“Não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira”, é o que afirma a Tese 822 do repositório de repercussão geral do Supremo Tribunal Federal, fixada no julgamento do Recurso Extraordinário 888.815.
Diante do resultado do julgamento, apresentam-se três perguntas: (1) O que é um “direito público subjetivo”? (2) A educação domiciliar é proibida no Brasil? (3) É necessária uma lei sobre a educação domiciliar no Brasil? A resposta a essas perguntas é fundamental para que se possa dimensionar corretamente o status jurídico da educação domiciliar no país e, consequentemente, avaliar-se o debate político em torno do tema, especialmente no âmbito legislativo.
A melhor forma de responder à primeira pergunta (O que é um “direito público subjetivo”?) é considerar cada um dos adjetivos apostos a “direito” – “público” e “subjetivo” – individualmente.
Começando pelo segundo, direito “subjetivo” é um direito atribuído a uma pessoa, que se chama titular do direito, ou sujeito ativo. No tema em discussão, o titular desse direito subjetivo, o sujeito ativo, seria “o aluno” ou “sua família”. Do outro lado desta relação de direito subjetivo, na qualidade de sujeito passivo, estaria o Estado como aquele com algum tipo de obrigação a desempenhar.
No entanto, essa estrutura (sujeito ativo – sujeito passivo; direito – dever) é uma estrutura própria a qualquer tipo de direito subjetivo (quer dizer, público ou privado). Por isso, imprescindível para a correta compreensão da decisão do Supremo parece ser mesmo o adjetivo “público”.
Direito “público” é um direito que envolve o Estado. Quando se pensa num direito “público” subjetivo, pensa-se em termos de que obrigações podem ser especificamente exigidas do Estado.
Um exemplo, ligado à própria educação, pode ajudar a compreender o ponto (e talvez precisamente aqui esteja a origem de todo o problema argumentativo percebido no julgamento). A educação escolar como um direito público subjetivo exige que o Estado se estruture para disponibilizar à população (na verdade, a todo e qualquer titular deste direito) uma série de prestações materiais. Construir escolas e contratar professores são as necessidades mais evidentes de um universo vasto e complexo que envolve o aparelhamento do Estado para atender ao direito público subjetivo à educação escolar.
Toda essa atividade pressupõe o dispêndio de recursos públicos e a estruturação de um serviço público. Para tudo isso, num regime republicano de Direito Constitucional, a lei é imprescindível.
E essa linha de raciocínio demonstra que é necessário acrescentar um terceiro adjetivo, “positivo”, a “direito público subjetivo”, donde se tem um “direito público subjetivo positivo”. E há nesta expressão “positivo” uma ambiguidade que, aqui, é intencional.
Primeiramente, trata-se de “direito positivo” porque é o direito de exigir “prestações materiais positivas” do Estado: exige-se do Estado uma série de obrigações de fazer (construir escolas, contratar professores, disponibilizar vagas para matrículas) para que o direito seja atendido.
Mas o direito público à educação escolar é também “positivo” noutro sentido, porque toda essa estruturação estatal depende de lei. Na linguagem jurídica, fala-se na “positivação” destes direitos – “positivação” significando, aqui, previsão expressa em lei escrita, “lei positiva”.
Assim, o direito à educação escolar é corretamente compreendido como um “direito público subjetivo (positivo)”. Mas seria o caso de pensar-se a educação domiciliar da mesma forma? Noutras palavras, faz algum sentido falar na educação domiciliar como um “direito público subjetivo (positivo)”?
Na verdade, pela própria natureza da atividade, não faz qualquer sentido pensar na educação domiciliar como um “direito público subjetivo (positivo)”. O resultado disso é que, ao investigar a ordem jurídica brasileira em busca de um suposto “direito público subjetivo (positivo)” à educação domiciliar, o Supremo Tribunal Federal simplesmente não o encontrou. E, no atual estado de coisas, nem poderia mesmo ter encontrado.
Não poderia ter encontrado porque, de fato, não existe lei positiva sobre a educação domiciliar no Brasil. Consequentemente (e nisto o Supremo parece ter efetivamente acertado), as famílias educadoras brasileiras não têm a possibilidade de exigir prestações materiais do Estado (e neste ponto convém relembrar que a certificação do ensino fundamental e do ensino médio é direito reconhecido pelo art. 38 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação a todas as pessoas que atingem as idades nele previstas, não sendo um direito exclusivo de estudantes oriundos da educação domiciliar, ainda que dele se beneficiem). Nesse sentido, parece ser mesmo acertado falar na ausência de “direito público subjetivo (positivo)” à educação domiciliar no Brasil.
Mas essa constatação introduz a próxima pergunta: A educação domiciliar é proibida no Brasil?
Não! Apesar da inexistência de lei (e, portanto, da inexistência, nas palavras do Supremo, de “direito público subjetivo”), a educação domiciliar não é proibida no Brasil. Imaginar que a educação domiciliar é proibida no Brasil é imaginar que a ordem jurídica brasileira seja manifestamente injusta (por contrariar um direito natural) e, ainda, que acoberte uma grave violação de direitos humanos (pois o sistema internacional reconhece a primazia educacional dos pais).
A compreensão da educação domiciliar a partir da lei natural e do sistema internacional de proteção de direitos humanos foi realizada em dois ensaios recentemente já publicados por aqui e, por isso, os argumentos não precisam ser repetidos neste momento. Mas o importante – para que se possam contrapor adequadamente as ideias, inclusive por meio de um evocativo jogo de palavras – é relembrar que a educação domiciliar é um direito natural e humano negativo, um direito que não admite a ingerência indevida da comunidade política.
A necessidade de mera abstenção do Estado é muito diferente da exigência de prestações materiais da parte do Estado (e esta é, perceba-se, a própria base da distinção entre direitos negativos e direitos positivos). Assim, se, por um lado, as famílias educadoras brasileiras não podem, na ausência de lei, exigir qualquer prestação material específica do Estado, por outro, os pais brasileiros – por lei ou por sua falta; por decisão do Supremo ou de qualquer juiz ou tribunal – simplesmente também não podem ser proibidos de educar seus filhos em casa, sob pena do cometimento de uma séria injustiça e de uma grave violação de direitos humanos.
Logo, ainda que a educação domiciliar não seja um direito público subjetivo no Brasil, ela sempre será um direito natural e humano negativo.
Diante dessa linha de raciocínio, a terceira pergunta parece mesmo inevitável: É necessária uma lei sobre a educação domiciliar no Brasil?
Ora, se a educação domiciliar é um direito humano e natural negativo, a conclusão lógica é que nem mesmo seria necessária uma lei sobre o tema. Ou seja, o direito de opção dos pais pela educação domiciliar, mesmo na falta de lei positiva (e, consequentemente, na falta de um “direito público subjetivo”), continuará sendo um direito legítimo à luz da lei natural e do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
No atual cenário, portanto, só faz sentido pensar numa lei positiva sobre a educação domiciliar se o objetivo for remover a presente situação de insegurança jurídica que, exatamente em razão da falta de previsão legislativa, ainda permeia a prática, reconhecendo-se de forma expressa esse direito das famílias educadoras (hoje numa situação de informalidade à luz da lei positiva, ainda que respaldadas pela lei natural e pelo sistema internacional). Assim, até mesmo uma sutileza semântica é verificada: o objetivo da lei deve ser “reconhecer” o direito natural e humano à educação domiciliar, e não “regulamentá-lo”, estabelecendo restrições incompatíveis com a natureza negativa desse direito.
Nesse sentido, é importante reforçar que a adesão das famílias educadoras à formalidade será inversamente proporcional a quão restritiva for qualquer lei aprovada sobre o assunto. Se, por um lado, a ausência de lei é uma situação indesejada do ponto de vista da segurança jurídica, por outro, uma lei restritiva, incompatível com o caráter negativo do direito à educação domiciliar, tem boas chances de se tornar uma lei sem qualquer eficácia.
Em suma, ainda que, segundo o Supremo Tribunal Federal, a educação domiciliar não constitua um “direito público subjetivo” no Brasil, ela permanecerá sendo, independentemente do que diga – ou não diga – a lei positiva, um direito natural e humano negativo.
Não existe educação onde não há liberdade!
* Carlos Eduardo Rangel Xavier: Mestre em Direito, Advogado Público, membro da Associação Nacional de Educação Domiciliar e autor do livro “Educação Domiciliar, um Direito Humano Negativo: Uma abordagem a partir da lei natural” .
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