A região central de Curitiba teve uma manhã atribulada no dia 15 de agosto de 2017, devido a um confronto de manifestantes em frente à Câmara dos Vereadores. O tumulto foi protagonizado por grupos favoráveis e contrários ao projeto de lei que pretende instituir diretrizes preconizadas pelo Programa Escola Sem Partido (PESP) na rede municipal de educação. Houve troca de xingamentos e faixas foram incendiadas. Os soldados da Polícia Militar precisaram intervir para acalmar os ânimos. A proposta, elaborada pelos vereadores Ezequias Barros (PRP), Osias Moraes (PRB) e Thiago Ferro (PSDB), visava coibir doutrinação política e ideológica em instituições de Ensino Fundamental e Médio.
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A polêmica vivida na capital paranaense não é um fato isolado. Os projetos alicerçados no PESP se proliferaram pelo país nos últimos anos e representam um dos temas mais controversos do setor educacional brasileiro. Em Guarulhos (SP), por exemplo, os debates terminaram em briga e deixaram militantes feridos. Também houve confusão nas plenárias de Araraquara (SP), São João do Meriti (RJ) e São Paulo.
O assunto, na prática, pode ser apontado como fruto da intensa polarização política que se instalou no país ao longo da década. Entretanto, o tema começou a surgir bem antes de essa divisão se tornar tão evidente.
Antídoto à doutrinação
Vale ressaltar a diferença entre o PESP e o movimento Escola Sem Partido (ESP). O primeiro derivou do segundo. Fundado em 2004, o ESP se apresenta como um coletivo de pais e estudantes preocupados com possíveis influências ideológicas sofridas por jovens em sala de aula.
“O movimento é uma reação a duas práticas ilegais que se disseminaram por todo o sistema educacional”, afirma o advogado Miguel Nagib, procurador de São Paulo e fundador do ESP. Os pretensos crimes destacados por Nagib seriam a instrumentalização do ensino para fins político-partidários e um fenômeno que ele classifica como usurpação do direito dos pais sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos.
A origem da problemática combatida pelo ESP estaria em uma prevalência de professores identificados com ideologias de esquerda – como o socialismo e o comunismo. Os docentes, segundo o movimento, utilizariam sua posição para influenciar o pensamento dos alunos a partir de suas próprias crenças políticas.
“Eles se aproveitam da audiência cativa para tentar transformar os estudantes em réplicas ideológicas de si mesmos”, diz Nagib. Essa doutrinação levaria muitos jovens a questionar e rejeitar o direcionamento estabelecido por seus pais no campo da religião, da moral e dos costumes, criando graves conflitos no seio das famílias.
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O ESP se dedica a catalogar possíveis provas dessa propaganda ideológica, incluindo materiais didáticos, vídeos de professores em sala de aula e testemunhos de pais e alunos. O movimento é contrário, por exemplo, à abordagem da Educação Sexual e ao ensino da chamada ideologia de gênero nas escolas, além de criticar posicionamentos que possam atentar à moral cristã.
Esse combate passou praticamente despercebido até 2014, quando o deputado estadual Flavio Bolsonaro (PSC-RJ) apresentou um projeto de lei inspirado pelas ideias do coletivo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. A proposição, elaborada com base em um anteprojeto encomendado por Bolsonaro a Miguel Nagib, colocou o ESP sob os holofotes e ajudou a divulgar os valores do grupo.
Crescimento nacional
O projeto ganhou corpo nos anos seguintes e tornou-se o PESP. A principal medida sugerida é a obrigatoriedade da afixação de um cartaz em salas de aula do ensino fundamental e médio, contendo seis diretrizes descritas como “Deveres do Professor”. Dentre elas, consta não favorecer nem prejudicar ou constranger os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, nem promover seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.
A consolidação do PESP desencadeou o aparecimento de uma série de projetos de lei em níveis municipal, estadual e federal. Eram 62 em agosto de 2017, de acordo com um levantamento realizado pelo portal De Olho nos Planos – dedicado a acompanhar as propostas políticas no campo da educação. Já o mapa criado pelo grupo Professores Contra o Escola Sem Partido (PCESP), que se posiciona como uma reação ao crescimento do PESP, contabiliza 124 projetos em prefeituras, 24 em estados e 12 em instâncias federais. No último caso, a petição mais adiantada é a do PL 7180/2014, de autoria do deputado federal Erivelton Santana (PSC-BA).
Todas essas proposições têm pautas semelhantes, como a proibição de discussões sobre questões de gênero nas escolas, em materiais didáticos e em textos legais, e a imposição de limites ao discurso e à atuação de professores em sala de aula. Em geral, a tramitação encontra obstáculos. Os textos são barrados em comissões de análise, sob a alegação de inconstitucionalidade. Ainda assim, alguns deles resistiram a esses filtros. A primeira localidade a encampar o programa foi Santa Cruz do Monte Castelo (PR), em 2014. Os municípios de Campo Grande (MS), Picuí (PB) e Jundiaí (SP) também aprovaram moções desse tipo.
Em nível estadual, o episódio mais conhecido é o de Alagoas. O projeto, batizado como “Escola Livre”, recebeu aprovação por parte da Assembleia Legislativa em abril 2016, mas foi vetado pelo governador Renan Filho (PMDB). A própria Assembleia, por sua vez, derrubou o veto e autorizou a medida. Apresentado pelo deputado Ricardo Nezinho (PMDB), o texto prevê uma postura mais neutra dos professores em questões políticas, ideológicas e religiosas.
Em clima de protesto, docentes de várias partes do país classificaram a proposta como uma “lei da mordaça”. Uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) levou o caso alagoano para o Supremo Tribunal Federal (STF). A Advocacia-Geral da União (AGU) foi consultada no processo e classificou a medida como inconstitucional, pois alteraria a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) – de competência restrita à União. Em março de 2017, o ministro do STF Luís Roberto Barroso suspendeu liminarmente os efeitos da lei alagoana.
As disputas jurídicas e os embates entre militantes têm colocado lenha na fogueira do debate em torno do PESP. Os simpatizantes da ideia, por exemplo, acreditam que a doutrinação não se limita ao ensino básico e também é uma realidade no cotidiano das universidades. “Existem inúmeros grupos de militantes partidários que operam livremente na faculdade. Em geral, eles integram células auxiliares do PT, como o PSOL e o PCdoB", aponta Rodrigo Jungmann, professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Em defesa do pensamento crítico
Integrantes do Professores Contra o Escola Sem Partido contestam a abordagem proposta pelo movimento liderado por Miguel Nagib. Segundo o grupo, a pretensa militância político-partidária perseguida pelo ESP se resume a meras discussões escolares cotidianas.
“O que eles colocam como doutrinação é uma categoria elástica que se adapta a qualquer situação escolar que o movimento entenda ser problemática”, afirmam os professores de História Diogo Salles, Fernanda Moura e Renata Aquino, porta-vozes do coletivo. A ação nasceu como uma página no Facebook, criada em 2016 para mostrar o avanço das leis inspiradas no programa.
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), uma rede de organizações dedicadas a promover a qualidade do ensino no país, também é contrária às diretrizes do Escola Sem Partido. “Eles partem do pressuposto de que a educação pode ser estritamente técnica. Mas as Ciências Humanas, por exemplo, surgem de diálogo e de debates”, defende Andressa Pellanda, assessora de projetos da CNDE. O PESP, de acordo com ela, considera os alunos como incapazes de criticar, debater e produzir conhecimento.
Assim, a afirmação de que os estudantes só se engajam politicamente quando professores os manipulam ignoraria a existência de demandas e questões advindas dos próprios discentes. Ela defende, ainda, a implementação de um ensino emancipatório. Ou seja, uma educação voltada à prática da liberdade e estruturada para conceder autonomia de pensamento ao estudante.
Nesse modelo, o debate é uma ferramenta imprescindível. “O que o Escola Sem Partido quer dizer com doutrinação? O que podemos querer de uma educação que não passe por debates?”, questiona. Para ela, o alegado temor serviria apenas para estabelecer um processo de retirada do pensamento crítico, da problematização e da possibilidade de se democratizar a escola.
Já o PCESP coloca em xeque a postura neutra dos professores pedida pelo programa. “Como deve agir um professor em caso de homofobia ou machismo em sala de aula?”, indagam os porta-vozes. “A imparcialidade se tornaria sinônimo para indiferença e naturalizaria desigualdades sociais.” Os grupos contrários ao Escola Sem Partido acreditam que a escola é um produto da sociedade. Dessa forma, o próprio tema da igualdade de gênero não poderia ficar fora dos debates, pois é uma realidade presente em diversos âmbitos da vida cotidiana.
Essa rigidez poderia resultar em um clima de censura dentro das salas de aula. “Os professores ficariam com medo de exercer a profissão e de serem denunciados e levados a níveis judiciais em razão do seu próprio ensino”, ressalta Andressa. A celeuma em relação ao Escola Sem Partido parece longe de terminar. Ao estabelecer posicionamentos tão distintos, o tema deve ser pivô de alguns dos debates mais acalorados do processo eleitoral que tomará as atenções do país nos próximos meses.
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