Há movimentos buscando consolidar a linguagem neutra e já há sistemas de ensino e escolas que tentam adotá-la. Porém, não é algo concretizado e ainda não é aceito nos vestibulares e no Enem”, aponta Kátia Simone Benedetti, professora de português da rede pública, especialista em psicopedagogia e autora do livro “A Falácia Socioconstrutivista”.
Doutrina aplicada nos cursinhos populares é prejudicial especialmente aos jovens de classe baixa, aponta psicopedagoga
Kátia explica que os cursinhos dão aos estudantes de baixa renda a oportunidade de ter acesso a um curso preparatório pré-vestibular, mas apresentam duas consequências prejudiciais: a primeira é que os jovens acabam vulneráveis ao alinhamento a projetos políticos questionáveis, e a segunda é que, ao invés de estudar os conteúdos necessários para passar no vestibular e ter uma vida acadêmica e profissional de excelência, perdem tempo de aprendizagem com militância.
“Esses conceitos passados, que são contrários ao livre mercado e à liberdade de troca, são algo que limita a visão do estudante a respeito da realidade que ele vai encontrar, e cria uma visão distorcida da realidade dicotômica no sentido de opressor e oprimido”, explica a professora.
“Isso é completamente nocivo, porque o jovem passa a ter dificuldade de identificar os problemas da própria vida e nele é incutido uma fragilidade até mesmo moral, no sentido de ele não se sentir responsável por muitas coisas e sempre buscar culpados para tudo. É uma visão muito negativa e distorcida que impede o amadurecimento da pessoa como ser humano”, salienta.
Katia aponta, no entanto, que os conteúdos determinados pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), do Ministério da Educação (MEC), aliados à baixa qualidade da educação oferecida no Brasil, fazem com que a abordagem desses cursinhos possa ajudar alguns dos estudantes a obterem bons resultados nas provas.
“Na educação brasileira, o trabalho político-ideológico tem início desde os primeiros anos e, cada vez mais, os vestibulares esperam esse perfil progressista dos estudantes. Então esses cursinhos acabam, de certa forma, adequando o aluno para isso”, afirma a psicopedagoga. “O aluno chega de uma maneira tão defasada no ensino médio que, muitas vezes, o que mais se aborda nos cursinhos populares é essa superficialidade ideológica, para que ele possa reproduzir isso nas provas”, ressalta.
A Gazeta do Povo tentou contato com os organizadores de cursinhos populares Rede Emancipa, Acepusp e EACH, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.
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