No capítulo em que abre seu “O Mundo da Escrita”, o escritor norte-americano e professor de Literatura da Universidade de Harvard, Martin Puchner, conta como uma obra literária, a Ilíada de Homero, motivou um jovem Alexandre a conquistar o mundo conhecido da sua época, expandindo seu Império para fronteiras antes nunca alcançadas pelos gregos, por volta de 300 a.c.
O recado não poderia ser mais claro. Por meio do rei da Macedônia e sua relação de paixão com os heróis homéricos, Puchner mostra como a literatura moldou nosso mundo e como seria inimaginável pensá-lo sem a presença de textos escritos. “Desde que surgiu, há 4 mil anos, ela moldou a vida da maioria dos seres humanos que vivem no planeta Terra”, explica.
Se somos o que lemos – uma máxima que permeia todo o livro, da “Epopeia de Gilgamesh” a “Harry Potter” –, Alexandre fez da sua vida o que lia em Homero. Um poema épico de batalhas, conquistas, choques culturais e traição. Com a Ilíada debaixo do travesseiro, o rei da Macedônia conquistou o mundo.
Puchner, é claro, não está incentivando delírios de grandeza em jovens candidatos a déspotas globais, como ele afirma em entrevista à Gazeta do Povo. A literatura, para Puchner, funcionaria como uma espécie de motor individual da história, capaz de mudar vidas e traçar destinos. O poder da narrativa, é claro, sempre esteve presente nas diferentes culturas e provavelmente resiste nas poucas sociedades ainda ágrafas. As obras homéricas, é bom lembrar, reuniam relatos transmitidos oralmente de geração em geração.
A literatura, porém, garantiu uma espécie de passagem para a imortalidade, ao evitar que, de uma maneira ou de outra, essa transmissão oral fosse interrompida. É o que Puchner mostra, por exemplo, no capítulo dedicado ao “Popol Vuh” e à cultura Maia. Graças à obra, curiosamente traduzida pelos colonizadores espanhóis, sabe-se muito mais sobre os Maias do que sobre outras igualmente poderosas civilizações do Novo Mundo, como Incas e Astecas. Presente como produto literário, o Popol Vuh tornou-se inclusive peça de propaganda dos movimentos zapatistas que se insurgiam contra o governo mexicano, na década de 90.
Poder incendiário
Exemplos de tal poder incendiário da palavra escrita vão da propagação vertiginosa do cristianismo e do islamismo pelo mundo à febre dos manifestos políticos que ganharam corações e mentes dos jovens europeus da passagem dos séculos XIX para o XX.
Mas, acima de tudo, a obra de Puchner diz respeito ao efeito único que a leitura produz na consciência individual. As histórias são diferentes, mas o ato da leitura é o mesmo – revolucionário e revelador por si só. Há muita evidência científica que corrobora as revelações de Puchner.
A Universidade de Pádua revela que crianças cercadas por livros têm mais chance de ter sucesso na vida adulta, a Universidade de Yale mostra que os leitores tendem a viver até dois anos a mais que não leitores e a Universidade de Sussex, no Reino Unido, relaciona a leitura à diminuição nos níveis de estresse. Por fim, estudo da New School de Nova York mostra que leitores de ficção são mais aptos a compreender as crenças e desejos das outras pessoas.
Em resumo, a leitura nos faz ter mais empatia, como no exemplar caso da poeta russa Anna Akhmátova, que manteve viva sua obra mais importante, o poema “Réquiem”, graças a ajuda de um grupo de amigas que memorizava cada verso do texto. O poema, ele próprio um mosaico do sofrimento das milhões de mulheres russas que viram suas famílias estraçalhadas pelo stalinismo, teve a impressão proibida na União Soviética.
O mínimo envolvimento com a obra poderia levar qualquer um à morte ou à prisão. Ainda assim, graças ao esforço do grupo, “Réquiem” resistiu ao stalinismo e teve suas primeiras impressões feitas de forma amadora, utilizando máquinas de escrever e papel carbono. As cópias que driblavam a censura, chamadas de samizdat foram um sucesso. Os russos queriam ler Akhmátova. Em um trecho de “Réquiem”, uma mulher desconhecida reconhece a escritora na fila de uma prisão em Leningrado.
“– E isso, a senhora pode descrever?
E eu respondi:
– Posso.
Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.”
A persistência resignada de Akhmátova e suas amigas moldou o mundo tanto quanto à ambição global Alexandre. Em comum, a literatura.
“Não há uma crise de leitura”
Martin Puchner conversou com a Gazeta do Povo sobre seu livro “O Mundo da Escrita”. Na entrevista, ele refuta a tese de que exista uma crise de leitura. “Mais textos estão sendo escritos e lidos por mais pessoas do que em toda a história”, afirma.
Para ele, o que de fato existe é um momento de ruptura para a imprensa escrita, peça fundamental na consolidação das democracias. Na entrevista Puchner falou ainda sobre formalismos teóricos na literatura, nacionalismo e globalização e revelou o livro que fez sua cabeça.
O senhor abre o livro falando do papel da leitura da “Ilíada” para Alexandre. Hoje a leitura pode ajudar um jovem ambicioso a “conquistar o mundo”, como ajudou Alexandre?
Até pode, mas eu não recomendaria. Afinal, Alexandre causou muita destruição. A leitura que ele fez de Homero – e como ela o inspirou – são um bom exemplo do poder da literatura, mas “poder” não significa “poder para o bem”.
Espero que jovens ambiciosos inspirem-se pela literatura, de preferência não para conquistar o mundo, mas para resolver nossos problemas globais mais urgentes, das mudanças climáticas à desigualdade de renda. A literatura pode ajudar a criar uma consciência global.
O senhor fala com bastante generosidade dos livros da série Harry Potter. Livros como esse são uma porta de entrada para a literatura?
Um dos fenômenos literários mais interessantes da atualidade é o crescimento da literatura “young adult” (para jovens adultos). É um fenômeno muito animador pois mostra que, ao contrário do que dizem os pessimistas da crítica cultural, os jovens estão lendo muito. Portanto, ele tem meu total apoio. E acredito que, uma vez criado o hábito da leitura entre jovens adultos, outros textos serão buscados.
Temas como globalização, globalismo e soberania de estados nacionais têm aparecido com frequência no noticiário político atual. No livro, o senhor descreve como Alexandre incorporou costume e cultura estrangeira ao mesmo tempo em que difundiu a língua e a literatura grega no mundo da época. Mostra como Goethe planejou uma literatura universal. Por outro lado, traz exemplos de como a literatura foi fundamental para fazer aflorar identidades nacionais no Caribe, no México e na África. Um mercado mundial de literatura é compatível com uma literatura de paixões nacionalistas?
Ótima pergunta. Há uma relação dinâmica entre a literatura nacional e a literatura global. Os épicos nacionais mencionados por você, instrumentais na criação de identidades culturais, costumam ser eles mesmos mosaicos construídos a partir de culturas anteriores ou diferentes. Posteriormente, acabam extrapolando seu contexto original e se tornam disponíveis para outras culturas. Até a noção de literatura universal de Goethe surgiu em meio a um movimento nacionalista – a unificação de diversos estados alemães.
Retiro duas conclusões desse paradoxo: 1. Já que as narrativas, especialmente narrativas coletivas e compartilhadas, desempenham um papel tão importante na criação de pertencimento cultural, a grande literatura costuma ter um efeito nacional ou até nacionalista. Ao mesmo tempo, ao examinar a história literária como um todo, podemos ver até onde a literatura transcende a nação e está disponível para gerações posteriores e além de seu contexto original: a literatura universal.
No capítulo dedicado a Benjamin Franklin, o senhor aborda a importância dos jornais para a formação dos Estados Unidos. Em “A Democracia na América”, Tocqueville dizia que "nos Estados Unidos cada jornal tem, individualmente, pouco poder; mas a imprensa periódica ainda é, depois do povo, o primeiro dos poderes.” O senhor tem acompanhado a crise dos jornais, que atinge principalmente os pequenos e médios? O senhor acha que há uma crise de leitura nos dias de hoje?
Eu não acho que haja crise de leitura. Mais textos estão sendo escritos e lidos por mais pessoas do que em toda a história, principalmente na internet, mas também em outras mídias. É uma enorme democratização da literatura e da escrita e, se acreditamos na democracia, devemos saudar esse movimento. Eu celebro.
A crise mencionada não é de leitura, mas do modelo de negócio dos jornais, que se financiavam por meio de anúncios e, em menor grau, por meio de assinaturas. Com os anúncios desaparecendo e menos leitores dispostos a pagar por conteúdo, o modelo de negócio não é mais viável. Isso é preocupante e perturbador, porque os jornais com esse modelo de negócio foram cruciais para nossas sociedades.
Agora precisamos encontrar caminhos a seguir no cenário de mudanças da mídia, especialmente nas mídias sociais. Acho que governos, usuários e até empresas como o Facebook estão acordando para o fato de que essas plataformas têm um poder imenso. Esse poder precisa ser limitado, regulado ou organizado de alguma forma. Algo semelhante ocorreu nos primórdios dos jornais, a propósito, e nas primeiras décadas e séculos após a introdução da prensa, quando uma quantidade enorme de desinformação e falsidade circulou de forma muito mais generalizada. Nós lentamente aprendemos a lidar com isso, a organizar isso, e agora temos que fazê-lo novamente.
O senhor tem uma carreira como crítico literário e é professor em uma das mais importantes universidades americanas. Ao mesmo tempo, demonstra possuir uma relação afetiva intensa com os livros e a literatura e em seu livro parece insistir na tese de que essa paixão é acessível, inclusive aos leitores sem estudo formal. O senhor concorda com a tese, defendida por muitos dos seus colegas, de que a especialização dos estudos literários na academia levou uma geração de estudantes a ler cada vez mais teoria e menos literatura em si?
Meus pensamentos e impressões sobre essa questão são complicados. Concordo que os estudos literários estão muito voltados para si próprios e esotéricos; nós, estudiosos da literatura, perdemos boa parte dos leitores não especializados, o que é muito ruim. É ruim do ponto de vista intelectual, afinal comunicar-se com leitores em geral é um exercício extremamente salutar e importante. E sem uma audiência geral, deixamos de atrair pessoas para a literatura.
Mas não acho que a teoria literária seja a culpada, ao menos não a única. O estudo literário, como qualquer disciplina, precisa de teoria, da mesma forma que a física ou a história. Infelizmente, a teoria literária costuma não ser particularmente boa ou útil. Precisamos de teorias melhores.
Também devo confessar que fui originalmente atraído para o estudo da literatura por meio da teoria. Na faculdade, me formei em filosofia e cheguei à literatura via teoria. Ainda hoje, meu trabalho é sustentado e informado pela reflexão teórica, mas não atraio leitores com termos abstratos. Formulo certo entendimento da literatura, da história literária, e depois o mostro em ação. Ao escrever sobre histórias contadas, eu mesmo conto histórias. Isso faz muito sentido para mim, e espero que mais colegas façam o mesmo.
Qual livro despertou no senhor o gosto pela leitura?
Outra confissão: na verdade, eu não era um grande leitor até os 16 anos. O único livro que realmente me impressionou foi o “O Senhor dos Anéis”, do Tolkien, que eu ainda amo. Mesmo na faculdade, como acabei de mencionar, fui atraído muito mais pelos argumentos abstratos da filosofia. Foi só depois dos 20 anos que me peguei cada vez mais lendo literatura. O “Ulisses” de Joyce foi logo uma paixão à qual eu ainda retorno sobre a qual às vezes ensino. Acho que ele me impressionou muito porque o li pela primeira vez numa circunstância especial, no Monte Athos, na Grécia, em um mosteiro medieval. Essa experiência me fez conectar leitura e viagem, algo que depois me levou a escrever este livro, que combina as duas coisas.
O crítico Harodl Bloom abordou o escritor brasileiro Machado de Assis em seu livro “Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura”, classificando-o como um “milagre”. O senhor concorda com a avaliação? Gosta da literatura brasileira?
Não costumo concordar com Harold Bloom, mas neste caso concordo! Incluí Machado de Assis, o conto "O Caso da Vara", em minha antologia da literatura mundial, “The Norton Anthology of World Literature”. Adoro a maneira como ele capta a vida urbana moderna e as sutis ironias que emprega para brincar com os leitores, quase antecipando figuras modernistas como Joyce. Ao incluí-lo, quis torná-lo um nome mais familiar nos Estados Unidos. A outra escritora brasileira que incluí foi Clarice Lispector, que capta a vida cotidiana com precisão incrível e que só agora está se tornando mais conhecida nos EUA. Por fim, eu estudava manifestos de vanguarda e foi assim que me deparei com o "Manifesto Antropofágico" de Andrade. Adoro o jeito malicioso com que brinca com estereótipos coloniais.