A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de negar a possibilidade da educação domiciliar, conhecida como homeschooling, fechou mais uma porta para as cerca de 7,5 mil famílias que adotam a prática no Brasil. Agora só resta um caminho: conseguir a aprovação no Congresso de uma lei que regulamente o ensino em casa. E essa é uma tarefa bastante difícil.
Enquanto isso, de acordo com a decisão do STF do último dia 12 de setembro, as crianças devem ser matriculadas em escolas. Além da Constituição, o homeschooling, que encontra amparo legal em mais de 60 países, esbarra também no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Código Penal. Este último, aliás, prevê punição aos pais adeptos do ensino domiciliar por abandono intelectual, sob pena de multa ou detenção – que pode variar de 15 dias a um mês.
No mundo, a Associação de Defesa Legal da Escola Doméstica (HSDLA, na sigla em inglês) estima que nos Estados Unidos, onde o movimento existe há mais de 40 anos mais de 2 milhões de alunos em idade escolar sejam educados em casa. Já na América Latina, países como México, Argentina e Uruguai se destacam pela interpretação de leis que tornam equivalente o poder da família e o do Estado sobre a educação.
Apesar de fazer ressalvas ao modelo, a doutora em Educação Luciane Muniz Ribeiro Barbosa, da Unicamp, explica que está em jogo o dilema entre a liberdade privada e a intervenção estatal. “É um direito dessas famílias. Não há mais espaço para discussões contra ou a favor do homeschooling. O que interessa agora é que essa é uma realidade e que precisa de regulamentação”, afirmou em entrevista à Gazeta do Povo.
No Brasil, o ensino domiciliar remonta aos tempos do Império, quando era visto como um diferencial. O cenário mudou efetivamente com a Constituição de 1988, que estabeleceu o provimento da educação como um dever do poder público.
Abertura jurídica
Em 2009, a PEC 444/2009, proposta pelo então deputado federal Wilson Picler (PDT-PR), pedia a regulamentação do ensino domiciliar. Segundo o texto, caberia ao Estado apenas a realização de avaliações periódicas para assegurar a aprendizagem. Após idas e vindas pelas mesas e comissões da Câmara, a proposta acabou arquivada em 2015.
Em 2014, a PEC ainda tramitava quando o caso de uma família de Canela (RS) tornou-se emblemático no país. A mais velha dos quatro filhos de um casal virou protagonista da luta pela regulamentação do homeschooling no Brasil. Isso porque seus pais foram denunciados ao Conselho Tutelar e ao Ministério Público. Como consequência, receberam uma ordem do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS) para matricular a menina, então com 13 anos, em uma escola regular.
A família recorreu da decisão até a última instância. Em 2015, o caso chegou às mãos de Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). O Recurso Extraordinário (RE) 888.815 trazia um apelo da família: “Restringir o significado da palavra ‘educar’ simplesmente à instrução formal numa instituição convencional de ensino é não apenas ignorar as variadas formas de ensino agora acrescidas de mais recursos com a tecnologia como afrontar um considerável número de garantias constitucionais”. Para os pais, o Estado precisa repensar a educação no Brasil e, mais do que isso, ser justo com quem procura alternativas diante das carências do modelo convencional.
Ao admitir o recurso, Barroso tornou-se relator do parecer e instaurou um debate no STF quanto aos limites do Estado sobre a autonomia privada. “A Constituição determina que a educação é dever conjunto do Estado e da família, cabendo a ela as decisões referentes às práticas pedagógicas e morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas”, sentenciou.
A partir daí, a Aned moveu uma das principais ações envolvendo o ensino domiciliar no país. A partir do recurso da família de Canela, a Aned ingressou com uma petição para a suspensão dos processos judiciais contra pais adeptos ao modelo. Mais uma vez, Barroso mostrou-se favorável e o STF concedeu o sobrestamento dos processos sobre o tema. Logo, decisões de instâncias inferiores não podem prosseguir até que o STF decida o entendimento da legalidade do ensino domiciliar. Nesse meio tempo, antes da decisão do STF, o homeschooling atraiu mais interessados. O número de famílias adeptas, que era estimado em 3,2 mil em 2014, saltou para 7,3 mil em 2016, segundo a ANED.
Cenário ideal
As principais justificativas das famílias para que seus filhos não frequentem a escola estão relacionadas a temas como bullying, falta de infraestrutura e má qualidade do ensino. Em 2015, um estudo do Movimento Todos Pela Educação apontava que menos de 5% das escolas públicas brasileiras tinham “amplas condições estruturais”.
As deficiências no ensino básico também chamam atenção em um ranking de 2017 apresentado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), no qual o país ocupa a penúltima posição entre 36 nações monitoradas. Já no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) de 2015, que analisa o desempenho de 70 países, o Brasil está em 59ª no ranking de Leitura, 63º no de Ciências e 65º no de Matemática.
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Luciane Barbosa, da Unicamp, reconhece que a falta de insumos nas escolas pesa contra o bom rendimento dos alunos. “De modo geral, em casa e com acesso à informação, as crianças têm melhor aproveitamento do que na escola, em meio a tantos ruídos.” Além disso, os praticantes do ensino domiciliar entendem haver intervenção do Estado em valores religiosos e políticos das famílias. Por outro lado, a principal crítica ao homeschooling é de que a diversidade deve ser aprendida na prática, e que a alienação da sociabilidade compromete o processo civilizatório.
Em 2012, o deputado federal Lincoln Portela (PRB-MG) apresentou um projeto de lei que transforma o ensino em casa em uma alternativa à evasão no ensino. “A evasão escolar é muito grande e nenhuma providência efetiva é tomada. Por isso, tem pais optando pelo ensino em casa, e os resultados são os melhores possíveis”, afirma.
Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) dão conta da preocupação: a evasão voltou a subir depois de seis anos de queda. Em 2014 e 2015, 12,9% e 12,7% dos alunos da 1ª e 2ª séries do ensino médio, respectivamente, saíram da escola. Já no fundamental, cabe ao 9º ano a terceira maior taxa de evasão, de 7,7%.
Apesar de defender a liberdade de escolha, Portela reconhece a responsabilidade do poder público em monitorar a situação das famílias. “Entendo que esses alunos devam passar por algum tipo de avaliação periódica em escola pública, próxima de sua casa, sem ônus para a família nem para os governos”, comenta.
Além disso, o parlamentar defende que os estudantes sejam submetidos a testes psicológicos regularmente. Conforme o PL, os pais ficariam responsáveis por prestar contas sobre a grade curricular e base pedagógica utilizada.
Frederico Junkert , advogado de famílias homeschoolers, concorda com o deputado e acrescenta que já há casos em que os promotores de justiça, enquanto aguardam a decisão do STF, indicam ainda o acompanhamento regular de um assistente social.
Medidas assim são vistas com bons olhos por Luciane Barbosa. “Para que a legislação seja justa, precisa ir além do conteúdo ou das avaliações”, afirma. Para a especialista, é preciso pensar nas garantias de direito da criança, já que a escola aciona uma rede de proteção que não existe exclusivamente dentro de casa. “Não tem matricula sem vacina, por exemplo. Na sala de aula também é possível monitorar suspeitas de maus tratos, trabalho infantil e abusos. Quando a criança não está na escola, quem vai acionar essa rede?”, questiona.
A fiscalização, no entanto, divide opiniões de adeptos do ensino domiciliar. “O ideal seria que nos deixassem em paz, sem avaliações ou testes”, afirma Ricardo Dias, presidente da Aned.
Para o presidente da Aned, além de reconhecer a legalidade do ensino em casa, seria necessário assegurar as mesmas condições de estudantes regulares. Outra exigência seria abolir a necessidade de comprovação de escolaridade no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – usado como artifício para obter o certificado de conclusão do ensino médio – ou em qualquer outro requerimento.
Pai de quatro filhos em ensino domiciliar, Gustavo Abadie concorda em manter a intervenção do Estado longe do cotidiano das famílias, mas compreende a necessidade de avaliações de desempenho.
“Acredito que exames anuais sejam suficientes. Mais do que isso atrapalharia as famílias”, diz. Abadie e a esposa, Camila, mantêm o blog Encontrando Alegria, referência para famílias que buscam compreender o contexto do ensino domiciliar no Brasil. Também moradora de Canela, a família Abadie compartilha na página o dia a dia das atividades educativas de seus filhos e a experiência com homeschooling.
O que falta para regularizar
Há outro projeto que tramita na Câmara Federal no mesmo sentido. É o PL 3261/2015, do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP). Além de autorizar o ensino domiciliar, a proposta prevê alteração na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o ECA – considerados entraves para a regulamentação. O PL de Bolsonaro foi anexado ao projeto de Portela e ambos aguardam quórum na Comissão de Educação da Casa para dar andamento ao debate.
Na visão de Dias, da Aned, a resistência em Brasília acontece em função do preconceito e da desinformação. Segundo ele, é difícil romper o paradigma cultural de que “lugar de criança é na escola”. “O MEC parece ser o ministério das escolas, e não da educação”, salienta.
Dias conta que desde a saída do ministro Mendonça Filho do governo, em abril – e que era favorável à legalização do modelo –, não tem conseguido manter diálogo com a pasta. Mesmo assim, está otimista. “De um a dez, estamos no nível seis, liderando um movimento consolidado e irreversível”, comenta.
Procurado para falar sobre a regulamentação, o diretor de Currículos e Educação Integral do MEC, Raph Gomes Alves, não respondeu às ligações e aos e-mails da reportagem. Em fevereiro, Alves havia sinalizado apoio ao movimento em um evento da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A Coordenação-Geral de Educação Ambiental e Temas Transversais da Educação Básica do MEC, que trata das revisões pedagógicas nos níveis e modalidades da educação, também não retornou às solicitações de entrevista.
Para Abadie, pai de quatro filhos homeschoolers, a maturidade do ensino domiciliar ainda está por vir. “Nos Estados Unidos, o modelo é legalizado em vários estados, mas ainda há discussões sobre o assunto 40 anos depois. No Brasil, temos que encarar essa temporalidade. Se lá levou todo esse tempo para se consolidar e ainda há problemas judiciais, temos de ter cautela.”