A esperança dada, no início deste ano, a famílias brasileiras praticantes da modalidade de ensino homeschooling acabou ficando em promessa. Em janeiro, o governo de Jair Bolsonaro (PSL) prometeu “regulamentar o direito à educação domiciliar (...) por meio de Medida Provisória” nos 100 primeiros dias de mandato. Meses depois, no entanto, não havia informação alguma sobre os parâmetros da ação e, ‘nos bastidores’, se comentava sobre uma possível mudança de planos que decepcionaria a expectativa das famílias: desistir da MP e optar por um Projeto de Lei. Diferentemente da MP, um PL, mesmo com carimbo de urgência, tem tramitação mais lenta e não começa a valer a partir do momento de sua edição. Até que o projeto seja aprovado, é um longo caminho.
Ao final, para a frustração dos homeschoolers, o governo apresentou apenas o PL. E, com isso, na prática, a situação continua como antes – não há previsão legal para o homeschooling no país e, embora a prática tenha sido considerada constitucional pela maioria dos ministros do STF, famílias permanecem inseguras juridicamente. Para tentar resolver esse dilema, já tramitam no Congresso Nacional ao menos quatro propostas para normatizar a atividade.
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À frente da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar), Rick Dias lamentou a decisão do governo e disse que famílias que contavam com a promessa anunciada em janeiro "ficaram decepcionadas". "Conversamos com elas para lembrar que a gente não pode parar, precisamos seguir adiante e continuar o nosso trabalho", comenta. A preocupação maior, diz o presidente da associação, é com “as famílias processadas, que continuam vivendo um 'inferno jurídico'".
A elaboração do texto estava a cargo do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado por Damares Alves, em conjunto com o Ministério da Educação (MEC) e participação da Aned. A decisão final, no entanto, de editar uma MP ou assinar um PL, é da Casa Civil. Nesta segunda-feira (15), Damares afirmou que "o governo vai pedir regime de urgência na tramitação do projeto" e que vão "aprovar logo".
"Grande passo"
O fato de o governo ter assinado um PL com carimbo de urgência, embora não seja exatamente o que famílias homeschoolers - como são chamados os adeptos à prática - esperavam, é um 'grande passo'. "É preciso que isso seja reconhecido, é algo inédito para as pessoas que praticam a educação domiciliar", afirma Carlos Rangel Xavier, mestre em Processo Civil pela UFPR (Universidade Federal do Paraná), procurador do Estado do Paraná e associado da Aned.
"As famílias têm expectativa de não estar em uma espécie de 'clandestinidade', aos olhos de muitos na sociedade, mas vão continuar fazendo o que entendem como melhor para seus filhos", afirma o procurador.
A busca pela normatização do homeschooling no país, na verdade, não é novidade (desde 1994 propostas são enviadas a casas legislativas), mas essa é a primeira vez que o próprio governo encabeça o pedido - outro motivo que aumenta a expectativa.
O documento, divulgado na quinta-feira (11), prevê avaliações anuais aos alunos, restrição à adoção da prática de acordo com ficha criminal e interrupção da modalidade para estudantes com baixo desempenho, por exemplo.
Para 'ingressar', estudantes terão de realizar um cadastro obrigatório em uma plataforma virtual do MEC, que pode deferir ou não o pedido. Os pais, ou responsáveis, por sua vez, deverão apresentar certidão de antecedentes criminais e carteira de vacinação atualizada.
Caso aprovado o PL, será necessário que a família homeschooler apresente um Plano Pedagógico Individual (PPI) e que realize registro periódico das atividades. Além disso, alunos que reprovarem por dois anos seguidos não terão a 'matrícula' no sistema renovada.
Família não pode "ser obrigada"
Para Xavier, adepto à modalidade, alguns pontos do projeto, no entanto, não atendem totalmente ao desejo das famílias. "Defendemos avaliações por ciclos, e não anuais, tanto por uma questão filosófica, de liberdade da prática, quanto por coerência com o sistema. A própria LDB (Lei de Diretrizes e Bases) admite a avaliação por ciclos na educação escolarizada", explica.
Não é válido que famílias sejam obrigadas a algo que, na verdade, não se impõe às próprias escolas, ele defende. Nesse caso, propõe que, por otimização de recursos, bastaria aproveitar as avaliações que já são realizadas pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), como o Enceja, por exemplo. Se a família preferir, também "poderia aderir a um sistema privado de ensino ou contratar outra forma de avaliação periódica".
Esperança
Embora frustradas com a promessa de governo não cumprida, famílias educadoras de todo o Brasil continuam com esperança de que a prática será normatizada e, talvez, em um futuro não muito distante. Enquanto isso, grupos como a Aned e a Afep (Aliança de Famílias Educadoras do Paraná) realizam trabalhos de conscientização.
No domingo (14), por exemplo, famílias homeschoolers de Curitiba estiveram no Parque Barigui para explicar, a quem tivesse interesse, "o que é essa tal de educação domiciliar". Cerca de 90 pessoas se encontraram para compartilhar suas experiências em busca do mesmo objetivo: "oferecer a melhor formação possível para os seus filhos. Excelência acadêmica".
Primeira vitória
Para os homeschoolers, uma conquista importante foi registrada em Vitória, no Espírito Santo. Nesta terça-feira (16), a câmara de vereadores do município aprovou oPL nº 5038/2018, criado pelo vereador do PPS Vinicius Simões, que autoriza “o ensino domiciliar na educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio, para os menores de 18 anos”.
“Não se trata de iniciativa nova, uma vez que já foi alvo de proposições em todas as esferas de poder. Contudo, a discussão tem recebido destaque recentemente, porquanto inúmeras famílias, inclusive capixabas, têm pleiteado o reconhecimento do ensino domiciliar, garantindo a elas o direito de serem protagonistas do ensino dos seus filhos”, diz o documento, assinado por Simões.
O vereador ainda justifica a legitimidade de se permitir o ensino domiciliar no município já que não há diretriz específica da União Federal sobre a prática. “Se afigura perfeitamente que o município de Vitória, no interesse de seus munícipes, legisle sobre o assunto, o que ora se propõe”, defende.
Como explica Xavier, a União é responsável por editar “normas gerais federais”, mas quando não há diretriz específica sobre determinado assunto, estados e municípios podem “suplementar” a legislação, como prevê o artigo 24 da Constituição Federal (CF). “Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender suas peculiaridades”, diz a CF.
A decisão em Vitória deve beneficiar ao menos quinze famílias. No Brasil, a Aned estima que outras 7 mil famílias pratiquem o homeschooling.
No mundo, a Associação de Defesa Legal da Escola Doméstica (HSDLA, na sigla em inglês) avalia que nos Estados Unidos, onde o movimento existe há mais de 40 anos, mais de 2 milhões de alunos em idade escolar sejam educados em casa. Já na América Latina, países como México, Argentina e Uruguai se destacam pela interpretação de leis que tornam equivalente o poder da família e o do Estado sobre a educação.
No Congresso, uma tentativa de regulamentação do homeschooling, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 444, de 2009, chegou a tramitar na Câmara dos Deputados, mas após idas e vindas pelas mesas e comissões, acabou sendo arquivada em 2015.
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