A preferência por selecionar autores de esquerda na prova no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é tema de divergência entre especialistas consultados pela Gazeta do Povo. Deixando de lado a exagerada polêmica sobre gênero e violência contra mulheres – afinal, a agressão às mulheres é sob todos os aspectos inaceitável –, a prova recebeu críticas pela quantidade de autores ou temas considerados caros à esquerda. Ao menos 13 questões da prova de Ciências Humanas estavam relacionadas a essa corrente de pensamento, embora não seja possível declarar de forma incontestável que as respostas atribuídas a elas sejam tendenciosas.
Uma delas chama a atenção por envolver um tema polêmico – a globalização –, que pode ser analisado por diversos aspectos. O viés escolhido, porém, trata apenas do lado considerado “perverso” do fenômeno, e usa trecho da obra Por uma outra globalização, de Milton Santos. A resposta certa para a questão, de acordo com o gabarito, afirma que a globalização levou à automatização na indústria e ao desemprego, o que é apenas uma parte dos fatos que estão relacionados ao fenômeno.
Não se trata de uma disputa entre direita e esquerda. Parte-se do pressuposto que o exame teria de ter todas essas correntes, mas a validação não tem de dar conta de todos os espectros ideológicos. A prova não é obrigada a isso.
A discussão que se coloca é em que medida ideologias podem ou devem estar presentes em uma prova nacional do ensino médio. Até que ponto isso é possível ocorrer sem que o exame possa ser considerado instrumento para doutrinação?
Há quem entenda não haver problemas na prova do Enem aplicada hoje em dia. O professor de História Daniel Medeiros não vê equívocos na forma como a prova é construída. Ele considera que a prova do Enem é das mais abrangentes na seleção de temas e que não há obrigação de o exame ter um equilíbrio na escolha de autores.
“Não se trata de uma disputa entre direita e esquerda. Parte-se do pressuposto de que o exame teria de ter todas essas correntes, mas a validação não tem de dar conta de todos os espectros ideológicos. A prova não é obrigada a isso”, afirma Medeiros. “O Enem é feito a partir de um banco de questões em que participam professores de universidades públicas de todo o país. A escolha deles retrata a realidade brasileira, que é excludente.” Para o professor, a escolha do autor não é relevante. O importante é verificar se o aluno consegue compreender e responder corretamente o tema questionado.
A prova não pode funcionar como filtro ideológico de acesso ao ensino superior. Ela não pode condicionar o acesso do candidato a uma determinada maneira de pensar. É preciso um esforço para se ter a maior neutralidade possível
Posicionamento contrário tem Miguel Nagib, advogado e coordenador do movimento Escola Sem Partido. “A prova não pode funcionar como filtro ideológico de acesso ao ensino superior. Ela não pode condicionar o acesso do candidato a uma determinada maneira de pensar”, afirma Nagib. Para ele, o Enem reflete o viés ideológico que existe no sistema educacional, alimenta esse viés e acaba por funcionar como filtro ideológico de acesso às universidades públicas. “As pessoas precisam estar comprometida com a neutralidade. Dizem que ela não existe, o que é, de fato, um argumento válido. Mas é preciso um esforço para se ter a maior neutralidade possível, e esse esforço não está sendo feito no Enem.”
Uma das formas de resolver a polêmica sobre as ideologias expressas no Enem é abandonar a prova de múltipla escolha e adotar o sistema dissertativo. “Desde que se aceite posições contrárias à visão do formulador da questão, o sistema dissertativo permite que a prova não tenha viés ideológico”, afirma o professor de Ética e Filosofia Roberto Romano. “Assim consegue-se avaliar a capacidade lógica do candidato, o seu uso da língua portuguesa, a sua argumentação, além de verificar se ele entendeu o problema. Garante-se a pluralidade de opiniões.”
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