Da China aos Estados Unidos, a crise do coronavírus e a necessidade de isolamento social forçaram instituições de ensino do mundo todo a migrar para o ensino remoto. Mas a Covid-19 pegou a educação brasileira de surpresa quanto ao uso de ferramentas tecnológicas.
Enquanto a comunidade internacional demonstrou dinâmica na adaptação, o sistema de educação pública do Brasil revelou despreparo e pouca familiaridade com o ensino online.
Na última quarta-feira (19), o ministro da educação, Abraham Weintraub, informou que uma plataforma de salas virtuais, de adesão voluntária, já estava disponível para toda a rede federal de ensino do país. São pelo menos 20 salas das quais até 75 alunos podem participar, e as instituições que optarem pela substituição devem entrar em contato com o MEC.
Segundo ele, docentes do ensino superior preparados facilmente conseguirão migrar para o sistema online com a ferramenta disponibilizada pelo governo. "Se o professor não dá aula no dia a dia, não vai dar aula remota. Isso vai tornar visível a quantidade de professores que utilizam material, se preparam e aqueles que fazem tudo no improviso", disse.
Adaptação vagarosa
Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Claudia Costin afirma, porém, que a adaptação ao modelo proposto pelo MEC e a outras plataformas de ensino online deve ser vagarosa. "Nós não estávamos preparados para essa hipótese, em todos os sentidos", lamenta.
A dificuldade, em todos os níveis, também é observada por Waldomiro Loyolla, presidente do Conselho Científico da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed). Segundo ele, embora nos últimos 20 anos muitos tenham se debruçado em estudar e investir na educação online, pouco se fez no ensino público, sobretudo na educação básica, nesse sentido.
"A educação pública como um todo não está conseguindo lidar com isso porque o planejamento ainda não é moderno. As associações de professores, grupos, sindicatos sempre tiveram restrição muito grande em relação ao uso da internet", explica. "Eles dirão que o governo não dá condições - o que, em parte, é verdade. Mas a verdade é que pouquíssimas escolas públicas têm visão da importância da tecnologia".
O especialista ainda explica que, de uma hora para outra, tentar resolver a situação e migrar para o ensino online sem preparo não renderá bons resultados. "Vamos penar, não há dúvida. As crianças vão perder muita coisa. Não basta colocar um arquivo na internet", diz.
"Fazer educação híbrida demanda planejamento, e isso demanda trabalho e esforço. Trabalhar e pensar dói, tem muita gente que quer continuar como sempre fez. Há professores, da educação básica a superior, que estão na zona de conforto, que vão repetir o que fazem há 20 anos", afirma Loyolla.
Professor e coordenador da rede Conectando Saberes no município de Cascavel, no Paraná, Jocemar do Nascimento concorda que, para além do acesso à internet e suas ferramentas, a educação pública, de forma geral, parece ainda não entender a necessidade dessas tecnologias no ensino. "Praticamente todas as escolas têm algum tipo de conectividade à tecnologia, à internet. O principal gargalo, ainda, é a visão de uso e a preparação do professor para utilizar isso", afirma.
Há quatro anos, o diagnóstico de uma pesquisa do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic) já revelava que a maioria das escolas possuía laboratórios de informática com acesso à internet.
Apenas o estado do Paraná, no último ano, teria perdido milhões de reais disponibilizados pelo programa do governo federal Educação Conectada, para investimento em ferramentas tecnológicas. "O dinheiro foi disponibilizado pelo governo federal, direto na conta da escola, e não foi utilizado. E, detalhe, o Paraná não foi o que perdeu mais. Então não é falta de investimento, é questão de visão de prioridade e, na rede pública, não há esse entendimento da importância da tecnologia", diz Nascimento.
Educação básica e professores
Até o momento, não há, por parte do governo, nenhuma diretriz federal quanto a como deve proceder a educação básica durante o período de isolamento social. O MEC apenas informou que iria reforçar conteúdos da Secretaria de Alfabetização (Sealf) que podem ser utilizados por pais em casa - o que contemplaria apenas os anos iniciais da educação infantil, e não alunos do ensino fundamental e médio.
Embora algumas regiões tenham conseguido, prontamente, agir para não prejudicar a aprendizagem dos estudantes e adaptaram seus modelos de ensino, outros municípios e estados adotaram medidas como a suspensão total de atividades e adiantamento de férias.
Para Claudia, isso revela despreparo e falta de familiaridade da educação básica com tecnologias para atender a uma necessidade especifica do contexto; neste caso, a do ensino online. "Na educação básica, por exemplo, como faz menos sentido no dia a dia ter educação a distância, nós não olhamos para o ensino híbrido da maneira como deveríamos", diz ela.
Trabalhando por 11 anos com formação de professores, Nascimento, da rede Conectando Saberes, notou que os professores têm dificuldade de aliar o uso de internet à didática. Em determinado episódio com cerca de 4 mil docentes, observou que apenas 10% usavam ferramentas tecnológicas em suas aulas.
"E essa é uma análise bem otimista, para ser sincero. Em um trabalho recente com turmas de pedagogia, notei que alunos do último ano tinham dificuldade de utilizar o e-mail. E não são pessoas mais velhas, não é questão de idade", afirma. "O professor ainda não conseguiu absorver que é importante usar tecnologia no ensino, ele ainda dá mais importância a usar o lápis, o caderno, ler um livro físico - e não que tudo isso não seja importante".
"No espaço escolar, apesar de questões específicas de infraestrutura, de uma maneira geral, já temos acesso à tecnologia", reconhece Sirley Terezinha Golemba, supervisora pedagógica do sistema de ensino Aprende Brasil. "Na escola, mesmo que com poucos equipamentos, o aluno tem acesso à internet no dia a dia".
Para ela, a dificuldade maior do momento não é apenas da escola, mas diz respeito à estrutura e "boa vontade" das famílias de alunos da educação básica para propiciar momentos de ensino aos estudantes. No Paraná, segundo Sirley, professores estão fazendo roteiros e pequenas vídeoaulas que poderão ser viabilizadas pelas redes sociais. "Houve uma preocupação muito grande por parte dos gestores, para que a criança tivesse acesso a algo educacional, para que ela não perdesse o vínculo com a escola nesse período", explica.
"Mas ninguém estava preparado para isso, nem escolas privadas, nem o Brasil como um todo. Tivemos de nos organizar nesse sentido pela primeira vez em muito pouco tempo", diz. Segundo os especialistas, é necessária uma adesão gradativa ao uso de tecnologias, no sentido de construir práticas para o uso dessas ferramentas.
Educação superior
Na educação superior o cenário não é tão diferente. A dificuldade de acesso à tecnologia não é fator determinante. Procuradas, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, afirmaram, na última sexta-feira (20), que não iriam aderir à plataforma online proposta pelo MEC.
"Isso que acontece é uma discussão teórico-ideológica daqueles que são contra a educação remota, e impede que as decisões sejam tomadas no tempo em que precisam ser tomadas", defende Nascimento. "A prioridade é o aluno, ele não pode ser prejudicado no processo, e não deveríamos somente agradar ao perfil profissional do professor. Essa ferramenta do MEC não é nova, existe há um bom tempo e os professores, inclusive, já poderiam estar utilizando".
A resistência ao uso de tecnologias, como a internet, mostra-se ainda maior nos cursos de formação de professores, de acordo com ele. "Frequento eventos de tecnologia há muito tempo e, raramente, encontro profissionais de educação. As outras áreas têm muito mais familiaridade, se atualizam quanto aos recursos tecnológicos", diz o coordenador da rede Conectando Saberes no município de Cascavel.
"Quem está na zona de conforto, fica incomodado. É questão de cultura, e isso não se muda em pouco tempo, leva anos. Precisa ter política pública que exista acima dos mandatos, dos governos, nesse sentido", defende Loyolla, da ABED.
Enquanto isso, muitos alunos das instituições de ensino superior continuam sem contato com atividades acadêmicas. "Pode ser que um momento de crise como esse desperte a consciência de alguns políticos para tentar caminhar para isso. Devemos aproveitar esse momento de crise para planejar", conclui.
Maria Alice Carraturi, diretora de conteúdo da Bett Educar, ex-presidente da Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e ex-diretora de Formação de Profissionais da Educação Básica do MEC, por outro lado, afirma que a rede federal é capaz de oferecer suporte aos alunos por meio de plataformas online.
"A rede federal é bastante consistente no sentido de conseguir dar suporte para esses alunos", diz. "Muitas universidades, como a federal do Ceará, de Pernambuco, são ícones de desenvolvimento de tecnologia para ensino superior e educação digital. Há várias universidades que estão bastante preparadas para esse momento".
No entanto, a especialista reconhece que muitos cursos não estão familiarizados com o ensino online e, provavelmente, vão carecer de preparo e conteúdos. "Mas, de novo, isso não foi planejado, e teremos de planejar imediatamente, para que essas plataformas de educação a distância possam atingir todos os cursos, inclusive os que não eram previstos nessa modalidade. Esse é o grande desafio das universidades federais", afirma.
Exemplos brasileiros
Mas o Brasil pode, neste momento, aprender com regiões que adotaram o modelo online como escape em meio a percalços.
O estado do Amazonas, por exemplo, tem uma das práticas mais notáveis do mundo para garantir a educação aos povos ribeirinhos. O Brookings Institution, de Washington, classificou o modelo como uma das 14 melhores ações mundiais de ensino.
Para poupar jovens e adolescentes de terem de viajar de barco por 3 dias para chegar até o aldeamento mais próximo em houvesse alguma classe de ensino, foi criado o Centro de Mídias de Educação do Amazonas. Esse centro irradia por satélite aulas dadas por professores da rede estadual para as comunidades ribeirinhas.
"Esse exemplo, agora, se mostra com um potencial incrível", afirma Claudia. "Que tal dar uma olhada agora para eles e trazer esse aprendizado para outras redes públicas?".
No Rio de Janeiro, além disso, há uma experiência exitosa, a Educopédia. "Criamos uma plataforma de aulas digitais que pudessem ser feitas pelos próprios professores e qualquer aluno com computador ou smartphone pudesse acessar", explica a especialista. "Talvez seja mais fácil adotar o que já temos no Brasil do que olhar para o que o mundo faz".
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