Após chegarem à mesa de deputados da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), denúncias de irregularidades na gestão financeira das universidades públicas do Estado paulista serão "atenciosamente" investigadas. Nesta quarta-feira (8), Valéria Bolsonaro (PSL-SP) - parente distante do presidente Jair Bolsonaro (PSL) - foi escolhida relatora da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que pretende apurar de que forma a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Universidade Estadual Paulista (Unesp) estão utilizando recursos públicos repassados a elas.
Desde 1989, por decreto do então governador de São Paulo Orestes Quércia, parte do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado é transferido às instituições. Atualmente, o percentual mensal está em 9,57% - isso significa ao menos R$ 9 bilhões que chegam aos "cofres" das academias. O valor é dividido entre as três universidades, e quem decide quanto vai para cada uma é o Conselho de Reitores das Universidades de São Paulo (Cruesp).
No documento, Quércia recomendou que "as despesas com pessoal não excedessem a 75% (setenta e cinco por cento) dos valores liberados pelo Tesouro", como determina o artigo 38 da Constituição Federal (CF). Sabe-se que nas universidades federais, ao menos, o gasto com folha de pessoal, em média, representa 80% do orçamento.
No entanto, à medida que as universidades estaduais se expandiram, reitores passaram a questionar o recurso, com a alegação de que as crises financeiras vividas pelas instituições de ensino seriam resultado da insuficiência do valor destinado. Inclusive, chegaram a questionar os cálculos feitos , dando a entender que poderia haver certa "maquiagem" nos números para não repassar todo o que estava previsto. Além de outras tentativas, em 2018, o Cruesp solicitou, através de emenda à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que o montante fosse ampliado para 9,95%.
Mas os parlamentares membros da comissão afirmam ter provas de que o recurso estaria sendo utilizado de maneira "ostentosa". Segundo um deles, há indícios, por exemplo, de que o financiamento bancou a estadia de professores universitários, durante viagens a trabalho, em hotéis luxuosos, e a compra de passagens aéreas de classe executiva.
Os "supersalários" dos docentes, principalmente dos aposentados, também são alvo de averiguação. Uma busca simples no Portal de Transparência da Universidade de São Paulo (USP) revela que professores inativos são remunerados em até R$ 48 mil - valor acima do teto do estado, ou seja, o subsídio recebido pelo atual governador (cerca de R$ 23 mil).
Aliás, essa é uma das principais "brigas" dos docentes paulistas estaduais, que lutam para que o salário deles não esteja atrelado ao do chefe de estado, mas seja como o de professores das instituições federais e de outros estados, que não está sob essa prescrição.
"Universidade é caixa-preta"
Contrários à medida dizem que os deputados querem, na verdade, "sorrateiramente", investigar um suposto aparelhamento de esquerda nas universidades, além de fazer com que elas passem a cobrar mensalidades. À Gazeta do Povo, membros da CPI garantiram que esse não é o objeto da investigação, e a proposta de privatizar as universidades, por exemplo, seria exclusiva do partido NOVO.
Vice-presidente da comissão e líder do PSDB na Alesp, Carla Morando critica o sigilo das instituições quando o assunto é prestação de contas, e afirma que, embora elas tenham autonomia, é direito da população ter conhecimento do destino dos recursos. "As universidades não fazem nenhum tipo de prestação de contas por causa da chamada 'autonomia'. Por que não podem ter as contas públicas abertas para que todas saibam o real destino de um valor tão expressivo?", questiona. "Se em todos os lugares se presta conta, por que lá não pode? É uma caixa-preta?".
Segundo ela, os parlamentares membros da comissão ainda não "conseguiram dar conta de todo o material que receberam", pela grande quantia de denúncias, que incluem, entre outras questões, a utilização, por parte de professores, de dinheiro público para "diárias em hotéis luxuosos e viagens aéreas para o exterior em classe executiva".
Carla admite que é necessário ter certeza do "real fundamento das queixas", e afirma: "Tudo o que for acima do teto, a gente tem que saber por que esse valor é a mais".
Sobre as alegações de averiguação de viés ideológico dentro das instituições, a parlamentar diz que "não há nenhuma investigação dessa natureza". "Eles [a oposição] querem, na verdade, fazer esse discurso para que a gente não consiga realizar a CPI. Se o dinheiro está sendo bem utilizado, não tem porque ter medo", sugere.
Valéria Bolsonaro também acusa a oposição de "inflar os estudantes" e utilizá-los "como massa de manobra por interesse político" contra a CPI. "Muitas destas Universidades estão aparelhadas por partidos políticos, por viés ideológico, e nós estamos aqui para apurar a aplicabilidade do dinheiro que o governo passa para elas", denuncia.
"Autonomia não é soberania"x "CPI sem fundamento"
Como disse, recentemente, o próprio ministro da Educação, Abraham Weintraub, a autonomia das universidades, garantida pelo artigo 207 da Constituição Federal, não é a mesma coisa que soberania.
Mas alguns educadores alegam que a CPI é uma interferência à liberdade de cátedra das universidades.
Para a deputada do PT-SP Beth Sahão, há vários motivos que inviabilizam a continuidade da CPI na Alesp. De acordo com ela, a comissão não tem objeto definido e "é tudo muito vago".
"A justificativa não é plausível. Uma CPI precisa subscrever o objeto, com exatidão, que se pretende investigar. Se não, ela vira uma CPI do fim do mundo", defende.
No documento, os deputados solicitam aos reitores das universidades e ao presidente do TCE-SP, Roque Citadini, que apresentem: 1) relatório de todos os servidores inativos e ativos, informando seus respectivos vencimentos; 2) relatório especificado de todos os servidores inativos e ativos que recebem renumeração, discriminando os acréscimos que ultrapassam o teto constitucional, limitado ao salário do Governador; 3) indiquem todos os funcionários que recebem remuneração acima do teto constitucional que não estão em gozo do direito adquirido.
A parlamentar afirma, além disso, que a investigação "pode interferir de uma forma irregular nessa liberdade de cátedra e na autonomia" das universidades. Ela ainda garante que as instituições "já enviam para a assembleia, quase mensalmente, relatórios com os seus gastos", e que "os reitores, obrigatoriamente, têm que comparecer às comissões de tecnologia e educação para prestar contas".
"As universidades são auditadas pelo Tribunal de Contas do Estado. Nesse sentido, nós estamos desqualificando e desmerecendo o TC, pois estamos dizendo que ele não serve para nada, enquanto audita com muito rigor as contas das universidades públicas. Isso não é qualquer coisa", diz ela.
Ainda sobre as alegações de investigação de aparelhamento ideológico nas instituições, a deputada afirma que a questão é de natureza "abstrata e não mensurável, muito menos objeto de CPI".
Questionada sobre a remuneração de até R$ 49 mil com a qual professores aposentados da USP são gratificados, Beth defende que "são pouquíssimos os profissionais que têm esse salário". "Eles [membros da CPI] pegam poucos casos. Isso é fruto das várias gratificações que são incorporadas aos salários por conta da titularidade", diz.
Posicionamento
Em nota, o Cruesp diz esperar que "a CPI sirva para mostrar o papel de protagonismo que possuem USP, Unesp e Unicamp no ensino superior do país e a importância delas para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil".
Leia a manifestação completa:
"As contas das três universidades públicas estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp) são auditadas por órgãos de controle externo de forma periódica, em especial pelo Tribunal de Contas do Estado. Além disso, o principio da transparência é aprimorado continuamente, com o objetivo de prestar contas à sociedade de todas as atividades institucionais. O Cruesp espera que a CPI sirva para mostrar o papel de protagonismo que possuem USP, Unesp e Unicamp no ensino superior do país e a importância delas para o desenvolvimento científico e tecnológico do Brasil".
A Secretaria de Desenvolvimento Econômico de São Paulo também se manifestou, e, embora reconheça que "não interfere nas gestões administrativas, pedagógicas e financeiras" das universidades, diz estar "à disposição da Assembleia Legislativa para quaisquer esclarecimentos" em relação à CPI.
Veja o documento oficial da CPI: