A região do Vale do Silício, nos Estados Unidos, abriga as maiores empresas de tecnologia e é conhecida mundialmente como um dos principais polos de inovação. No Brasil, apesar da existência de ilhas de excelência, chamadas por alguns de “Vale do Silício Brasileiro”, o país ainda está muito longe de chegar perto da eficiência e qualidade do parque tecnológico americano, fruto da união de esforços de instituições de ensino, centros de pesquisa e empresas. E os motivos principais são a falta de mão de obra especializada, dificuldades legais e culturais para as universidades trabalharem ao lado das empresas e a ausência de políticas públicas que fomentem essa transformação.
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Para entender o tamanho do gargalo, é preciso analisar os indicadores de produção científica das universidades brasileiras. Os cursos de pós-graduação, por exemplo, são responsáveis por cerca de 80% da produção científica que se faz no país. O Brasil também é um dos que mais produz pesquisas, oscilando nos últimos anos entre o 13º e 14º lugar mundial na quantidade de papers, próximo a países como Coreia do Sul e Alemanha. O problema é que esse conjunto traz quantidade e não qualidade. O Brasil, nos últimos rankings de impacto científico – indicador que avalia o quão efetiva é uma pesquisa -, tem permanecido entre os últimos lugares, algumas vezes atrás de países da América Latina, de acordo com o ranking do Scimago Journal, que investem menos que o Brasil em ciência.
O Brasil também está no 56º lugar nos rankings de colaboração da ciência com a indústria, de acordo com um levantamento da Web Of Science. Já nos rankings internacionais de qualidade, as universidades brasileiras também estão longe de suas colegas no exterior. Para dar um exemplo, nas últimas edições do QS World University Ranking, o Brasil registrou cerca de 20 universidades entre as 1.000 melhores do mundo e apenas uma acima da 200ª posição.
Outro indicador que mostra o quanto a produção científica em grande parte das universidades brasileiras está desfocada do mercado de trabalho é avaliar o destino dos cerca de 23 mil doutores formados a cada ano no país. Do total, 80% deles se mantêm na universidade e só 20% vão para as empresas. Esse cenário é completamente inverso em países como Estados Unidos e Alemanha: a maior parte dos doutores vai trabalhar na indústria e outras corporações de desenvolvimento econômico.
“Existe um problema tanto no número de profissionais quanto na qualidade das faculdades. Os alunos se formam carentes em conhecimento de tecnologias, melhores práticas atuais e em habilidades socioemocionais, como trabalhar em equipe, autonomia de aprendizado, proatividade e comunicação”, afirma Fabio de Miranda, coordenador do curso de Engenharia da Computação do Insper.
Segundo ele, não se deve desprezar algumas regiões do Brasil, com parques tecnológicos consideráveis, como a região do Berrini, em São Paulo (SP), São José dos Campos (SP), Campinas (SP), Recife (PE), Santa Rita do Sapucaí (MG), entre outras. E também empresas de tecnologia brasileiras avaliadas em mais de US$ 1 bilhão. Mas, apesar dessas realidades, o cenário atual ainda está muito aquém do que poderia ocorrer no Brasil.
Desemprego x falta de mão de obra
Segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil contava com 12 milhões de desempregados no 4º trimestre de 2021.
Por outro lado, a conta não fecha no setor de tecnologia. Anualmente, 53 mil pessoas são formadas em cursos voltados para essa área, porém o mercado conta com uma demanda média de 159 mil profissionais por ano. De acordo com um levantamento realizado pela Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais, a Brasscom, o país pode enfrentar um déficit de 530 mil talentos até 2025.
“A gente está pagando o preço por estar pensando nisso só agora. Estamos em uma escassez de talentos tamanha que, se tiver um aproveitamento mínimo, já é o suficiente”, diz Ana Rezende, estrategista de talentos da Astella Investimentos.
Na visão de Ana, as universidades e as empresas não conseguiram acompanhar a evolução constante do setor de tecnologia: “As pessoas saem da universidade com um conhecimento que existe potencial de já estar obsoleto, das empresas já estarem utilizando outras ferramentas. Então, sim, as universidades não preparam. Mas, ao mesmo tempo, vejo que nós, como organizações, também demoramos para entender que o 'balde ia secar'”.
De acordo com ela, as empresas também demoraram para reagir, com programas para funcionários e futuros empregados. “Foi nos últimos 18 meses que as organizações passaram a ofertar seus próprios programas de desenvolvimento, sendo que estamos falando de escassez de talentos há cinco anos”, destaca.
Esse abismo entre teoria e prática no ensino também é sentido pelos estudantes e pelas organizações. “Tem muito profissional no mercado que está aprendendo a programar, porém a barra de exigência das empresas é muito alta e não é por um motivo bobo. Elas precisam competir nesse mundo digital, têm vários projetos para ontem e precisam de profissionais já qualificados, mas a faculdade não está conseguindo formá-los para esse novo mundo”, avalia Michel Nigri, cofundador e COO [Chief Operating Officer] da Driven, escola de tecnologia especializada na formação de pessoas desenvolvedoras.
“As empresas sentem que não tem profissional qualificado no mercado. Segundo a Brasscom, no ensino superior de tecnologia, de todos os matriculados, só 30% concluem os cursos. O que isso revela? Que essa formação não engaja, está longa, chata, teórica, apartada do mercado de trabalho. Dos 30% que se formam, só metade é aproveitada no mercado, enquanto os demais vão trabalhar com outras coisas. Ou seja, apesar de eles estarem formados, não estão qualificados para entrar no mercado. E, mesmo aqueles que entram, precisam fazer algum curso extra para aprender as tecnologias novas usadas”, reflete Nigri, em tom de preocupação.
A globalização também atinge o setor. Com a pandemia da Covid-19 e a implementação do trabalho em home office, empresas estrangeiras passaram a recrutar brasileiros, que podem trabalhar daqui e serem pagos em dólar. “Sempre tivemos escassez de talentos em determinadas áreas, mas hoje temos tido um inimigo mais feroz. O que a globalização trouxe para a gente, no final das contas, é que todos os países têm acesso aos nossos melhores colaboradores”, afirma Ana.
Como resolver?
Para Miranda, o primeiro passo para a resolução desse conflito seria a atuação mais eficiente do governo em “diminuir o ‘custo Brasil’ em vez de construir exceções para beneficiar determinado setor”. “As tentativas e incentivos do governo de dirigir a economia no sentido de determinados setores não têm sido bem-sucedidas. O governo poderia atuar no sentido de simplificar o ato de empreender, melhorar infraestrutura, simplificar importação de insumos para produção ou equipamentos que vão viabilizar atividade produtiva”, reforça.
O docente também acredita que governo e iniciativas privadas podem investir em cursos de menor duração, enquanto as universidades devem proporcionar aos estudantes itinerários de ensino mais conectados com a realidade do mercado:
“Cada vez mais serão criados empregos mais simples que não necessitam de ensino superior. O que é ótimo. Com a digitalização da economia, chegaremos a um ponto em que a maior parte das posições de trabalho será em tecnologia. Dessa forma, parece ser uma estratégia interessante, para governo e instituições privadas, oferecer treinamentos e formações mais rápidas que uma graduação para qualificar profissionais de setores que estão encolhendo, como o industrial”.
“Essa estratégia permitirá a quem de fato é formado e especializado nas carreiras de tecnologia poder se concentrar nos problemas mais difíceis e em papéis de liderança nos times. As universidades podem fazer como o Insper: trazer a realidade profissional para a formação, para que os alunos enxerguem que seu esforço nos estudos vai dar resultado e aprendam num contexto real. É uma estratégia que motiva e reduz a evasão. As instituições também podem ajudar oferecendo nivelamento de conhecimentos prévios faltantes, incentivar a capacidade de planejar os estudos e refletir sobre o aprendizado e fomentar, de forma ativa, o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Além disso, torna os alunos mais aptos a atuar em equipes profissionais imediatamente após formados”, comenta.
Para as empresas, iniciativas como a Driven são vistas como uma alternativa a esse apagão de profissionais. Em nove meses, a escola prepara os seus alunos para o mercado de trabalho. “Até agora, todos os alunos que se formaram com a gente foram empregados em até 60 dias, com salário médio inicial de R$ 5,7 mil. Agora, o que fazemos para funcionar? Primeiro: temos um processo seletivo rigoroso, aprovamos só 2% dos inscritos e cerca de 70% dos interessados vem de faculdade de renome, são alunos qualificados da área de exatas que tem uma afinidade com a área [de tecnologia]”, diz Nigri. “Damos uma formação de mil e 200 horas. Nove meses parecem pouco, mas quando comparamos o tempo da formação com as cinco mil horas da faculdade, não é tão diferente assim, dado que a faculdade tem muitas matérias que não são direcionadas para esse mercado”, pontua.
Alunos buscam conhecimento fora das universidades
Engenheiro de produção e mestrando em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Wilson Ferreira Costa sentiu na pele esse abismo entre o conteúdo aprendido em sala de aula e a realidade do mercado. “É necessário quebrar o paradigma de que o aluno tem que estar nessa caixinha de estudar, aprender o cálculo e aplicar em uma empresa. Não é isso, ele precisa ter uma gama de formações externas para definir em qual área atuar”, aponta.
Para suprir essa lacuna, Costa realizou cursos on-line no Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e atuou, de forma voluntária, na Rede Enactus, organização internacional em que jovens universitários desenvolvem projetos de empreendedorismo social.
Atualmente, o profissional exerce a função de Gerente de Programa da Enactus Brasil, cargo no qual mantém contato com empresas como Amanco e Unilever. Nesta posição, Costa recebe retornos positivos dessas companhias devido à formação multidisciplinar dos alunos da Enactus. “As empresas enxergam no nosso estudante o futuro líder das empresas. Por isso, elas têm programas de estágio e trainee exclusivos para os integrantes da Enactus, pois elas sabem que os nossos universitários têm um perfil diferenciado”, comenta.