Relatório da ong D³e tenta convencer senadores a rejeitar a proposta que regulamenta o homeschooling| Foto: Pixabay
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Um novo relatório de uma ong bancada por algumas das maiores empresas do país tenta convencer os senadores a rejeitar a proposta que regulamenta o homeschooling – e usa argumentos infundados para isto.

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O material foi elaborado pelo D³e (Dados para um Debate Democrático na Educação) e divulgado na quinta-feira (8). Embora seja relativamente pouco conhecida e se apresente como uma entidade jovem, fundada em 2020, o D³e tem como financiadores instituições com um longo histórico de promoção de causas progressistas na educação: a Fundação Lemann, o Itaú, a Natura e o Unibanco – que também estão entre os financiadores da influente ong Todos pela Educação. O Todos pela Educação, por sua vez, tem atuado de forma intensa contra a regulamentação do homeschooling. São duas entidades distintas, mas com as mesmas bandeiras e, em grande medida, os mesmos financiadores.

O documento de dez páginas é assinado por Romualdo Portela de Oliveira, professor aposentado da USP, e Luciane Muniz Barbosa, professora da Unicamp. O objetivo é influenciar a decisão do Senado, onde tramita o projeto de lei 3179/2012. A proposta foi aprovada pela Câmara dos Deputados em maio, e agora aguarda a apreciação dos senadores. Se entrar em vigor, o projeto vai estabelecer critérios claros para que as crianças possam ser educadas em casa. Dentre outras coisas, o texto exige que o aluno esteja matriculado no sistema de ensino (em escola pública ou privada). Atualmente, existe um limbo legal sobre o tema, e o Supremo Tribunal Federal decidiu que o homeschooling não é um direito atualmente protegido por lei.

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O relatório do D³e afirma que, como o direito à educação é um direito da criança, o assunto é primariamente da alçada do Estado e não da família. “A opção pela educação domiciliar pressupõe, equivocadamente, que o direito à educação pertence aos pais ou adultos responsáveis pela criança, desconhecendo que o sujeito do direito à educação é a criança. No Brasil, é exatamente esse entendimento que permite ao Estado sobrepor-se aos pais para garantir o direito da criança à Escola”, argumentam os autores.

O documento também afirma que o ensino doméstico não é um direito humano, prejudica a busca pela equidade social e reduz os recursos para a educação pública. “Antes de pensar em desescolarizar, é necessário realizar o projeto da modernidade, da era dos direitos humanos, encampado por nossa Constituição Federal, de garantir escola de qualidade para todos”, afirma o texto, sem explicar a relação entre uma coisa e outra.

O material ignora as pesquisas demonstrando que crianças educadas por meio do ensino doméstico têm um melhor desempenho acadêmico. Os autores dizem apenas que esses estudos têm problemas metodológicos, sem dizer quais. O estudo também apresenta uma caricatura das famílias educadoras. “Nessa perspectiva é que se pode compreender a opção pelo homeschooling por parte de alguns grupos que querem se isolar do convívio social, seja para preservar opções extremas, caso dos fundamentalistas religiosos; seja por mecanismos de exclusão velada, como se pode avaliar diante do crescimento de afro-americanos que optam pelo homeschooling para evitar processos de discriminação”, afirma o material.

No documento, o homeschooling também é culpado por trazer “retrocessos à carreira e à profissionalização docente”, já que “precariza as condições de trabalho dos professores.”

Escrito por doutores e com referências a livros e estudos acadêmicos, o relatório do D³e tenta dar a impressão de que há um consenso contra o homeschooling. Para isto, faz um recorte seletivo dos estudos acadêmicos sobre o tema. Uma das referências usadas é o autor Milton Gaither e seu livro "Homeschool: an American History". Anamaria Camargo, mestre em Educação e presidente da organização Livre pra Escolher, explica que o relatório do D³e cita Gaither de forma errada para argumentar que o homeschooling é uma pauta de religiosos fundamentalistas. “No seu livro, Gaither menciona explicitamente dois lados dentre os que impulsionaram a volta do homeshcooling nos Estados Unidos: a direita conservadora e a esquerda”, explica Anamaria, que fez o seu mestrado na Universidade de Hull, na Inglaterra, e acompanha de perto a literatura acadêmica sobre o tema.

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Anamaria também critica o argumento, citado no relatório, de que o homeschooling facilita o abandono intelectual. “Não há evidências que sustentem a ideia de que famílias homeschoolers não provejam educação a seus. Ao contrário: as evidências vão na direção oposta”, afirma.

Outro argumento falacioso, ela acrescenta, é o de que exista alguma correlação entre a legalização do homeschooling e o enfraquecimento das escolas públicas. “Não há um registro ou estudo científico que mostre que a prática do homeschooling enfraquece as escolas públicas, nem que a sua proibição colabora com o fortalecimento das escolas públicas”, ela diz.

Para Carlos Xavier, advogado público e mestre em Direito, o relatório do D³e é enganoso. Xavier, que é coautor de um livro sobre o ensino domiciliar, diz que a premissa da nota técnica já é infundada ao tratar o homeschooling como uma política pública para a educação brasileira. “Educação domiciliar não é uma política pública. Uma política pública pressupõe previsão legislativa e aparelhamento do Estado para a disponibilização de prestações materiais positivas como construção de escolas, contratação de professores e disponibilização de matrículas”, ele explica.

Xavier também alerta para o argumento de que o Estado tem a primazia sobre as crianças. “Afirmar a precedência da comunidade política sobre os pais é pôr em curso um processo de desumanização dos indivíduos e da sociedade permeado pelo rompimento cada vez maior dos laços mais importantes para o desenvolvimento moral e intelectual da criança e do adolescente”, afirma ele. Para Xavier, a autoridade dos pais sobre os filhos claramente antecede o Estado – ela existiria mesmo que não existisse qualquer forma de governo. Por isto, Xavier argumenta que a educação é um “direito negativo”. Ou seja: as famílias têm o direito de educarem seus filhos sem serem impedidas pelo Estado. O projeto de lei que regulamenta o homeschooling tramita atualmente na Comissão de Educação do Senado.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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