Em épocas de “fake news”, em que teorias da conspiração ganham cada vez mais força e em que nas fileiras escolares crescem os adeptos de teorias como o “terraplanismo” (crença de que o planeta Terra seria, na verdade, plano), somos obrigados como sociedade e encarar uma questão fundamental: o que está acontecendo com nossa Educação científica? Por que nossa sociedade sente-se tão alheia ou desconectada do discurso das Ciências, dos professores e dos especialistas?
Se existem muitos que, por um lado, confundem o conhecimento científico com a verdade, por outro existem aqueles que, justamente por não encontrar esse vínculo direto com o mundo, descartam as Ciências por completo, abrindo espaço para outros tipos de conhecimento - seja ele folclórico, opinativo ou, até mesmo, o mais puro charlatanismo.
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Enfrentamos, não apenas nas Ciências, mas também em todo o terreno da Educação, uma espécie de “crise de legitimidade”. Pergunta-se cada vez mais qual é o direito que educadores e cientistas têm de decretar verdades, recomendar ou desaconselhar comportamentos, apontar fatos ou notícias como sendo “falsas”. Professores e especialistas são continuamente acusados, quando se pronunciam publicamente, de estarem desconectados do “mundo real” - ou, em situações mais extremas, de estarem simplesmente mentindo, taxados como “mal intencionados” ou “doutrinadores”.
Isso se dá, principalmente, porque as Ciências possuem um discurso que constantemente regula e institui juízos de valor, apontando o que deve ou não deve ser levado em consideração.
Sem entender os critérios envolvidos, muitos leigos sentem-se apenas enganados ou diminuídos por essa espécie de “ordem maior” que tanto se confunde, aos olhos do senso comum, com o poder econômico ou político instituídos.
Não são raras as vezes em que as Ciências - e por consequência as disciplinas escolares - soam elitistas, excluindo alunos e a sociedade de seus métodos de descoberta e assim gerando diversos movimentos de recusa e de pseudo-ciência.
Se as Ciências Naturais - aquelas que envolvem os conhecimentos mais matemáticos - ainda sobrevivem apesar da desconfiança do público é porque consistentemente apresentam resultados concretos: prédios continuam sendo erguidos, remédios continuam sendo desenvolvidos, novas tecnologias continuam chegando às mãos dos consumidores.
Questionam-se os fundamentos e as justificativas do discurso científico, mas não os objetos que esse discurso produz. As Ciências Humanas, entretanto (a Filosofia, as Ciências Sociais, a História, as linguagens), fadadas a nunca gerarem resultados materiais diretos, parecem sofrer ainda mais nessa crise de legitimidade das Ciências. São confundidas com a simples opinião, acusadas de serem mero discurso ideológico e, principalmente, de serem “inúteis”, no sentido de que não produzem avanços visíveis nem produtos passíveis de compra e venda. Não geram mercadoria; se inserem apenas aos solavancos em qualquer lógica que as transforme em instrumento prático e, portanto, têm difícil entrada no mercado de trabalho.
No entanto, talvez seja justamente essa ressalva com as Humanidades a responsável por aprofundar violentamente a crise da legitimidade de todas as Ciências, incluindo as mais “duras” e práticas. Isso se dá porque qualquer crise de legitimidade é também uma crise de fundamento, ou seja, uma desconfiança ou um desconhecimento sobre o que funda as Ciências e, principalmente, com qual intenção elas são fundadas.
Para o filósofo Gilles Deleuze, toda explicação ou comentário possui uma “pretensão”, uma vontade que se impõe ao objeto analisado. Pode ser uma pretensão de exatidão, uma pretensão de igualar o conhecimento matemático à verdade, ou de igualar o que os sentidos humanos percebem à verdade.
O tema é comum a quase toda a Filosofia da Ciência moderna. Não existe, dessa maneira, uma neutralidade científica: as Ciências sempre pretendem algo e essa pretensão cria os fundamentos para se analisar os objetos do mundo. Na prática, isso significa que as Ciências não possuem caráter de verdade - pelo contrário, elas estabelecem os próprios critérios para determinar se uma coisa será considerada verdadeira ou não.
O que temos, então, são “modelos” construídos pelos cientistas que, de acordo com as regras estabelecidas pela própria Ciência, nos ajudam a interpretar e organizar uma série de acontecimentos aparentemente caóticos que nos cercam. O que dá fundamento a esse conhecimento é uma vontade de controlar a natureza e de ser capaz de reproduzir os resultados obtidos.
Já para as explicações científicas, basta que não sejam contraditórias umas com as outras e que permitam a outros cientistas a chance de prová-las falsas - aquilo que o filósofo Karl Popper propôs, nos anos 30, como o “princípio de falseabilidade” das Ciências. Isso significa que toda e qualquer teoria científica não institui uma verdade, mas uma explicação que pode e deve ser considerada falsa de modo que surjam explicações melhores e mais eficientes, nos ajudando a reproduzir com constância os resultados desejados e controlando melhor os fenômenos ao nosso redor. Tudo, claro, seguindo os melhores métodos possíveis para evitar os enganos e as contradições.
Quando aprendemos nas escolas os resultados científicos, mas não os métodos de descoberta, aprendemos uma Ciência estanque, que em sua soberba parece nos empurrar à força uma verdade absoluta e inquestionável. Formamos crianças desconfiadas ao invés de curiosas, abrimos espaço para a opinião subjetiva ao invés de alunos dispostos a compreender, abraçar e melhorar o método científico. Criamos a geração do “porque sim”.
Até mesmo a matemática, paradigma do que há de mais exato nas Ciências, está passível de mudanças e de questionamentos quanto aos seus fundamentos. Os gregos clássicos, por exemplo, não conheciam o algarismo zero, o que resultava numa matemática profundamente diferente. Apenas no século XVII, para citar outro exemplo, o filósofo René Descartes propôs uma maneira de unir a álgebra com a geometria, inaugurando uma nova maneira de se pensar os números. Toda vez que avançamos métodos ou ajustamos fundamentos, encontramos novos caminhos que movem consigo toda a sociedade ao seu redor.
As Ciências Humanas são justamente as responsáveis por questionar, criticar e inventar esses marcos fundadores. São os filósofos da Ciência que esticam os limites do conhecimento; são os historiadores que desvendam os filtros que recobrem os acontecimentos, nos permitindo novas interpretações; são os linguistas que descobrem como a linguagem determina o pensamento e abrem novas portas; os pedagogos que imaginam pressupostos que possam lidar com a potencialidade futura de nossas crianças.
Mudanças na própria definição de Natureza, por exemplo, nos permitem até mesmo encontrar novos mecanismos pelos quais seja possível melhor entendê-la e controlá-la. Como todos os usos práticos das Ciências são consequência dos fundamentos do pensamento humano, repensar esse terreno no qual as Ciências estão fundadas altera constantemente os resultados obtidos.
Queremos como sociedade avanços tecnológicos, materiais, econômicos, mas nos esquecemos que esses avanços dependem, muitas vezes, de que as Humanidades coloquem em questão os pressupostos das Ciências, as bases da sociedade, e que nos surpreendam mostrando que existem outros modos de pensar, de construir, de avançar. Trata-se de uma ampliação dos horizontes, um esticamento das possibilidades.
Saber quais são as fundações, qual o processo, qual a História do conhecimento científico deveria mostrar aos nossos alunos toda a força e a potência das Ciências - e que, sim, elas podem ser ampliadas, melhoradas e aperfeiçoadas.
Talvez o maior erro de nossa Educação seja focar nos fins, nas respostas prontas, e esquecer de inserir os alunos na história do processo, no método de descoberta, no diálogo sobre os fundamentos do discurso científico.
Da mesma maneira, a desconfiança com as Ciências Humanas dedura uma vontade social de fins, de soluções rápidas desesperadas e de resultados práticos, esquecendo tanto dos processos necessários para que cheguemos a conclusões quanto do fato de que talvez existam maneiras melhores - e inéditas - de resolver as questões que nos afligem.
Talvez, como insiste o filósofo contemporâneo Slavoj Žižek, não estejamos sequer nos fazendo as perguntas corretas para as questões fundamentais, de maneira que não encontraremos as respostas adequadas. Às Ciências Humanas cabem, portanto, as perguntas - mesmo que elas pareçam, às vezes, atrasar as respostas mais urgentes.
Sem as perguntas e os fundamentos corretos, corremos o risco não apenas de que as Ciências Naturais não avancem, ou de que se percam num mar de horrores ao esquecer sua função humana, mas também de que "não convençam", que pareçam apenas opiniões arbitrárias aos olhos da sociedade.
Há sempre o risco de que os alunos, desprovidos dos métodos, dos fundamentos e das premissas, simplesmente recusem a Ciência como "resultado final" descolado do todo, e migrem para as pseudo-ciências, as superstições e as opiniões levianas simplesmente porque elas parecem mais acessíveis, menos excludentes.
Cada vez mais precisamos entender que não se trata de demonizar ou impossibilitar as Ciências Humanas, mas de religá-las ao mundo, às outras Ciências e ao ensino básico de nossos alunos, sob risco de, de outro modo, cairmos num profundo e perigoso obscurantismo.
*Danilo Silvestre é professor de Filosofia e cursa Mestrado em Filosofia, Psicologia e Linguagem na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.