De todas as mudanças anunciadas pelo governo Bolsonaro em poucos dias, uma das mais expressivas é o desaparecimento de uma sigla: o Ministério da Educação não contará mais com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi). O órgão foi dividido em duas secretarias, uma delas dedicada exclusivamente à alfabetização. A mudança de foco é radical: mais investimento na educação básica, principalmente na alfabetização. A diversidade, sem ser esquecida, será contemplada em outra secretaria no MEC e também no Ministério de Direitos Humanos.
A iniciativa é coerente com a promessa do presidente Bolsonaro em seu discurso de posse: “Pela primeira vez, o Brasil irá priorizar a educação básica, que é a que realmente transforma o presente e o futuro de nossos filhos e netos, diminuindo a desigualdade social. Temos que nos espelhar em nações que são exemplos para o mundo e que por meio da educação encontraram o caminho da prosperidade.”
É a alfabetização, no tempo certo, de fato, que vai transformar a educação brasileira – e, dessa forma, reduzir a desigualdade e favorecer a diversidade, como propunha a Secadi. O Brasil ainda caminha devagar nesse quesito: demora para alfabetizar as crianças, aumentando a desigualdade entre ricos e pobres, e tem analfabetos demais, um problema grave, que tem impacto direto no desenvolvimento do país e de seus cidadãos. Atualmente, 7% da população brasileira é analfabeta.
O Plano Nacional de Educação (PNE) previa que, em 2015, esse indicador estivesse em 6,5%, a fim de chegar a 2024 com 0%. Esse índice não considera os analfabetos funcionais: eles formam, no Brasil, uma massa de 38 milhões de pessoas, segundo o segundo o Indicador do Alfabetismo Funcional (Inaf), medido pela ONG Ação Educativa e pelo Instituto Paulo Montenegro. É o equivalente à população do Canadá.
O analfabetismo, o formal e o e o funcional, é resultado principalmente de duas deficiências: má formação dos professores e falta de investimentos na educação básica.
Abismo entre classes
Segundo dados da Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização, 55,4% das crianças educadas em escolas públicas brasileiras não estão alfabetizadas no terceiro ano – o mesmo índice aparece na somatória dos níveis 1 e 2 da escala do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). Essa demora em disponibilizar para os alunos um conhecimento tão básico cria um abismo muito grande em relação às crianças de escolas particulares, que em muitos casos já saem do primeiro ano alfabetizadas. Esse problema aumenta a desigualdade entre pobres e ricos, já que fica difícil para os alunos de escolas públicas tirar esse atraso nos anos seguintes da formação educacional.
Por que a alfabetização é adiada? Um dos motivos é a falta de conhecimento técnico dos professores, que acabam tendo grandes dificuldades para alfabetizar, responde, em entrevista a Gazeta do Povo, Cláudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE) da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ). “A formação que eles [alunos de Pedagogia] recebem na universidade – que é excessivamente teórica e muito divorciada da realidade do chão da sala de aula. Quando alguém vai formar um médico, desde o primeiro ano de faculdade faz o aluno frequentar os pacientes, o aluno é exposto à prática. Em engenharia também. Em educação, o aluno só vai dar a sua primeira aula quando termina a faculdade. Ele pode fazer um estágio, assistir às aulas de outros professores, ajudar outro professor, mas ele não pode dar aula”.
Cláudia Costin explica que também existe um problema estrutural na forma como a alfabetização é adiada nas escolas públicas. “Porque postergamos essa alfabetização, porque temos uma visão errada de que aprender é uma coisa difícil ou chata e vamos deixando para alfabetizar mais para frente na escola pública”, ela afirma. “Enquanto a criança que está na escola particular muitas vezes é alfabetizada na pré-escola. Se retardamos a alfabetização, só aumentamos a desigualdade educacional. Sanar essa lacuna é muito difícil. Na idade em que ela mais está motivada para aprender, não ensinamos.”
Investimento desproporcional
Quando promete apostar no ensino básico, Jair Bolsonaro vai encarar um problema grave: quando se trata de ensino superior, o Brasil investe como se fosse uma nação europeia. Se o assunto é ensino básico, o Brasil é um dos últimos do ranking dos países-membros da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
Os dados são do estudo “Um Olhar sobre a Educação”, publicado pela entidade. O Brasil investe US$ 3.762, por aluno, por ano, no primeiro ciclo do ensino fundamental. É menos de metade da média dos países da OCDE, de US$ 8.631. E quase um quarto do que o valor que o Brasil investe em cada estudante universitário por ano: US$ 14.261, muito mais próximo da média da OCDE, de US$ 15.656. Essa distorção ajuda a explicar por que o analfabetismo continua sendo um problema, apesar de o Brasil investir, no total, 6% de seu Produto Interno Bruto (PIB) em educação – mais do que a média da OCDE, de 5,5%: proporcionalmente, mais dinheiro vai para o ensino superior e menos para a educação básica.
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Quando se trata de ensino superior, nosso país investe mais do que Itália, Portugal e Espanha. A falta de investimentos é sentida, por exemplo, no salário dos profissionais: segundo o estudo da OCDE, o salário inicial dos professores de pré-escola do Brasil representa menos que a metade da média dos valores pagos pelos países da organização.
A menor quantidade de recursos também tem impacto na oferta de creches. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, 2,6 milhões de crianças brasileiras com menos de 4 anos estavam fora de creches ou escolas, o equivalente a 25,6% do total.
O acesso a esse tipo de suporte, que insere a criança no ambiente escolar mais cedo, é maior nas classes mais altas: em famílias sem rendimento, até menos de um quarto do salário mínimo, 61,5% das crianças menores de quatro anos ficam em casa. Entre as famílias com rendimento domiciliar per capita acima de 3 salários mínimos, baixa para 54,4%. As desigualdades regionais ainda são enormes: no Nordeste, 14,8% das pessoas são analfabetas, contra 3,6% no Sul e 3,8% no Sudeste.
Resultados expressivos
Caso o atual governo consiga reverter esse quadro, o impacto social será enorme. James Heckman, professor da Universidade de Chicago e vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 2000, fez as contas: o dinheiro investido em educação infantil promove economia sete vezes maior para o estado.
É o valor economizado em saúde, segurança e assistência social. Saúde? Sim. O pesquisador concluiu que quem tem maior acesso a educação tem menores riscos de desenvolver problemas cardiovasculares e metabólicas, como enfartos e diabetes. O dado comprova que reduzir o analfabetismo é uma excelente estratégia de redução das desigualdades.