A flexibilização do ensino médio é uma demanda de décadas dos estudantes, foi prevista nos governos do PT e está na meta 3 do Plano Nacional de Educação, de 2014. Voltar ao engessamento do currículo que colocou o Brasil nos piores níveis de qualidade seria um grande retrocesso. Essa é a opinião de Rossiele Soares, que foi ministro da Educação do ex-presidente Michel Temer, atuou na implementação do novo ensino médio como secretário de Educação de São Paulo e é o atual secretário de Educação do Pará.
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Para ele, a pressão para paralisar e até tentar revogar a reforma do ensino médio não tem fundamentação acadêmica e é fruto da politização do tema. "O Brasil, infelizmente, acaba errando, muitas vezes, porque faz mudanças sem discutir o que há de bom na política [anterior] e acaba politizando o tema por outros interesses e isso não é bom", afirmou em entrevista para a Gazeta do Povo.
"O problema do ensino médio é que virou um preparatório para o vestibular, mas poucos jovens vão para a faculdade. Então, precisa dar outras possibilidades, como a formação profissional", explica, lembrando que é o formato adotado em outros países. Ele admite que a implementação precisa de ajustes, mas sem perder o que foi alcançado. "O modelo anterior foi o que mais gerou desigualdade, abandono escolar e que menos teve crescimento em aprendizagem dos jovens", diz.
Confira a entrevista exclusiva de Rossieli Soares à Gazeta do Povo:
O senhor vê a possibilidade de revogação completa da reforma do ensino médio?
Rossieli Soares: A revogação só é possível se for feita por lei. Portanto, teria que passar pelo Congresso e, cabe ao governo, enviar essa discussão ao Congresso Nacional. Mas não acho que seja tão simples. Revogar diminui novamente a carga horária. Revogar é voltar ao status anterior. É voltar a ter 2.400 horas e não mais 3.000 horas, deixar de ter a possibilidade dos itinerários e ter um engessamento maior dos componentes curriculares. E é aí que os alunos começam a perder, pois eles sempre pediam uma diversidade maior, possibilidade de ter formas diferentes de aprendizagem e os itinerários formativos abrem esse espaço sem diminuir da base comum curricular. Esse é o principal ponto que os alunos irão acabar perdendo, ou seja, a possibilidade de se aprofundar, de ser atraído por uma área que o estudante tem mais afinidade.
Também, tem uma parte que politiza o debate do ensino médio. "É do governo tal então não é bom. Do governo X não é bom". O Brasil, infelizmente, acaba errando, muitas vezes, porque faz mudanças sem discutir o que há de bom na política e politizando. Há uma parte que acaba politizando por outros interesses e isso não é bom. Mas eu não acredito na revogação total, até agora. Não é isso que tenho ouvido e discutido. Aprimorar é necessário, porque é uma política complexa e longa. Tivemos uma pandemia. Obviamente, ter uma liderança, agora, para correção de rumos para implementação é fundamental. Mas, até o momento, não acredito na revogação da reforma.
Qual era a ideia inicial da reforma do ensino médio?
Rossieli Soares: Na verdade, a ideia de alterar o ensino médio é muita antiga no Brasil. Não é algo de 2016 e 2017, mas de décadas. É justamente para tentar alinhar as políticas de educação do ensino médio do Brasil às melhores políticas do mundo. Nós trabalhamos em uma mudança que foi estabelecida no Plano Nacional de Educação. Tanto que a meta três fala justamente da flexibilização do ensino médio. Não é um tema novo. Mas, infelizmente, há uma politização em cima do tema que não deveria existir.
Em 2012, o próprio Conselho Nacional cria a nomenclatura de itinerários formativos. Então, é uma discussão longa. E como toda mudança, necessita de ajustes no decorrer de sua implementação. O que não se pode é perder a referência do que precisa ser feito. A reforma buscou trazer flexibilidade ao ensino médio para deixar a escola mais atrativa, lembrando que o Brasil tem um dos piores indicadores de educação, especialmente no antigo ensino médio.
A nossa organização do ensino médio com todas as disciplinas iguais e todo mundo em uma caixinha, no Brasil, isso não respeita a verdadeira equidade, que é trazer, para os nossos estudantes, possibilidades distintas dentro do Brasil. Isso já é exigido no vestibular e no Enem. Apesar de fazer provas das quatro áreas de conhecimento no Enem, para passar no curso de medicina, por exemplo, a área de conhecimentos da natureza tem um peso maior na nota.
O problema do ensino médio é que virou um preparatório para o vestibular, mas poucos jovens vão para a faculdade. Então, precisa dar outras possibilidades, como a formação profissional. É óbvio que precisa ter correção de rumos. Em 2019 e 2020, tivemos pouco suporte do governo federal. E lembrando que teve uma pandemia no meio, o que dificultou muito o processo de implementação.
Atualmente, como está a reforma?
Rossieli Soares: Primeiro, vou falar o que andou. Andamos bastante na parte da construção curricular. Todos os Estados têm um currículo aprovado. Mas o que atrapalhou muito foi a pandemia. Tem uma série de coisas que poderiam estar mais avançadas, como formação, mas a pandemia tirou. As secretarias tiraram o foco [do ensino médio] e visaram garantir o mínimo de acesso à aprendizagem fora da escola.
Agora, o que pode melhorar é aumentar a carga de formação. Tem coisas que precisam ser aprimoradas e discutidas no âmbito das redes de ensino, de como faz a organização dos itinerários e as diferenças na carga horária. Tem uma questão de compreensão da organização por área de conhecimento que é fundamental quando se organiza isso. Acho que precisamos ter um diálogo maior, em nível nacional, também com os estudantes. Assim qualifica o debate, para não ficar um debate politizado que não leva a nada.
Ensino médio não pode ser cursinho preparatório para o vestibular. Ensino médio precisa ser uma etapa de formação para o ser humano. Tanto que, saliento, as respostas do mundo inteiro são de flexibilidade e não de engessamento, até pela característica da própria juventude. Estive desde o início envolvido no processo de criação, concordo que precisa ter correção de rumo no decorrer da implementação. Mas sem perder o que já foi feito, já avançou e não pode retroagir ao que era. Corrigir, sim. Retroagir, não.
Por que trocar as 13 disciplinas que eram dadas por itinerários formativos e ensino técnico?
Rossieli Soares: Nós somos um dos únicos países do mundo que tem essa quantidade de disciplinas. No PISA, a avaliação internacional é feita com estudantes de 15 anos, porque é o momento em que se espera que a formação geral básica já foi concluída. O Brasil está fazendo a formação básica tarde e a escola perde a atratividade e potência de permanência dos jovens. Os estudantes não veem sentido em algumas disciplinas. Vai se perdendo talentos e até oportunidades. Dar oportunidades de aprofundamento não é menos, é mais. Não é tratando como se todo mundo fosse igual que a gente vai dar a verdadeira oportunidade aos alunos.
Então, o ensino médio precisa ter flexibilidade. E é óbvio que isso é um processo de anos que precisa ser feito. Mas nós não podemos perder o norte. O modelo anterior foi o modelo que mais gerou desigualdade, abandono escolar e que menos teve crescimento em aprendizagem dos jovens.
Mas os estudantes não correm o risco de deixar de adquirir conhecimentos básicos com os itinerários e a formação técnica?
Rossieli Soares: Estamos falando de uma diferença do ensino médio anterior para o novo ensino médio de 600 horas. Tínhamos um ensino médio de 2.400 horas e a base comum curricular passa a ser de 1.800 horas e o itinerário formativo passa a ter 1.200 horas. O novo ensino médio aumenta a carga horária, gerando mais oportunidades para os jovens e carga horária para os professores. Dando mais possibilidade no itinerário formativo para o aprofundamento dos jovens. Não há que se falar em diminuição. Os países com melhor desempenho no PISA não têm 13 disciplinas. Nenhum país com a política educacional de resultados positivos tem. Todos os países que usamos como referência têm flexibilidade no ensino médio, menos o Brasil tinha.
Os itinerários formativos devem ser iguais para todas as escolas ou não?
Rossieli Soares: A regulação do Conselho Nacional traz que as quatro áreas do conhecimento devem ser ofertadas [nos estados] e, no mínimo, dois itinerários nas escolas. Isso foi regulamentado em 2018. Toda escola precisa ofertar, no mínimo, dois itinerários, que são os itinerários que chamamos de híbridos, por exemplo, com duas áreas juntas. Então, pode ter um itinerário de linguagem e humanas. E outro de matemática e ciências da natureza. Mas se a escolar quiser, pode ofertar mais itinerários. Inclusive, específico por área de conhecimento. Mas daí vai da escolha da própria comunidade, de um processo de escuta dos estudantes e dos professores. A legislação só estabelece que sejam ofertados, no mínimo, dois itinerários e que podem e devem ser escolhidos pelos estudantes.
E no ensino técnico?
Rossieli Soares: No ensino técnico são outras variáveis. Precisa ver a vocação local, disponibilidade de uma instituição para fazer, demanda e disponibilidade da região. Mas pode ser feito em parceria com um Instituto Federal, por exemplo. Então, depende de cada Estado.
Recentemente, Renato Feder, que assumiu a Secretaria de Educação em São Paulo, criticou como o ensino médio está sendo implantado. "Os nomes são lindos. Tem direitos humanos, artes de todos os tipos, jornalismo, urbanismo. É muito bonito dar essas disciplinas na escola pública, mas o professor não sabe dar essa aula", opina ele. A implantação dos itinerários e do ensino integral pode dar esse resultado: muitas matérias diferentes, sem professor capacitado e priorizando disciplinas menos importantes para o futuro do aluno?
Rossieli Soares: Existe uma série de itinerários formativos. Mas não se pode confundir com disciplina eletiva, escolhida pelos alunos e construída pelos professores. O número de disciplinas eletivas não são os itinerários formativos. Os itinerários formativos têm uma estrutura curricular montada e professores licenciados fazendo determinados componentes curriculares.
Em segundo lugar, cabe aos secretários, se não tem formação para os professores, fazer. Agora, não é a solução, seja em São Paulo, Pará ou em qualquer lugar, fazer o mesmo para ter a mesma aprendizagem e o mesmo resultado. Nos últimos quatro anos, avançamos pouco. Tem muita formação que precisa ser feita e, à medida que vai implementando a cada ano, corrigir o que não está certo.
Qual era a intenção da reforma do ensino médio de colocar profissionais habilitados com “notório saber”? Sindicatos de educação têm criticado esse ponto da reforma.
Rossieli Soares: Notório saber já é utilizado há muito tempo no Brasil. Lembrando que temos o quinto itinerário formativo que vem da educação profissional. Quem tem habilitação para tratar de educação profissional para determinadas tecnologias que foram criadas? Por isso, tem sim o instituto do notório saber. Notório saber não é para tirar a licenciatura de português ou de filosofia. Há um erro conceitual de quem discute, que me parece que há pessoas que participaram da discussão sem ler o que o arcabouço jurídico fala. Inclusive, essa regulamentação o próprio Conselho Nacional regularizou. O notório saber é um instituto fundamental, especialmente, no quinto itinerário formativo que é a educação profissional e tem uma série de possíveis aplicações nesse campo.
Por exemplo, uma indústria cria uma determinada máquina. E tem um curso técnico que precisa ensinar, porque naquela região a empregabilidade está ligada a manutenção dessa máquina. Quem é habilitado para fazer? Vamos esperar 2 ou 3 anos para preparar alguém para dar a aula? Não. Temos que contratar quem já trabalha com isso e que pode dar aula. Até porque a tecnologia muda muito rápido e se não formos rápidos, o curso se torna obsoleto. Então, estamos falando para esse tipo de caso que deve ser regulamentado só para isso. O notório saber é um conceito politizado de forma errada. O notório saber tem coisas muito específicas que podem ser utilizadas.
Outra discussão é a questão do ensino integral. As escolas estão preparadas para ter ensino integral?
Rossieli Soares: Esse é um projeto de transformação a longo prazo. O Brasil está muito atrasado. Quando eu assumi (o Ministério da Educação) o país tinha apenas 8% de escolas em ensino integral no ensino médio, um dos indicadores mais baixos do mundo. Educação em tempo integral para a formação integral dos jovens é de no mínimo 7 horas e 30 minutos. Não existe discussão de tempo integral. Só no Brasil [em comparação com outros países] que existe o tempo parcial. Então, é preciso gradualmente fazer essa transição. Por exemplo, São Paulo acelerou. Em Pernambuco, está quase perto de 70% dos alunos em tempo integral. Ou seja, é possível fazer.
Sobre a infraestrutura, as pessoas precisam parar de discutir como se fosse um desafio só para o novo ensino médio. Educação em tempo integral existia antes. A gente criou uma forma de fomento. Mas é uma situação para a gente resolver em 15 anos, mas se a gente não começar agora, não se resolve. As pessoas querem colocar essa discussão sobre ensino integral na reforma do ensino médio, mas esquecem que no Plano Nacional de Educação foi discutido, inclusive na época do presidente Lula. Então, o ensino integral é um complemento, uma política nacional prevista em lei anterior.
Sindicatos de educação alegam que não houve debate e consulta pública. Na época, o que foi feito?
Rossieli Soares: Participaram das audiências públicas oficiais organizadas pelo Congresso Nacional durante todo o debate. Inclusive, eu participei de mais de 130 audiências públicas naquele período. Essa discussão vem sendo feita há décadas. Sobre as discordâncias, vão ter concordâncias e discordâncias, faz parte do processo. Mas eles (sindicatos e ONG educacionais) no debate se posicionaram contrários a algumas coisas. Isso faz parte.
Como devem ser as próximas edições do Enem?
Rossieli Soares: Esse é um debate importante, o presidente do Inep tem falado sobre isso. O Conselho Nacional de Secretários da Educação tem participado dessa discussão. Há uma discussão do Enem de ter um dia para parte comum e outro dos itinerários. Mas esse é um dos pontos mais importantes de definição e que deverá ser feito pelo Inep com o MEC.
Então, o cuidado maior, no momento, é de evitar politização para não retroceder?
Rossieli Soares: Sim. Qualquer política dessa magnitude não pode virar torcida de futebol. Não pode ser um debate irracional. Tem que ser um debate olhando para aquilo que tem de bom. Mas também não fazer uma defesa cega, nem eu faço, dizendo que não temos coisas a melhorar. Tem muita coisa a ser melhorada, até porque foi iniciado uma implementação, mas veio uma pandemia. O processo de implementação precisa ser pensado a partir da nossa realidade.
Não pode ser discutido ‘vamos revogar porque era de tal governo’. Daí o Brasil não vai andar para frente e o país irá continuar tendo indicadores de abandono absurdos, aprendizagem baixíssima, como tem acontecido ao longo dos anos no ensino médio. E toda vez que sai o resultado das avaliações, a gente volta a discutir que o ensino médio tem que mudar e não realiza as mudanças que são necessárias. O Brasil precisa enfrentar.
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