Durante a infância, Mao adorava correr pelos campos de arroz do vilarejo de Thâo Hong Dên, na região de Sa Pa, no norte do Vietnã: ela queria conversar com as pessoas de outras tribos e de outros países que conhecia em suas longas caminhadas, embora a família cobrasse foco em seu trabalho no campo.
Hoje, prestes a completar 41 anos, Mao conseguiu driblar o destino que lhe parecia imposto e é uma das mulheres mais bem sucedidas da aldeia: tem mais de 12 lotes de campos de arroz, fala fluentemente cinco idiomas (vietnamita, inglês, francês, espanhol e o dialeto de sua tribo, hmong-mien), emprega 24 funcionárias, tem duas medalhas dadas pelo governo e 27 certificados pendurados na parede de sua casa. Com um detalhe: não sabe escrever uma letra sequer.
Origens
Mao (este é seu nome completo) trabalha há 25 anos como guia turística e deve suas conquistas graças à fluência em inglês. Ela foi a pioneira em se aproximar de investidores estrangeiros que vislumbraram nos campos de arroz do Vietnã um lucrativo expoente turístico.
‘Propus a eles uma troca: eles tinham dinheiro, eu tinha o conhecimento do terreno. Eles me pagariam para ensinar como funcionava a terra’, conta.
A fluência determinante para fechar negócio ela só adquiriu após dois anos seguindo e observando os estrangeiros. Percebeu que “rice” significava “arroz” e “field” significava “campo”. Após as assimilações, Mao conseguiu formar pequenas frases e praticou conversando com as esposas que acompanhavam os maridos no trabalho.
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Para criar oportunidades para sua família, amigos e vizinhos decidiu juntar um grupo de mulheres e passar o que tinha aprendido de maneira autodidata: hoje, segundo dados do governo vietnamita, cerca de 70% das 8 mil pessoas que habitam a região trabalham diretamente com turismo.
Consequências
Como resposta a essa necessidade, o Ministério da Educação do Vietnã colocou em seu programa o ensino de inglês como obrigatório nos anos primários. A expectativa do governo é de que até 2020 a população atinja um nível entre intermediário e avançado do idioma.
“Nós acreditamos que a educação pode mudar o futuro de uma nação”, diz trecho da nota enviada pelo governo vietnamita à Gazeta do Povo. Não à toa a inclusão do idioma contempla o novo projeto destinado à valorização da educação, onde são destinados ao setor cerca de 18% a 20% da economia bruta do país.
De certa forma pode-se dizer que a proficiência no idioma em regiões tão pobres é resultado de dois fatores: o incentivo governamental, que auxilia economicamente a educação, focando mais na formação de professores e táticas de ensino do que propriamente em infraestrutura (muitas escolas, principalmente rurais, ainda não contam, por exemplo, com energia elétrica). O segundo ponto fundamental é o interesse pessoal dos cidadãos.
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“Como as pessoas não utilizam a escrita em seu dia-a-dia elas consideram tempo perdido esse tipo de formação. Elas querem aprender idiomas na prática, para conseguirem evoluir economicamente”, explica Chai Thi, professora de uma escola rural e responsável por supervisionar os encontros ministrados pelas camponesas para o ensino de inglês.
“Elas ensinam em uma dinâmica própria, que foca mais na conversação do que na gramática. Começam decorando vocabulário e palavras-chaves para depois evoluírem para conversação. Há muitos estrangeiros na região e a prática se torna comum”, continua Chai, em meio a uma sala onde não há quadro-negro, livros ou mesmo energia elétrica.
Possibilidades
A pedagoga Silvia Colello, professora da pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), afirma que é possível que pessoas analfabetas consigam ser fluentes em diversos idiomas, uma vez que uma língua não pode ser reduzida apenas à sua gramática.
“Quando aprendemos um idioma, aprendemos uma cultura. Como a pessoa convive e interage no meio social é o fator determinante. Claro que a alfabetização é uma importante ferramenta, não podemos tirar o mérito dela, mas o perigo é reduzir a aprendizagem de um idioma estritamente a isso”, diz.
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Ela explica ainda que dentro da academia há uma reticência em colocar o meio social à frente da formação tradicional. “Há um mito na educação de que apenas pessoas alfabetizadas conseguem ter uma ‘organização de pensamento’, mas é uma mentira. Claro que a escrita auxilia na emancipação do indivíduo, mas não é determinante. Esse exercício que fazem com o cérebro, de transitar por diversas línguas, não deixa de ser uma forma de emancipação”, pondera.
E se depender do meio social, mais vietnamitas se tornarão fluentes – principalmente no inglês.
“Mais da metade das pessoas em Sa Pa recebem turistas, então acabamos praticando sempre”, explica Mao. “Nossos filhos também acabam aprendendo ouvindo e interagindo”, completa ela, citando a filha So, de 6 anos:
“Ela já pede água em inglês. É o preço que pagamos pela globalização”, brinca a bem humorada Mao.
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