Negligenciadas por governos anteriores, muitas das demandas específicas de surdos foram atendidas pela nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE), do Ministério da Educação, suspensa em caráter liminar pelo ministro Dias Toffoli na última quarta-feira (2). A política é vista com esperança por representantes como Patrícia Luiza Ferreira Rezende, doutora em Educação, Professora Associada do Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines) e ex-diretora da Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (Feneis) entre 2009 a 2014.
Em entrevista à Gazeta do Povo, ela lembra que não se pode formular políticas públicas voltadas à educação especial sem ouvir as pessoas para as quais ela se direciona. Recorda também que esse é o mote do principal documento internacional sobre o tema, a Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, das Organização das Nações Unidas (ONU). Nos últimos anos no Brasil, contudo, a opinião de pessoas com deficiência, ou ao menos parte delas, não era considerada.
É o que revela, por exemplo, uma carta-denúncia de 2011 elaborada pela própria Feneis e enviada ao Ministério Público Federal (MPF). O documento denunciava o teor da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, da antiga Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), sob a gestão de Fernando Haddad (PT) à frente da pasta, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).
Havia, segundo a federação, política de ameaça por parte do MEC contra escolas e classes cujas línguas de instrução eram a Língua de Sinais Brasileira e a Língua Portuguesa. O Instituto Nacional de Educação de Surdos também era alvo da pasta, embora a tentativa não tenha prosperado frente aos protestos da comunidade surda.
A linha de atuação do MEC costumava ser informada pela ideologia de determinados grupos que, ao lutarem pela inclusão radical, tentam dizimar qualquer forma de linguagem que não o oralismo. Na prática, a ideia desse movimento é a seguinte: surdos devem ser obrigados a aprender o português como primeira língua, e incentivados a tentar passar por um processo de oralização.
O segundo aspecto foi e é possível, mas demanda uma "rara combinação entre suas singulares propensões pessoais à aquisição de uma língua cuja modalidade é inconforme a suas características sensoriais e as particulares condições econômico-sociais de suas famílias, que lhes permitiram obter um diário, contínuo e prolongado tratamento fonoterapêutico", explica a Feneis na carta-denúncia. Muitos, por não obter sucesso no processo, desistiam de estudar.
"[Na história, no último século] há quantidade enorme de depoimentos de surdos relatando que foram, imensas vezes, obrigados a se sentar sobre as mãos para lhes dificultar todo movimento de interação com ela; suas mãos recebiam tapas de seus professores, em salas de aula, quando suas tentativas de comunicar-se com elas. No pátio da escola, a vigilância prosseguia com intervenções e advertências e, em alguns casos, a família era até mesmo orientada a amarrar, em casa, as mãos de seus filhos".
Carta-denúncia enviada pela Feneis ao MPF.
A principal reivindicação de grande parte dos surdos é pela educação bilíngue, na qual se aprenda a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua e o português, como segunda. Essa garantia foi prevista no Decreto 5.626/2005 e, mais tarde, amparada pela Convenção da ONU, promulgada no Brasil com status de Emenda Constitucional.
A antiga política e os movimentos que priorizam apenas a língua oral, para a federação, contrariam os preceitos constitucionais determinados pela própria Convenção. O documento internacional afirma que a “a educação de pessoas, inclusive crianças cegas, surdocegas e surdas, seja ministrada nas línguas e nos modos e meios de comunicação mais adequados às pessoas e em ambientes que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento acadêmico e social”.
Mas, apesar de a legislação ordinária e constitucional amparar esse direito linguístico das pessoas surdas, elas denunciaram estar “submetidas a uma situação semelhante a um estado de sítio permanente, em que nossas 'garantias constitucionais' estão 'suspensas'”.
Segundo o que informou ao MPF, na época, a Feneis acredita que o processo de ensino-aprendizagem inicialmente feito pela Língua Brasileira de Sinais (Libras) permite às pessoas surdas "o direito a decidirem sobre si mesmos, de transformar desejo em vontade conscientemente expressa e universalmente argumentável, experiências e afetos em símbolos socialmente reconhecíveis". Para muitos, essa é a melhor forma de acessar integralmente o currículo escolar.
"A sobrevivência da Língua de Sinais Brasileira e a conquista do seu reconhecimento legal só foi possível graças a décadas de resistência anônima de centenas de milhares de surdos que mantiveram, enriqueceram e repassaram a língua de sinais a outras gerações", diz a Feneis na carta-denúncia. "Como podem, em condições de alienação linguística, exercer plenamente suas prerrogativas constitucionais, seus direitos humanos, sociais e políticos mais fundamentais?".
Por fim, o grupo reivindicou, na carta, que as Escolas Bilíngues para Surdos fossem uma realidade no Brasil. O pedido só foi atendido pela atual gestão do MEC, com a nova Política Nacional de Educação Especial (PNE), documento que acabou sendo derrubado por liminar do STF em 2 de dezembro de 2020. Para a Corte, a política "contraria o modelo de educação inclusiva, ao deixar de dar absoluta prioridade à matrícula desses educandos na rede regular de ensino". Ainda segundo o ministro, a nova PNEE tem aspectos que não são amparados pelo ordenamento jurídico." A política ampara a criação de escolas e classes bilíngues.
A Feneis e a Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS) devem ingressar como amicus curiae no STF para defender o decreto. "Esperamos que haja sensibilidade na votação, considerando-se as análises desses pedidos. O Decreto não é inconstitucional, como vários juristas já afirmaram. O pedido dos surdos leva ao respeito linguístico que deve ser garantido a qualquer ser humano", afirma Patrícia.
"Inclusão se faz com respeito; não se inclui obrigando que todos, ou qualquer um, estejam no mesmo lugar, sem que se importe as individualidades, as especificidades e as necessidades de cada um, que incluem, entre tantas, a de estudar em ambiente linguístico favorável, natural, acessível e ao lado de pares que se entendem e partilham das mesmas necessidades".
Patrícia Rezende.
Abaixo, leia a entrevista que a Gazeta do Povo fez com Patrícia Rezende:
Quando falamos a respeito de pessoas com deficiência, tratamos de um universo que abrange diferentes tipos de perfis e necessidades. Segundo alguns interlocutores, no entanto, na maioria das vezes, no debate público, há quem queira falar em nome de todos os tipos de deficiências. Por exemplo, haveria representantes de determinadas comunidades que insistem em falar em nome de outras, como representantes dos alunos com espectro autista que querem falar em nome da comunidade surda. Isso realmente acontece?
Patrícia Rezende: Acontece com muita frequência. Por isso, nós, surdos, sempre nos posicionamos com firmeza para que outros interlocutores não falem por nós. Também optamos por não nos manifestar sobre especificidades de outros segmentos, sempre respeitando o lugar de fala de cada pessoa, defendendo e se posicionado sobre as suas especificidades e necessidades em relação a sua deficiência.
Nós, surdos, falamos e pontuamos questões sobre nossos próprios desejos e experiências. Sem compreender nosso posicionamento, já fui acusada de promover o segregacionismo por um representante dos autistas, sendo que a real defesa era por espaços educacionais que garantissem nosso direito linguístico e cultural.
Quais são os impactos disso, uma vez que as pessoas podem não estar sendo, de fato, representadas e tendo suas singularidades atendidas?
Patrícia Rezende: Os impactos são negativos porque desvalorizam o lugar de fala do outro, eliminando possibilidades de representantes dos diferentes coletivos e comunidades exercerem seu protagonismo. Além de atentar contra o lema defendido pela Convenção Internacional sobre Direitos das Pessoas com Deficiência que emana o lema: "nada sobre nós sem nós".
Em sua perspectiva, a comunidade surda teve “lugar de fala” no que diz respeito às políticas públicas nos últimos anos? Foi ouvida pelo governo e teve suas demandas atendidas?
Patrícia Rezende: Tivemos pouca abertura para participação durante os últimos anos e poucas vezes fomos atendidos. Em 2014, a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis) participou do Grupo de Trabalho instituído pelo MEC e, no Relatório Final de Política Linguística de Educação Bilíngue – Libras e Português Escrito, deixou registrada várias reivindicações, dentre elas, a necessidade da criação de uma Diretoria que tratasse de assuntos específicos sobre Educação de Surdos.
Este relatório, lamentavelmente, foi desvalidado em nota técnica pela então dirigente de Políticas Educacionais da Educação Especial do MEC à época. Mesmo assim, em 2019, foi criada a Diretoria de Políticas de Educação Bilíngue de Surdos dentro do MEC, o que contemplou uma solicitação importante para que fossem debatidos assuntos relativos a nossos direitos linguísticos em âmbito educacional.
Poderia nos falar um pouco a respeito do movimento contra a permanência e existência de escolas bilíngues de surdos? Por exemplo, quem defendeu essa bandeira ao longo dos últimos anos, no Brasil? A comunidade surda foi ouvida, quando decidiu pela permanência das escolas?
Patrícia Rezende: O movimento contra as nossas constantes reivindicações por Escolas e Classes Bilíngues de Surdos é composto por pessoas que nada sabem sobre as especificidades linguísticas e culturais da comunidade surda. Apesar da classificação de minoria linguística, somos uma comunidade forte e organizada, sabemos o que é melhor para o povo surdo.
Quando alguma de nossas solicitações não é atendida, não encaramos como derrota. Pelo contrário, nos sentimos fortalecidos e, rapidamente, levantamos, brandimos, protestamos e procuramos instâncias necessárias para que sejamos ouvidos e respeitados.
Foi o que aconteceu durante tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) e quando o INEP/MEC negou executar a tradução das provas do Enem em Língua Brasileira de Sinais (Libras). Procuramos, imediatamente, a esfera judicial para que houvesse Enem em Libras e conseguimos essa vitória. Esse é somente um exemplo de tantas outras demandas que conquistamos com muita bravura.
Os dados mostram que o cerco às escolas bilíngues de surdos provocou evasão escolar dos alunos. Em sua perspectiva, por que isso ocorreu?
Patrícia Rezende: Porque o MEC organizou as matrículas dos alunos com deficiência de forma que estes recebem pela efetivação da vaga na classe comum e também pela vaga na turma de contraturno do Atendimento Educacional Especializado.
Esse financiamento de “dupla matrícula” tornou-se vantajoso aos gestores estaduais e municipais, o que promoveu o fechamento de escolas e classes de surdos ao longo por mais de uma década.
Considerando que o surdo acessa o currículo escolar por meio da língua de sinais, qual é o espaço privilegiado para que a aprendizagem aconteça, de fato? As escolas bilíngues de surdos são o melhor espaço acadêmico para a aprendizagem desses alunos? Por quê?
Patrícia Rezende: Com certeza, sim! Como o Decreto que institui a Política Nacional de Educação Especial dispõe fica bem explícito que a Educação Bilíngue de Surdos, modalidade de educação escolar, promove a especificidade linguística e cultural dos educandos surdos e surdocegos que optam pelo uso da Língua Brasileira de Sinais.
É ratificado que a adoção da Libras como primeira língua e como língua de instrução, comunicação, interação e ensino, e da língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua nas Escolas e Classes Bilíngues de Surdos possibilitam o acesso ao currículo de forma integral.
O significado do texto legal reforça nossa reivindicação de que as aulas em classes comuns traduzidas ou interpretadas para Libras não atendem nossas especificidades e necessidades linguísticas, pois consideramos a Libras como língua soberana para nossa aprendizagem e interação com o mundo.
Alunos de escolas especiais realmente não se socializam, como afirmam os defensores da inclusão radical?
Patrícia Rezende: Não consideramos escolas de surdos como escolas especiais. São escolas bilíngues que trazem a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua.
Podemos afirmar que os alunos surdos interagem em língua de sinais e aprendem Ciências, Matemática, História, Português e todas as outras disciplinas e temas em sua língua natural.
Como 95% destes alunos são oriundos de famílias ouvintes, o espaço das escolas bilíngues de surdos é essencial para identificação cultural e linguística com seus pares surdos. A Convenção da ONU já especifica que o Estado-Parte (Estado Brasileiro) precisa facilitar a formação da identidade linguística da comunidade surda. Então eu pergunto: quais são os melhores espaços educacionais para que sejamos Surdos?
Como você analisa a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE)? Ela contempla as singularidades da comunidade surda?
Patrícia Rezende: Especificamente na parte que trata da educação de surdos, a Política Nacional de Educação Especial atende bem as singularidades e reivindicações da comunidade surda.
Ainda tenho dúvidas de como se dará o financiamento para implementação de Escolas e Classes Bilíngues de Surdos, pois isso ainda não foi explicitado em nenhum documento legal publicado.
Nossa defesa é para que nossos direitos linguísticos e culturais sejam respeitados para que possamos exercer nossa cidadania como sujeitos brasileiros. Somos surdos, queremos ser protagonistas de nossas vidas e para isso que lutamos diariamente. Nada sobre nós surdos, bilíngues e sinalizantes, sem nós surdos.
*Leia a íntegra da carta-denúncia enviada pela Feneis ao MPF: