Ingerir açaí ou escutar música são atividades comuns no cotidiano de muita gente. Talvez o que essas pessoas não saibam é que esses hábitos podem auxiliar na qualidade de vida. De fato, a melhoria acontece. É o que mostram pesquisas científicas publicadas recentemente por brasileiros que receberam financiamento de agências públicas para produzirem seus estudos.
Mesmo com a escassez de recursos para a ciência, diversas pesquisas brasileiras, com foco no bem-estar da população, poderiam ter ficado na gaveta sem recursos da União, como é o caso da descoberta do açaí para melhoria no tratamento de bipolaridade.
A Gazeta do Povo elencou sete pesquisas que demonstram a importância do financiamento para realizá-las e de que forma elas podem mudar a vida de muita gente.
Açaí em tratamentos de saúde
Com apoio de bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoas de Nível Superior (Capes), o doutor em Farmacologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFMS), Alencar Machado, descobriu que, além de ajudar na prevenção de colesterol alto e aterosclerose, por exemplo, o açaí ainda pode demonstrar resultados satisfatórios no tratamento de doenças neuropsiquiátricas, sobretudo em portadores de distúrbios bipolares.
Segundo o pesquisador, pessoas acometidas pela doença apresentam alteração nas mitocôndrias, “estrutura responsável pela produção de energia celular, levando a danos nos neurônios”. Também foi levada em conta a capacidade antioxidante e anti-inflamatória do açaí. Diante disso, o estudo confirmou a hipótese de que o fruto pode restabelecer o funcionamento neurológico.
“O principal achado do estudo foi de que o extrato de açaí é capaz de prevenir e, principalmente, reverter a alteração das mitocôndrias dos neurônios de modo a fazer com que estas células restabeleçam seu funcionamento correto. Acreditamos que o açaí possa ser uma boa alternativa natural para tais indivíduos no sentido suplementar e ser um coadjuvante aos medicamentos”, explica Machado, que alerta: antes de consumir o fruto, é preciso consultar um profissional de nutrição para adequá-lo à dieta.
A pesquisa, resultado do doutorado de Machado, ainda teve parceria com a Universidade de Toronto, no Canadá, e com a Universidade Aberta da Terceira Idade (Unati/UEA). O período fora do Brasil também contou com auxílio de bolsas de pesquisas por agências públicas.
Uma das projeções para a pesquisa é indicar uma quantidade determinada de ingestão de açaí para auxiliar na bipolaridade.
“Estamos desenvolvendo estudos adicionais relacionados aos efeitos positivos do fruto para que então possamos ter bem determinada a questão de quantidade de ingestão”, explica.
Música, a aliada do coração
Agora o hipertenso tem mais um motivo para ouvir música. Pelo menos é o que aponta um estudo de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que analisou efeitos de ouvir canções durante o tratamento a base de medicamentos para hipertensão.
Após terem detectado em outros experimentos que a música auxilia em situações de estresses em seres humanos e no aumento da atividade de um nervo gastrointestinal em animais, os pesquisadores decidiram também analisar o efeito causado durante a absorção de medicamentos em hipertensos.
“A música intensificou os efeitos dos anti-hipertensivos sobre o coração. Uma hipótese é de que o relaxamento induzido ativou o sistema nervoso parassimpático e melhorou a absorção do medicamento”, diz o pesquisador da Unesp, Vitor Valenti, coordenador do estudo.
A pesquisa foi desenvolvida a partir do financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Fundação de Amparo a Pesquisa de São Paulo (Fapesp). Além disso, teve parceria com a Faculdade de Juazeiro do Norte (Ceará), Faculdade de Medicina do ABC (São Paulo) e de Oxford Brookes University (Inglaterra).
Para chegar ao resultado, foram analisadas 37 pessoas com hipertensão controlada (14 homens e 23 mulheres). Em uma das análises, após tomarem o medicamento para a doença, os sistemas cardiovascular e nervoso foram monitorados pelo período de uma hora, com fone de ouvido desligado.
“Nossos resultados sugerem o uso benéfico da música como um procedimento complementar às terapias farmacológicas no tratamento da hipertensão. No entanto, nossa pesquisa mostrou evidências em curto período. Não estão totalmente claros os efeitos em longo tempo. Sugerimos estudos futuros com o objetivo de investigar se existe interação da música com outros tratamentos medicamentosos e em longo tempo”, frisa Valenti.
Café, o vilão antes da prática de esportes
Enquanto a música obteve resultados satisfatórios para hipertensos, o café se mostrou um vilão para quem pratica exercícios. A afirmação é de outro estudo coordenado pelo pesquisador Vitor Valenti.
Foram analisados pelo grupo de pesquisa os efeitos da ingestão de cafeína antes da realização de exercício (corrida na esteira) sobre a recuperação após o esforço. O estudo se concentrou na investigação de 32 jovens saudáveis do sexo masculino.
Os voluntários realizaram dois protocolos de exercício moderado. As variáveis analisadas foram pressão arterial, frequência respiratória e a influência do sistema nervoso sobre o coração.
De acordo com Valenti, “em um dia os voluntários realizavam esforço máximo para averiguar a capacidade máxima de esforço físico e, em outros dois dias, que foram aleatórios, eles ingeriram, sem saber, cápsulas de cafeína.”
Os resultados apontaram que não houve efeito da cafeína sobre a pressão arterial, entretanto, por meio de uma análise mais sensível, capaz de detectar mudanças fisiológicas com mais precisão, foi observado que ela diminuiu a velocidade de recuperação do organismo após o exercício.
“Observamos que quando os voluntários ingeriram cafeína antes do exercício a recuperação das variáveis cardíacas e do sistema nervoso autônomo levou mais tempo. A interpretação fisiológica desse achado indica que a cafeína antes do exercício pode aumentar a probabilidade do indivíduo desenvolver problemas no coração”, comenta Valenti, que também contou com auxílio dos pesquisadores Luana Almeida Gonzaga, Luiz Carlos Marques Vanderlei e Rayana Loch Gomes.
Segundo Valenti, o financiamento das duas pesquisas se mostrou crucial para a descoberta científica, com a compra de equipamentos, como monitor cardíaco, materiais relacionados à mensuração de variáveis antropométricas, computadores para análise dos dados e bolsas de pesquisa para estudantes em nível de graduação e pós-graduação.
“A interrupção do financiamento em nossa linha de pesquisa atrasa e pode até finalizar o andamento de projetos relacionados a procedimentos de prevenção de complicações do coração, colaborando em larga escala para o aumento da mortalidade cardiovascular em nosso país”, alerta.
Curativos para diabéticos
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), uma descoberta científica também afeta a vida de milhões de brasileiros. Voltado para portadores de diabetes com úlceras da pele ou ossos agravados pela doença, um curativo foi criado para servir de suporte para o crescimento de novas células de pele ou ósseas.
A descoberta atinge diretamente uma população diabética que só cresce no Brasil. Dados do Ministério da Saúde mostram que em dez anos o número de brasileiros com a doença cresceu 61,8%, passando de 5,5% da população para 8,9%, em 2016.
O curativo foi criado a partir do desenvolvimento e da aplicação de membranas compostas por biomateriais nanoestrutuados. A principal função do produto está no auxílio mais veloz da cicatrização de ferimentos em diabéticos, que apresentam vascularização deficiente provocada pela doença.
A pesquisa também teve como financiadora uma agência pública de fomento da ciência, o CNPQ, e foi coordenado pelo pesquisador Carlos Pérez Bergmann, na UFRGS.
Purificador de ar de baixo custo
Há quatro anos no mercado brasileiro e com exportação para outros seis países, um purificador de ar que utiliza produtos limpos para o meio ambiente nasceu dentro de uma universidade pública.
A partir de estudos desenvolvidos durante a graduação e pós-graduação, o químico Bruno Mena Cadorin criou um procedimento pioneiro para tratar poluição, desenvolvendo um purificador de ar que dispensa produtos nocivos ao meio ambiente.
Segundo Cadorin, o purificador funciona de forma passiva e ativa. No primeiro movimento, ele purifica o ar que o atravessa. Depois, ocorre o movimento de liberação por meio de ozônio, que atinge diretamente as moléculas poluentes do ambiente.
“O gerador capta o oxigênio do ar, convertendo-o em ozônio, que se espalha pelo ambiente. Esse ozônio reage quimicamente com as moléculas poluentes, degradando-as até convertê-las em moléculas menores biodegradáveis. É assim que é possível purificar o ar sem adicionar produtos químicos, e consequentemente utilizando uma tecnologia verde”, explica.
O pesquisador acrescentou que, por ser um gás volátil, há facilidade de sua dissipação pelo ambiente, atingindo locais como tecidos, tapetes, móveis, armários, entre outros itens. Além disso, ele atua como exterminador de bactérias e fungos que causam mau cheiro.
Para o químico, o auxílio financeiro da Capes e CNPQ através de bolsas, além do Ciências Sem Fronteiras (CsF), foram essenciais para o desenvolvimento do purificador.
“Essas bolsas são importantes para o desenvolvimento de pesquisas, da ciência e tecnologia no Brasil, para que surjam histórias como a Wier, que surgiram de pesquisas acadêmicas, e que hoje, é uma empresa que gera impostos, empregos, exporta e contribui para o desenvolvimento sustentável do país, da população e indústria do planeta”, comenta o pesquisador.
Agilidade na detecção de doenças do pet
Também com a proposta de ser um produto de baixo custo para a população, a química Júlia Pereira Postigo criou uma plataforma para detecção de cinomose em cães. O estudo foi desenvolvido no Instituto de Química São Carlos, da Universidade de São Paulo (USP) e contou com apoio da Capes, por meio de bolsa.
O dispositivo é feito de papel e funciona independentemente do estágio da doença, através da interação entre os anticorpos presentes no sangue do animal e as proteínas depositadas na plataforma. A detecção da doença é acusada a olho nu por meio de linhas vermelhas.
O papel utilizado foi quimicamente ativado para se modificar, com o aparecimento de linhas vermelhas. Quando o anticorpo produzido pelo animal, para combater o vírus, entra em contato com a linha teste, resultará na formação de um sinal vermelho, indicando que o animal está doente, podendo ser iniciado o tratamento, mesmo sem apresentar seus sintomas característicos. Além de promover o diagnóstico precoce, o dispositivo tem custo menor que similares importados e fornece o resultado em poucos minutos.
“A cinomose é a segunda doença que mais mata cães em todo o mundo, perdendo apenas para a raiva. Seus sintomas iniciais são comuns a outras doenças do sistema nervoso, o que dificulta muito o diagnóstico clínico. Quando seus sintomas característicos aparecem, a chance de cura diminui consideravelmente, visto que o animal já está muito debilitado para responder ao tratamento”, explica Julia.
Somada a concessão da bolsa, a pesquisa teve uma empresa privada como parceira, que recebeu financiamento da Fapesp para produção do papel químico. Júlia frisa a necessidade de destinação de verbas para estudos no âmbito das instituições públicas de ensino superior para descobertas científicas semelhantes.
“Esse trabalho mostra o quão importante é o financiamento do governo à pesquisa. No Brasil, a pesquisa de ponta, dentro das universidades é feita pelos alunos de mestrado, doutorado e pesquisadores pós-doutorandos que, por meio das bolsas, conseguem se sustentar e se dedicar com exclusividade ao trabalho, objetivando o crescimento e desenvolvimento do país”, avalia.
Telefone para quem não tem
Um estudo, fruto de dissertação de mestrado na Universidade Federal do Pará (UFPA), encontrou alternativas para levar telefonia celular para comunidades isoladas da Amazônia utilizando equipamentos de baixo custo.
A pesquisa de autoria de Jeferson Breno Negrão Leite, chegou a vencer a edição de 2016 do Prêmio Vale-Capes de Ciência e Tecnologia, na categoria Tecnologias Socioambientais, com ênfase no combate à pobreza.
De acordo com Leite, a maior dificuldade para as operadoras de telefonia alcançarem comunidades isoladas em meio a floresta é o custo. A proposta da pesquisa é que a própria comunidade tenha sua operadora, sendo gerenciada pelos moradores do local.
Os equipamentos utilizados fariam chamadas por meio da tecnologia VOIP e funcionariam tanto em telefones GSM comuns como em smartphones. Há ainda a possibilidade de as operadoras usarem equipamentos mais baratos para estender a própria rede a lugares em que ela ainda não chega.
"Percebemos que as pessoas não conseguiam fazer uma ligação para pedir socorro por causa do seu isolamento. Nós, da cidade, nos comunicamos muito fácil, e essas pessoas vivem isoladas, excluídas digitalmente. A partir dessa percepção, surgiu a ideia do projeto. E o vejo como um retorno social da universidade para as comunidades: o conhecimento que adquirimos sendo aplicado na vida das pessoas que mais precisam", avalia o pesquisador.