A pandemia causou um prejuízo incalculável à educação no Brasil. Para especialistas procurados pela Gazeta do Povo, não há outra saída: é preciso que o Ministério da Educação (MEC) assuma seu papel de protagonista e articulador nacional, abandone o rótulo de incipiente e enfrente os desafios de 2021 com mais agilidade.
E os dilemas não são poucos: a volta às aulas com segurança, a recuperação dos conteúdos perdidos durante a pandemia, orçamento apertado, a implementação do Fundeb, entre outros. Além disso, Milton Ribeiro, titular da pasta, terá de enfrentar problemas ideológicos e políticos sendo, ainda, alvo de um inquérito do STF que apura suposto crime de homofobia da sua parte.
Entenda, abaixo, o que deve pautar a educação este ano:
1. Volta às aulas
O retorno às aulas, de forma segura e planejada, é o primeiro e principal desafio posto à Educação mundo afora. No Brasil, um dos poucos países que manteve as escolas fechadas por mais tempo, segundo relatório da Unesco, a missão pode ser ainda mais desafiadora, principalmente porque a educação não parece ser prioridade para políticos e outros representantes da sociedade civil. Nesse sentido, o MEC tem tentado criar um cenário de aceitação da volta às aulas, com segurança sanitária, mas ainda parece faltar muito para que as boas intenções saiam do papel.
No último ano, a equipe do MEC determinou, por meio de Portaria, que a rede federal de ensino (educação básica e ensino superior) retomasse as atividades presenciais já em janeiro - decisão que provocou ampla reação negativa. Pressionado, o governo acabou recuando. A última previsão de retorno às aulas presenciais nessas instituições é para 1º de março. No vácuo dessa decisão, a maior parte dos representantes de escolas e universidades do país - tanto da rede pública, quanto privada - se mostrou favorável à volta das aulas "na maior brevidade possível". A maior parte dos estados prevê voltar as aulas de forma híbrida nas próximas semanas, mas 13 deles ainda não têm data para retorno.
Na contramão do movimento mundial pela volta às atividades presenciais, sindicatos de professores brasileiros afirmam que as escolas públicas não teriam condições de adotar as medidas sanitárias mínimas necessárias para o retorno. Para os sindicalistas, conseguir imunizar toda a população seria o cenário essencial para a retomada.
Não é nessa linha que vai a comunidade científica, que afirma, com base em evidências, que há segurança para crianças e outros alunos voltarem às atividades escolares. Interlocutores esperam do MEC uma postura de articulação e diretrizes claras, ainda que isso custe desagradar sindicatos e outros grupos.
2. Reflexos da pandemia na educação
Um dos desafios com a volta às aulas é recuperar o tempo de aprendizagem perdido, em especial para as crianças em período de alfabetização.
No diagnóstico de especialistas, o fechamento das instituições de ensino por tempo prolongado deve desembocar em problemas como evasão escolar, queda do desempenho dos estudantes e promete, ainda, acentuar desigualdades educacionais já existentes. Levantamentos de órgãos importantes como Unesco indicam tendência de pelo menos 40% dos alunos entre 15 e 17 anos de todo o mundo abandonarem a escola.
De início, medida basilar apontada por especialistas são as avaliações diagnósticas, capazes de identificar lacunas de aprendizagem entre os estudantes. Apenas assim gestores poderão dispor de ferramentas para sua recuperação pedagógica. Sua morosidade ou não realização pode aumentar significativamente gargalos já presentes na educação. Ajustes como esses serão feitos em estados e municípios, mas, em última instância, gestores dependem de uma orientação maior do MEC.
"A volta às aulas demanda uma avaliação diagnóstica para saber onde está cada turma e quais alunos vão precisar de atenção especial. Países com mais recursos já organizaram planos de monitoria - mais ou menos o que chamaríamos de uma aula particular - para focalizar bem as dificuldades de um aluno ou de um grupo pequeno", afirma Guiomar Namo de Mello, doutora em educação pela PUC-SP.
Ela lembra que "escolas particulares podem fazer e, de fato, algumas estão preparadas para isso", ao passo que sistemas públicos, em sua maioria, podem não possuir recursos para tal. Medidas como a adotada pelo estado de São Paulo, com a contratação de estagiários de pedagogia para realizar a tarefa, poderiam ser reproduzidas país afora. "A recuperação dos alunos deveria ser o foco neste primeiro semestre, após o acolhimento e o diagnóstico - inclusive de crianças que precisam de atendimento no que diz respeito à parte social e emocional", diz a especialista.
Uma readequação curricular também é necessária. No último ano, uma das medidas aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) foi a possibilidade de fusão dos currículos de 2020 e 2021. Mas muitos dos especialistas apontam para a necessidade de uma maior flexibilização das propostas curriculares. Tudo isso também deve ser feito sob as condições de carga horária impostas por órgãos superiores, como o CNE.
Para Guiomar, "um plano bem feito de recuperação, com foco nas competências essenciais e nos conteúdos correspondentes, não precisa, necessariamente, ser feito em seis meses ou um ano".
"O bom gestor curricular saberá rever os conteúdos previstos e redistribuir o que se perdeu este ano de modo a ser recuperado em um, talvez dois anos. Depende dos espaços, tempos e recursos docentes disponíveis", explica. "Um currículo que busca equidade não é traçado na pedra de modo que um conteúdo tem de ser dado num tempo rígido. É perfeitamente possível recuperar a perda de um ano com qualidade se ela for diluída em dois anos, e todo o conteúdo redistribuído".
A especialista lembra, contudo, que isso é particularmente verdadeiro para alunos que estão no início da escolarização. "Desde que exista uma boa coordenação curricular vertical na passagem das séries", diz. Mas isso não se dá da mesma forma com relação aos estudantes do ensino médio. "Para esses alunos que vieram do segundo para o terceiro ano do médio o tempo é pouco e é preciso pensar em outras estratégias".
3. Repensar o modelo educacional, tornar o ensino híbrido uma realidade
Incorporar tecnologia na educação já não é mais uma opção acessória. É preciso, de forma planejada e estruturada, tornar o ensino híbrido uma realidade concreta no país, repensando algumas práticas de educação. Esse é um dos principais apontamentos de especialistas. Estratégias disruptivas, mas enxutas e práticas, como as adotadas pela Finlândia, podem ser estudadas e adaptadas para o cenário brasileiro.
"A educação agora e daqui em diante vai ser diferente. Não temos clareza completa dessa diferença, mas uma coisa é certa: a tecnologia veio para ficar", aponta Guiomar de Mello.
Especialistas alertam, no entanto, para o perigo de se acreditar nas chamadas TICs - Tecnologias da Informação e Comunicação - como panaceia na educação. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de 2015 intitulado Students, Computers and Learning: Making the Connection não apenas questiona o valor das TICs como indutor de desempenho acadêmico dos alunos, mas chega a responsabilizar as ferramentas pelo baixo desempenho dos estudantes obtidos em testes como o Pisa.
No documento, a organização relaciona os baixos resultados no exame de países como Emirados Árabes Unidos, Chile, Brasil e Colômbia ao número de horas de exposição dos alunos às TICs.
É preciso, portanto, que professores aprendam a empregar a tecnologia com um sentido pedagógico claro e definido. Para Guiomar, isso deve ter como referência a BNCC e seus objetos de conhecimento, competências e habilidades. "Cada competência geral da BNCC traz nela mesma uma competência e uma demanda para aplicá-la para intervir na realidade. Esse "para que' serve cada competências remete às práticas da vida social e pessoal, da cidadania e da qualidade da própria vida e da vida do planeta. A BNCC é completa nesse sentido", diz ela.
"A modelagem que será mais frequente é a do ensino híbrido que não significa colocar um vídeo para os alunos assistirem, nem um texto para leitura conjunta de professor online cada um no seu canto".
Ainda de acordo com a especialista, o ensino híbrido diz respeito a uma mudança na própria cultura didática e pedagógica. "Ele exige ser usado com misto de online e presencial, empregando nesse processo uma pedagogia ativa, na qual a participação do aluno não seja apenas a de apertar um botão, mas de fazer alguma coisa, se possível fazer fisicamente um objeto ou a representação física de um conceito; resolver um problema, levantar uma hipótese e testá-la, produzir um texto, uma peça teatral, um infográfico de ciências. E depois, apresentar, discutir com os colegas, construir colaborativamente", explica.
"Sem uma pedagogia que inclua o aluno como autor de sua aprendizagem, o ensino híbrido perde seu maior significado", aponta Guiomar.
Segundo informações da Secretaria de Educação Básica (Seb), das mais de 184 mil escolas de educação básica do país, apenas 124 mil possuem acesso à internet, contempladas pelo programa Educação Conectada. Em evento do TCU, o ministro Milton Ribeiro chegou a comentar sobre a possibilidade de distribuir tablets para alunos da rede pública de ensino e digitalizar livros didáticos. O MEC estuda, para um "futuro próximo", um possível projeto-piloto por meio do qual a pasta poderia fornecer a ferramenta para algumas instituições.
Apesar do louvor às ferramentas digitais, Ribeiro reconheceu, mais tarde, que é preciso ser cuidadoso com a tecnologia, lembrando que o uso das chamadas TICs na educação, como apontam as evidências disponíveis, é, em regra, ineficaz para melhorar habilidades básicas para o sucesso acadêmico, como a capacidade de ler, escrever, calcular etc.
4. MEC mais articulador
Uma das maiores queixas na Educação em 2020 foi a ausência do MEC como articulador de uma estratégia nacional para conter os reflexos da pandemia na área. O ministério foi amplamente cobrado para criar e coordenar protocolos de ação e, em especial, de retorno às atividades escolares.
Repetidamente, Ribeiro defendeu que, embora os entes subnacionais aguardassem por uma diretriz, a gestão era responsabilidade de estados e municípios: "não podemos nos intrometer". Por essa e outras declarações e ações, o ministro foi considerado como "decorativo" por alguns dos seus críticos. Embora nos bastidores o clima tenha sido de trabalho ativo por parte da secretaria de Alfabetização e a secretaria de Educação Básica.
Ainda que o STF tenha incumbido estados e municípios dessa responsabilidade, o ministério poderia, e deveria, segundo o modelo federativo e o regime de colaboração, ter coordenado uma resposta educacional à Covid-19. Esta mesma Gazeta discorreu sobre o tema, ouvindo especialistas, em matéria disponível neste link.
Desde 1988, a gestão da educação no país funciona sob o chamado Regime de Colaboração, previsto no ordenamento jurídico brasileiro. Isso é, sob o escopo do modelo federativo, são distribuídas competências e responsabilidades entre os entes, numa espécie de descentralização articulada, na qual eles possuem, ao mesmo tempo, autonomia e interdependência, uma vez que devem estar submetidos à diretriz geral da educação.
"A ausência do MEC prejudicou bastante a velocidade da resposta para garantir alguma aprendizagem remota e pulverizou o processo decisório de retorno às aulas", aponta Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV. "Enquanto isso, Consed e Undime tiveram um papel protagonista muito importante, pois criaram redes de colaboração entre secretários, e conversaram com o CNE, que baixou diretrizes que acabaram saindo e homologadas pelo ministro".
2021 promete não ser diferente neste sentido, e as circunstâncias apertam o cerco ao ministro e à pasta, vistos por alguns especialistas como amadores na gestão da educação. Mais do que antes, o governo federal deve ser cobrado para assumir um papel articulador na Educação, um que dê conta de lidar com os novos desafios impostos pela pandemia.
"Nessa gestão, algumas coisas aconteceram, apesar do ministro, pessoalmente, ter dito que não era papel do MEC. Na prática, a equipe, que é profissionalizada, razoavelmente sólida, tecnicamente, de alguma maneira, lidou com isso", diz Claudia. "Mesmo assim, é importante que a gente observe que a culpa não é só do MEC, ficamos um ano letivo praticamente fora da escola".
Uma outra estratégia necessária ao MEC, com o intuito de não criar mais gargalos na coordenação das ações, é a de não "queimar pontes", como, segundo fontes com trânsito na pasta, afirmam ter ocorrido, por exemplo, no início da implementação de políticas tais como a Política Nacional de Alfabetização (PNA). Um diálogo mais aberto com entes subnacionais e representantes da educação pode acelerar a implementação da políticas nas pontas.
Somado aos desafios da pandemia, Ribeiro encara, neste ano, um inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) que apura suposto crime de homofobia da sua parte. Para fontes ouvidas pela reportagem, o processo pode gerar desgaste à pasta e dificultar a atuação do ministério. Em última instância, o cenário apontado é a própria queda do ministro, como ocorreu com Abraham Weintraub.
5. Desafio orçamentário
O MEC inicia o ano com uma redução de pelo menos 18,2% em seu orçamento de despesas discricionárias. Isso significa uma perda de cerca de R$ 4,2 bilhões. Ter menos recursos em um cenário pós-pandemia, sob um novo modelo de educação, que demanda investimento, e com várias consequências, pode dificultar a atuação do ministério, apontam interlocutores.
Nas universidades, a redução pode ficar na cifra de R$ 1 bilhão, em verbas discricionárias. O recurso, chamado não obrigatório, é utilizado para custear, por exemplo, água, luz, telefone, serviços de limpeza, segurança e manutenção, material de trabalho, investimento em obras. "O presidente solicitou minha ajuda para acabar com a corrupção nas pontas [estados e municípios]. Damos muito dinheiro [...] estamos com a água no pescoço em termos de orçamento", disse Ribeiro no último ano, já prevendo um agravamento da situação fiscal.
O Brasil está entre as nações que mais investem em educação. Enquanto aqui 6% do PIB é direcionado à área, países da OCDE destinam, em média, cerca de 5,5% à educação. Quando se olha para os resultados no Pisa, no entanto, figuramos nas últimas colocações.
Verifica-se uma baixa relação entre gasto e desempenho. Isso significa, por exemplo, que o argumento de que a escassez seria a principal razão histórica para o atraso educacional no Brasil não é totalmente verdadeira. Por razões como essa, a redução no orçamento não preocupa parte dos especialistas, que acreditam ser possível "fazer muito com pouco".
6. Tornar o Fundeb eficaz/normatização
Tornar o Fundeb parte da Constituição foi meta apertada em 2020. Mesmo com o fim da vigência do fundo anunciada, o tema foi debatido com atraso e morosidade no Congresso. Às pressas, no fim do ano, e sem a discussão apontada como adequada por especialistas, um novo modelo de Fundeb, com maior aporte da União e outros critérios, foi aprovado no Parlamento.
Sem vetos, Bolsonaro sancionou, em 25 de dezembro, as novas regras para a distribuição dos recursos. No primeiro trimestre de 2021, o fundo ainda será rateados pelos critérios do antigo modelo. O novo Fundeb começa a valer apenas a partir de abril.
Apenas aprovar o Fundo, contudo, não é suficiente. Além do próprio detalhamento infralegal, normatização, outras ações são necessárias para garantir que os recursos sejam eficazes. A partir deste ano, será importante o papel do MEC e autarquias a ele ligadas, como o FNDE, no sentido de aprimorar e preservar critérios de repasse. "O MEC esteve ausente das discussões do Fundeb quase que o tempo todo. Só no fim que ele entrou mais na discussão, e houve saldo positivo, saiu aprovado", diz Claudia. "Mas concluir isso e começar a implementar o processo do Fundeb permanente vai ser importante este ano".
Em 2019, auditorias da Controladoria Geral da União (CGU) apontaram que muitos municípios, em especial das regiões Norte e Nordeste, estariam utilizando as verbas de maneira irregular. Compete ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia ligada ao MEC, o monitoramento da aplicação e execução dos recursos.
Apenas o estado de São Paulo, segundo informações do TCU, é suspeito de ter desviado, em 2018, mais de R$ 3 milhões oriundos do Fundeb. Outro ente investigado pelo Tribunal, mas neste caso com relação ao uso de verbas do antigo Fundef, é o município de Euclides da Cunha, na Bahia. Ele é suspeito de ter utilizado mais de R$ 14 milhões cedidos pelo fundo para pagamento de honorários advocatícios.
7. Novo Ensino Médio e BNCC
Não menos importante, a continuação da implementação do novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) país afora é tema apontado pelas especialistas.
Em 2022, todas as escolas deverão ter implementado o novo Ensino Médio. A previsão é a de que este ano, 16 unidades da federação implementem o currículo. São Paulo é o primeiro estado a migrar para a nova proposta: um currículo de ensino médio com 12 opções de cursos para os alunos. Os itinerários formativos, elaborados pelos estados, permitirão aos alunos optar por disciplinas com as quais mais se identifiquem.
"Em 2021, vamos ter o começo da implementação do Novo Ensino Médio com os itinerários formativos, e aí entra a questão do ensino técnico e profissional. Poderemos olhar para a profissionalização de duas maneiras: uma via o próprio itinerário formativo e outro, fazendo como São Paulo, com a possibilidade de termos matérias profissionalizantes. O fato de o ensino médio profissionalizante ter entrado na educação básica ajudou bastante, isso é positivo pra 2021", Claudia Costin.
Organizações representativas da educação apontam um cenário ideal: uma definição, em articulação com o Ministério da Educação (MEC), de um cronograma nacional de implementação. De acordo com levantamento do Movimento pela Base, mais de 15 referenciais curriculares do Ensino Médio já foram entregues para aprovação dos respectivos Conselhos.
A total implementação da Base - em que pese considerada por muitos especialistas como um documento deficitário - é fundamental para o avanço de reformas estruturantes na educação do país. Dados do Movimento pela Base também indicam, até agora, um total de 4.560 municípios com currículos homologados e alinhados à BNCC; restam 58 municípios que ainda não iniciaram o processo.
"Neste ano, esperamos conseguir terminar a implementação da Base, que, embora não seja perfeita, pode nos ajudar muito, dando um norte claro", diz Claudia.
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