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Democracia também se aprende na escola. E esta é uma tarefa urgente

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Gazeta do Povo divulgou em primeira mão, nesta quarta-feira (6), os resultados da primeira aplicação, em Curitiba, do Índice de Democracia Local, uma ferramenta desenvolvida pelo Instituto Atuação com o propósito de gerar informações para orientar políticas e melhorar a qualidade da vida democrática a partir das cidades. Os resultados da pesquisa não diferem muito do que se conhece do quadro brasileiro: instituições formais razoavelmente funcionais e um grande déficit nas instituições informais da sociedade, o que levanta uma questão interessante para a educação brasileira: a democracia pode ser ensinada? 

Em uma escala de 0 a 100, Curitiba pontua 65,6 em processo eleitoral, 64,2 em direitos e liberdades civis, 56,3 em funcionamento do governo local, 22,3 em participação política e 38,9 em cultura democrática, um indicador que reflete mais de perto a qualidade do conhecimento que as pessoas têm sobre a democracia e no qual os jovens pontuam ainda menos que o restante da população. 

A nota em cultura democrática é composta por três quesitos: normas e valores, que compreende o quanto as pessoas confiam umas nas outras e nas instituições, o quanto cumprem a lei, apoiam o Estado de Direito e enxergam a importância do regime democrático para a sociedade; vida comunitária, que mede o quanto a população se envolve e se associa em comunidades; e dimensão cognitiva, que afere quanto as pessoas conhecem seus direitos e deveres como cidadão e as responsabilidades das instituições. Neste terceiro quesito, a nota de Curitiba é especialmente baixa, refletindo uma realidade brasileira: 26,6 de 100 pontos possíveis. 

Quando se olham os dados relativos à dimensão cognitiva mais de perto, é possível ter uma dimensão do problema. Quase 60% dos curitibanos não sabem que existe uma instituição encarregada de defender o interesse público – o Ministério Público; mais da metade não sabe que existe um órgão responsável por supervisionar o uso dos recursos públicos – o Tribunal de Contas; 54% não sabem que existe uma lei que garante o acesso a informações governamentais. Além disso, menos da metade sabe diferenciar bem os papeis que cabem à prefeitura e à câmara municipal. 

Quando os dados são segmentados por idade, é possível notar que os jovens são o que menos pontuam no Índice de Democracia Local aplicado a Curitiba: no quesito cultura democrática, os jovens entre 16 e 24 anos têm nota de 36,1 – diante de 37,7 daqueles entre 25 e 34 anos; 40,7 daqueles entre 35 a 44 anos; 39,7 daqueles entre 45 e 54 anos; e 41,4 dos que têm de 55 a 69 anos. Eles também são os mais afetados pelo desconhecimento político. No subíndice que mede o conhecimento das funções e responsabilidades do governo 16 a 24 anos pontuam 31,1, a menor nota entre todas as faixas etárias. 

Importância 

Isso tem um impacto direto sobre a qualidade da democracia. Embora esteja longe do ideal democrática que as pessoas se tornem todas especialistas dedicadas em tempo integral à política, um desconhecimento sobre o funcionamento básico das instituições e dos processos cívicos reduz a habilidade dos cidadãos em participar das decisões coletivas. Quando os cidadãos sabem encaixar seus interesses nos procedimentos de um sistema político complexo – ou seja, quando conhecem as “regras do jogo” – isso tende a reduzir a apatia ou o sentimento de revolta contra as instituições formais. 

“O conhecimento a respeito da dinâmica da política e da estrutura de funcionamento do governo é uma parte essencial da cidadania”, afirma Rodrigo Bley, pesquisador do Instituto Atuação, que se dedica ao fortalecimento da cultura democrática no Brasil e é responsável pela aplicação do Índice de Democracia Local. “Não há como exercer a cidadania plenamente sem saber as regras do jogo: quem faz o quê, quais são as responsabilidades do Estado, quais os limites da sua atuação, e o que cabe à própria sociedade civil realizar”, diz. 

Para os especialistas, momentos de crise institucional como o que o Brasil atravessa atualmente exibem as falhas na promoção de um pensamento democrático junto à sociedade. “Os pedidos por intervenção militar e por ruptura constitucional são, em certa medida, reflexo da nossa própria democracia”, diz Henrique Raskin, gestor de pesquisa do Instituto Atuação. “Ela ainda não se mostrou capaz de incrustar valores democráticos junto à população: primeiro, porque é bastante recente; e, segundo, porque as instituições democráticas, apenas, não têm o poder de transformar a cultura política de uma sociedade”, afirma. 

“O nosso problema é muito menos institucional que cultural”, argumenta Bley. “Compreendemos que uma parte integrante da cultura democrática diz respeito aos valores dos cidadãos: àquilo em que eles acreditam, o modelo de sociedade em que desejam viver. Neste aspecto como em outros, há muito espaço para melhora”, diz. 

Como fazer 

Iniciativas educacionais que busquem conscientizar os jovens sobre sua atuação política devem partir, em primeiro lugar, de um ensinamento sobre os direitos e deveres, defende Raskin. “Claro que é importante conhecer o funcionamento dos poderes, dos processos institucionais, e saber sobre os candidatos e partidos”, diz. “No entanto, os cidadãos precisam aprender, desde a infância, que são responsáveis pelo mundo ao seu redor e pelo seu convívio com os outros indivíduos”, afirma. 

Para Raskin, esse entendimento é fundamental para que os estudantes se percebam como parte de algo maior. “A partir dessa crença, desenvolve-se o zelo pela coisa pública: que, enquanto cidadão, tem-se o dever de se informar, de fiscalizar o Estado, de participar, para que se possam, então, usufruir plenamente de direitos”, argumenta. 

Essa tarefa também precisa contar com professores qualificados para tratar do tema. “Não podemos acreditar que todos os professores necessariamente terão a formação devida em política. É importante desenvolver cursos de capacitação para os professores a este respeito”, defende Bley. 

Outro obstáculo observado por especialistas é a desilusão de alguns professores com os acontecimentos dos últimos anos no país. “Esse cenário é em certa medida inevitável se considerando o período de crise institucional pelo qual passamos nos últimos anos”, admite Bley. “Mas é importante notar que, apesar de tudo, a democracia brasileira sobrevive”, diz. 

Desafios para o Brasil 

Um dos principais especialistas brasileiros no tema é Humberto Dantas, que realizou projetos de iniciação política nas periferias de São Paulo e atualmente preside a Escola do Parlamento da Câmara de São Paulo. Suas experiências são descritas didaticamente no livro Educação política: sugestões de ação a partir de nossa atuação, em que oferece sugestões para os professores aproximarem temas amplos e complexos como “democracia”, “cidadania” ou “estrutura do Estado” de alunos desabituados a discutir essas questões. 

Dantas explica que a escola é o local ideal para discutir política de uma forma ampla. “Podemos ensinar os jovens a pactuarem e discutirem o espaço que vivem, e esse convívio pode se ampliar a ponto de discutirem uma intervenção pequena na cidade, no bairro, no quarteirão. Tal ação gera responsabilização. Entendo que esse processo funcione bem até o final do ensino fundamental”, diz. 

“A partir do ensino médio a responsabilidade aumenta ainda mais, e torna-se necessário entender o que significam e como funcionam as instituições amplas e formais de nossa política. Os poderes, o sistema eleitoral, as esferas de poder etc. Tudo isso pode e deve ser feito no ensino médio, de forma suprapartidária. Esse é o compromisso de uma nação com a democracia”, afirma. 

Dantas explica que, na Alemanha, há bons exemplos de escolas que seguem esse roteiro e que, em Portugal, se ensina ciência política no último ano do ensino médio. No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação prevê que os currículos “devem abranger, obrigatoriamente o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil”, mas a Base Nacional Comum Curricular não prevê uma competência específica para a educação cívica. 

“Em tese, o que está descrito na BNCC contempla muitos desses valores, tentando contemplar o que seriam princípios elementares da cidadania e da democracia. A questão é que existe um abismo o que está escrito e o que vai ser praticado, ao mesmo tempo em que muito do que já é praticado em alguns lugares já pode contemplar o que está descrito. A intenção da Base parece boa, mas a questão é saber em que medida vamos conseguir avançar com esse roteiro”, diz Dantas. 

Exemplos 

De fato, o Brasil tem visto projetos dedicados à difusão do conhecimento político ganharem fôlego nos últimos tempos. Dantas destaca as escolas do parlamento, os programas de parlamento jovem, ações de educação política em empresas, cursos de curta duração e a criação de aplicativas em linguagem moderna. 

Em Porto Alegre, por exemplo, já funciona a Mobis, uma startup que distribui material para aulas de cidadania a alunos do ensino médio, tanto em escolas públicas como privadas. O conteúdo é elaborado por pesquisadores conceituados na área. Em Curitiba, o Colégio e Instituto Opet desenvolve o projeto Cidade Mirim, para alunos do Ensino Fundamental I, que busca ensinar cidadania a partir da vivência em um espaço construído como uma “minicidade”.

Outros casos que têm despertado atenção ao investir na estratégia chamada de “gamificação” (referência à palavra em inglês “game”, que significa jogo), que consiste em usar dinâmicas lúdicas para engajar as pessoas ao mesmo tempo em que se ensina algo a elas, são justamente os jogos que ensinam sobre o sistema político. No Brasil, duas das iniciativas mais conhecidas nesse sentido são o “Jogo da Política” e a “Fast Food da Política” – ambos os projetos disponibilizam seus jogos sobre política para download e a Fast Food está fazendo um financiamento coletivo para desenvolver uma série de jogos sobre as eleições de 2018

Lucas Alves, que é facilitador e um dos representantes do Jogo da Política, explica que o projeto nasce da compreensão de que a população brasileira conhece pouco o sistema político do país. “Essa cultura política é criada a partir da educação. Não temos nas escolas hoje um ensino que contemple questões básicas como leitura da Constituição, o que são os três poderes, quais as funções e cargos públicos que existem hoje no país, como o Orçamento público é dividido, dentre outros temas. Muita gente expressa hoje uma vontade de transformar o sistema político brasileiro, mas não sabe por onde começar por conta dessa defasagem”, diz. 

Na mesma linha, Júlia de Carvalho, diretora da Fast Food da Política, explica que o objetivo do Fast Food da Política é desenvolver jogos e metodologias para que as regras que conformam os procedimentos públicos possam ser compreendidas de maneira “rápida, leve e divertida”. “Um dos papeis para essas ferramentas que a gente desenvolve é poder fazer com que a sociedade civil use isso no futuro como política pública”, afirma. “Nós entendemos o jogo como uma ferramenta para analisar o cenário que vivemos hoje, mas também para transformá-lo estrategicamente”, diz. 

Nos Estados Unidos, a ONG iCivics – fundada em 2008 por uma ex-Ministra da Suprema Corte do país – elabora videogames e planos de aula para professores abordarem temáticas de participação cidadã em sala de aula. Atualmente, uma década após o início dos trabalhos, a iCivics já atinge mais de 3 milhões de alunos através de cerca de 150 mil professores. Em 2016, um estudo da Universidade de Baylor avaliou a participação de estudantes do quinto ao nono ano em uma série de atividades do iCivis e concluiu elas produziram quatro resultados positivos mensuráveis entre os participantes do projeto: “produzir líderes jovens para o século 21, produzir cidadãos ativos e informados, aumentar a participação cívica dos jovens e encorar a criação cívica por parte da juventude”.

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