O Brasil é um país em que, infelizmente, um aluno pode chegar ao 9º ano sabendo escrever apenas o próprio nome. Como isso é possível?
Sylvia Ciasca, neuropsicóloga e coordenadora do Disapre (Laboratório de Pesquisa em Distúrbios, Dificuldades de Aprendizagem e Transtorno de Atenção), explica que esse resultado pode ser consequência de dois fatores. O primeiro seria de ordem neurobiológica, que afeta de 5% a 10% da população escolar. Por outro lado, na maior parte das vezes, em 60% dos casos de estudantes com dificuldades de aprendizagem, o desempenho ruim decorre de fator pedagógico (escola, professor, metodologias de ensino).
Após concluir, em uma pesquisa com outros neuropsicólogos, que muitos professores desconhecem a “diferença entre distúrbios de aprendizagem e dificuldades”, Sylvia continua a defender que o docente deveria estar melhor aparelhado e “ser um expert” no combate a esses dilemas.
À Gazeta do Povo, ela também explica como o cérebro aprende, fala sobre métodos de alfabetização e outros assuntos. Leia a entrevista:
Dra. Sylvia, como a neurociência explica o processo de aprendizagem?
Quando eu vejo a imagem de uma letra, ou um objeto qualquer, por exemplo, eu transformo essa imagem em pulso elétrico, que é levado para minha região occipital, processo essa imagem em áreas primárias, secundárias e terciárias e levo a informação para outras áreas, que são áreas temporais e parentais.
Após isso, processo a informação, a levo para áreas frontais, analiso novamente a informação e, então, a levo para áreas pré-frontais e dou a resposta ao meio, que é sempre uma resposta motora, ou seja, eu falo, gesticulo, mexo. Esse é o caminho que o cérebro faz, o qual nós chamamos de ‘caminho da aprendizagem’.
Por que algumas pessoas não conseguem aprender? O que há (ou aconteceu) de errado com elas?
Quando o cérebro não faz esse caminho, que chamamos de ‘caminho da aprendizagem’, acontecem as disfunções, que são falhas no processo de aprender ou os chamados ‘distúrbios de aprendizagem’. Os distúrbios são processos neurobiológicos e, embora muita gente fale sobre dislexia e déficit de atenção, eles são considerados de difícil diagnóstico, porque são raros. Além disso, são mais comuns em meninos do que em meninas, existem em todas as classes sociais e afetam em torno de 5% a 10% da população estudante.
As chamadas ‘dificuldades de aprendizagem’, no entanto, são de ordem pedagógica, relacionadas à escola, ao método usado, ao professor e a vários outros fatores de ordem pedagógica, diferentemente dos distúrbios neurobiológicos. Esse tipo de situação, no entanto, é diagnosticado em cerca de 60% das crianças que não aprendem na escola. E isso é uma coisa boa, porque, se não, haveria uma imensidão de crianças com problemas neurológicos.
Existem milhões de crianças com problemas de aprendizagem relacionados à educação e, efetivamente, é esse o nosso principal dado em relação aos problemas do ato de aprender, e eu acho que o mais importante é terminarmos com a dificuldade escolar. Mesmo com esses indicadores, é importante salientar que todo mundo aprende, de uma forma ou de outra. Até mesmo quem tem deficiências intelectuais, pois eles aprendem à medida do possível dentro de suas capacidades.
Essa explicação também serve para os analfabetos?
São pessoas que vão ‘indo’ no processo de aprendizagem e não passam por um diagnóstico, que é sempre clínico ou disciplinar. Elas vão sendo ‘levadas’ e chegam ao final do 9º ano sem saber ler e escrever, mas chegam.
Elas sabem ler coisas episódicas, como, por exemplo, o anúncio da Coca-Cola, mas apenas compreendem que o anúncio representa a Coca. Além disso, mal escrevem o próprio nome e, se você perguntar quais são as letras do nome, dirão que não sabem fazer. Elas viram copistas, pois não escrevem, e escrever implica na compreensão da leitura. Infelizmente, essas pessoas saem da escola, em sua grande maioria. Alguns são absorvidos pelo mercado de trabalho, outros não, e geram, inclusive, processos sociais graves, como a marginalidade.
Se tivéssemos uma boa escola e um bom sistema educacional, com certeza não teríamos tantas crianças que chegam ao 9º ano escolar semianalfabetas ou só escrevendo seu próprio nome – quando escrevem.
A senhora acha que existe um método de alfabetização ideal?
Qual é o método ideal para aprender? Eu lhe respondo que é o método que faz com que a criança aprenda. Existe um melhor? Existe. O que é melhor para a criança. Se você me perguntar: “O que a senhora acha do método fônico?”, eu vou lhe dizer: “Acho que o importante é a criança aprender, independentemente do método”. O método é a consequência do aprendizado, ele não é o fator principal.
O mais importante é a criança estar no momento certo de aprender, pois não adianta eu colocá-la com 3 anos para aprender física quântica. Ela não vai aprender, pois não é o momento certo. Nós aprendemos, basicamente, por um processo relacionado ao ato motivacional, relacionado a todo um ambiente favorável à aprendizagem. Você pode motivar a criança para que ela adquira, e isso é uma coisa. Forçá-la, no entanto, é diferente. Ensinar física para uma criança de 3 anos [não funciona], também [porque] não é importante para ela. É preferível que ela brinque, que tenha a capacidade de brincar, a percepção e criatividade que vêm disso. Ela está fazendo o seu papel.
O Brasil usa um monte de coisas que, na verdade, nem métodos são. Piaget nem fez um método, ele fez um processo clínico de observação clínica. Nós precisamos reavaliar aquilo que é importante para a criança na idade que a favoreça. Nós temos um tempo maturacional, o meu cérebro tem um tempo exato para adquirir, e ele vai adquirir nesse momento. Não adianta eu colocar o carro na frente dos bois.
As pessoas que têm a minha idade ou menos foram alfabetizadas pela cartilha ‘Caminho Suave’, que ficou mais de 50 anos alfabetizando crianças. Essa cartilha é o único livro no mundo que nunca sofreu uma revisão. E, de certa forma, ela alfabetizou. A prova é que estamos aqui.
Como o professor pode descobrir qual o melhor método para aplicar em sala de aula?
Hoje, em uma sala de aula, há 35 crianças, aproximadamente, cada uma com um perfil de desenvolvimento. Por isso, o professor deve ser um expert, ele deve aproveitar esses diferentes momentos e fazer com que essas crianças produzam cada uma no seu próprio ritmo. Eu produzo à medida que o meu professor produz, à medida que ele está aberto à aprendizagem e me conduz aos caminhos e à motivação para aprender.
Atualmente, há várias escolas de pedagogia que não têm, por exemplo, uma disciplina chamada neurodesenvolvimento. Então, esses professores não sabem o que acontece com a criança em determinada faixa etária. Se eles fossem treinados melhor nesse sentido, nós teríamos menos problemas, se o professor fosse valorizado, se tivesse raízes sólidas na sua formação. Mas, infelizmente, não temos. Precisamos dar a ele condições para fazer o seu trabalho, treiná-lo, dar a ele instrumentos que ele não tem, e, se tem, ensiná-lo a usar. Sei que, muitas vezes, as coisas não funcionam porque esse professor está desaparelhado, desacompanhado e sem nenhum apoio que o leve a alcançar o seu objetivo. O docente deve saber, por exemplo, diagnosticar uma criança com dificuldade escolar. Ele tem que ter essa noção, esse aporte para falar: “Essa criança está com problema e eu preciso ver o que ela tem”, e não ser usado para passar todas as crianças e ter uma média para cumprir.
Então, se você perguntar qual o melhor método e como ele funciona, eu lhe diria que o método funciona de acordo com a aprendizagem que o professor tem dele. Se é um professor capaz, eficaz e que tem essa produtividade em mente, vai funcionar muito bem, tanto analítico, sintético, fônico, apostilado, enfim.
Mas essa é uma discussão antiga. Temos problemas desde o início da nossa alfabetização, que foi com os jesuítas, que alfabetizavam os índios para que pudessem rezar. Esse já é um motivo desconexo, pois não alfabetizavam para que [os índios] pudessem aprender, o objetivo era outro. Esse processo há muito tempo precisa de reformas de base, pois não adianta reformar universidade, ensino técnico, se não reformar a escola de base. Mas é difícil. Reformar a base é mais difícil do que reformar o topo da pirâmide.
O método fônico e o construtivista se complementam?
Eu não gosto muito de falar sobre métodos, porque cada método tem um autor, e isso pode gerar certa confusão. Mas, vamos supor, temos um método que é o apostilado, que é o que a criança vai seguindo como se fosse uma apostila. É um método bastante interessante se nós tivéssemos base educacional para ele.
Nós temos uma dualidade no processo da aprendizagem. A criança entra na escola para aprender a ler e escrever, não é? E, aí, ela continua na escola para aprender. Dessa forma, ela usa o que ela começou a aprender para aprender outras coisas e, para fazer isso, é preciso saber ler e escrever. A criança entrou na escola para fazer esses dois únicos processos.
Dessa forma, a capacidade vai se aflorando até que chega um momento em que eu escolho fazer medicina e não jornalismo. A nossa aprendizagem passa a ser seletiva, passa de um momento único, que é ler e escrever, por vários processos, até chegar à seletividade do aprender. Isso leva, às vezes, a vida inteira. Nós aprendemos desde o nascimento até a morte e, cada vez mais, aprendemos coisas que nos são significativas.
E é importante dizer que, quando eu uso um método A, B ou C, é necessário que eu tenha base suficiente dentro daquela escola para suportar o método. Professores capazes de treinar dentro daquele método de ensino. Isso é um grande fator. O professor deveria passar por um processo de reciclagem para saber qual é o método que ele deveria usar dentro da sua sala de aula. Mas isso não acontece.