A nomeação de reitores das universidades públicas federais tem sido motivo de grande embate entre o governo federal e parte da comunidade acadêmica – especialmente professores e servidores públicos que são contrários às escolhas de Jair Bolsonaro (sem partido) para o cargo máximo das instituições federais de ensino superior.
Atualmente, conforme a legislação que trata do processo de seleção dos dirigentes universitários, o presidente da República tem a atribuição de escolher um dos três nomes enviados por um colegiado máximo da instituição de ensino – um grupo pequeno, composto por, pelo menos, 70% de professores, mas que pode incluir servidores e alunos.
Antes da definição da lista tríplice, entretanto, as instituições costumam realizar uma consulta prévia à comunidade universitária, ainda que isso não seja um procedimento obrigatório para a definição do reitor. Na prática, muitas vezes essas consultas se traduzem em verdadeiras “eleições”, cujo resultado determina quem, de fato, será o próximo dirigente. Além de possuírem vícios – como contabilizar 1/3 de peso do voto para cada um dos grupos (professores, funcionários e alunos), enquanto a legislação determina o peso de 70% para os docentes –, há casos de sindicatos e Diretórios Centrais de Estudantes (DCE) que se mobilizam para comandarem essas “eleições” e definirem os reitores mais alinhados aos seus interesses.
Definida a lista, há uma tradição informal – também não prevista por lei – que vigora desde a aprovação da Lei 9.192/1995 (responsável por regulamentar o processo de escolha dos dirigentes universitários) – de o presidente da República escolher sempre o primeiro nome da lista tríplice enviada pelas instituições.
Essa tradição, entretanto, foi quebrada no ano passado. Uma das bandeiras de campanha do atual presidente era fazer mudanças na forma como ocorriam as nomeações; Bolsonaro afirmava que as universidades eram “redutos de esquerdistas” e que grupos ideológicos controlavam as instituições de ensino.
Apesar de, entre as 30 nomeações feitas desde o início do mandato presidencial até agora, Bolsonaro ter nomeado reitores que não figuravam na primeira posição da lista em 12 oportunidades, de acordo com levantamento feito pela Gazeta do Povo, o presidente não tem delimitado um padrão rígido para as nomeações. Há nomes escolhidos que se posicionam politicamente à esquerda e à direita e, em alguns casos, são selecionados dirigentes que buscam afastar-se de vinculações políticas e ideológicas.
Mesmo assim, parte da comunidade acadêmica em conjunto com entidades como a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) tem se posicionado de forma mais incisiva contra as nomeações feitas pelo atual presidente da República.
De acordo com o jurista e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Serrano, é saudável que sejam feitas nomeações de reitores que não sejam alinhados com o governo. “Um governo demonstra ser mais democrático e mais aberto quando se preocupa mais com a qualidade pedagógica, de ensino, do que com gente alinhada com ele”, declara.
O jurista também aponta a importância de preservar a autonomia das universidades, por meio da definição da lista tríplice pelo colegiado, e ao mesmo tempo manter a discricionariedade do governo federal, o que permite ao chefe do Executivo escolher um dos nomes apresentados. “A Constituição garante a autonomia das universidades. Não é independência, é autonomia. Isso significa que quem representa a universidade é o conselho. Então, cabe ao presidente escolher um dos integrantes dessa lista, não necessariamente sendo o primeiro”, explica.
Ação no STF questiona atual procedimento de nomeação de reitores
Para limitar os poderes de Bolsonaro quanto à definição dos reitores, o Partido Verde (PV) ajuizou, em 21 de setembro deste ano, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.565 no Supremo Tribunal Federal (STF) – o principal alvo da ação é a Lei 9.192/1995.
A intenção do partido, com o ajuizamento da ADI, é questionar o atual procedimento de escolha e nomeação de reitores das universidades federais e demais instituições federais de ensino superior, e para isso alega que se trata de uma violação à “autonomia universitária”.
No entendimento da sigla, o fato de o presidente da República poder escolher qualquer um dos três nomes enviados pelos Conselhos Universitários das instituições de ensino é anticonstitucional, já que estaria em desacordo com os artigos 206 e 207 da Constituição Federal e com os princípios da impessoalidade e da moralidade pública, presentes no artigo 37.
Na prática, o objetivo é vetar interferências externas às universidades nessas nomeações. Em um trecho da ADI 6.565, consta: “Estamos a tratar de sombrio período de nossa história republicana, na qual se nomeavam interventores aliados ao regime central, para amordaçar a liberdade de expressão, as liberdades civis e a ampla manifestação de pensamento, inclusive o pensamento científico”.
A ação, que começou a ser julgada de forma virtual pelo STF em 9 de outubro, foi suspensa na última sexta-feira (15), após o pedido de destaque feito pelo ministro Gilmar Mendes. Com isso, a pauta foi retirada do julgamento virtual e será realizada de forma presencial, ainda sem data determinada.
Curiosamente, desde que que a legislação que norteia a escolha dos dirigentes universitários começou a vigorar - há 25 anos -, não havia ocorrido resistência significativa a ela, já que seu objetivo é trazer equilíbrio à autonomia das universidades por meio da discricionariedade do presidente da República. A oposição à lei surge num momento em que as diferenças ideológicas entre segmentos da comunidade acadêmica e o governo federal passam a ser mais acentuadas.
Bolsonaro e o choque com parte da comunidade acadêmica
Durante sua campanha eleitoral em 2018, o então candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, apresentou um forte discurso contra a esquerda (principalmente contra o PT, PSOL e o PCdoB) e de aversão ao marxismo. Na época, Bolsonaro já afirmava que as reitorias estavam dominadas por partidos políticos com mais poder de persuasão nas “eleições acadêmicas” e nas decisões do conselho universitário. Por isso, frisava que era necessário garantir a alternância de poder por meio da escolha de um nome diferente do grupo da reitoria ou de chapas que dominam as universidades por anos.
Do discurso para a prática, quando Bolsonaro assumiu a presidência, teria um cenário favorável pela frente: durante seu mandato, todas as 67 universidades federais brasileiras teriam eleições para reitor, o que poderia concretizar uma de suas promessas de campanha, proporcionando alternância de poder nas instituições.
No dia 18 de junho de 2019, com a nomeação de Luiz Fernando Resende dos Santos Anjo para a reitoria da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM), o presidente quebrou uma tradição que se mantinha desde 1995 e nomeou o segundo indicado na lista tríplice. O candidato indicado na primeira posição já havia sido filiado ao PT e, mais recentemente, ao PSOL.
Essa havia sido a terceira nomeação de dirigentes universitários por parte do presidente; nas duas anteriores, Bolsonaro havia escolhido o primeiro nome da lista: José Daniel Diniz Melo (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN) e Demetrius David da Silva (Universidade Federal de Viçosa - UFV).
Conforme levantamento da Gazeta do Povo referente às 30 nomeações de reitores feita desde que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, em 60% das vezes o presidente escolheu o primeiro indicado da lista tríplice – por outro lado, em 6,7% das ocasiões selecionou o 2º colocado e em 30% optou pelo 3º nome. Há, ainda, quatro situações em que Bolsonaro nomeou temporariamente reitores que não constavam nas listas, como é o caso da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em que o processo foi suspenso pela Justiça após o Ministério Público Federal de Mato Grosso do Sul detectar falhas nos procedimentos que definiram a lista tríplice.
Como foram as nomeações dos reitores em 2019
Durante o ano de 2019, Bolsonaro nomeou 16 reitores; desses, dez figuravam no primeiro lugar da lista tríplice. De todos os dirigentes escolhidos no primeiro ano de mandato do presidente, três tinham claro posicionamento à esquerda e dois se posicionavam politicamente à direita. O restante adotava uma posição mais neutra e não possuía vínculos com siglas partidárias.
No entanto, Bolsonaro nomeou dois reitores que figuravam na segunda colocação da lista e três que constavam na terceira posição – situações que irritaram grupos de esquerda nas instituições de ensino.
Um desses casos ocorreu em agosto de 2019 na Universidade Federal do Ceará (UFC) após a nomeação de José Cândido Lustosa Bittencourt de Albuquerque para o cargo de reitor. Ele era o segundo da lista indicada pelo Conselho Universitário e o menos votado na consulta pública. Além disso, dos três, era o que tinha maior afinidade com pautas defendidas pelo governo.
Depois da posse de Albuquerque, houve protestos na universidade organizados pelos sindicatos dos Docentes das Universidades Federais do Estado do Ceará (Adufc) e dos Trabalhadores das Universidades Federais no Estado do Ceará (Sintufce), com a participação de um grande número de alunos da instituição. Na manifestação havia bandeiras do movimento “Lula Livre”, da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Outra nomeação que desagradou grupos de esquerda foi a de Marcelo Recktenvald, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Ele, terceiro nome da lista, era apoiador do governo Bolsonaro. Recktenvald é pastor e em seu Twitter se declara conservador. Desde sua nomeação, o reitor passou a conviver com pressões intensas relacionadas à insatisfação de parte da comunidade acadêmica por sua escolha. Logo após ser empossado, estudantes e sindicatos de professores e servidores ocuparam a reitoria por três semanas e impediram-no de entrar. Recktenvald precisou montar um escritório provisório para trabalhar e só houve a desocupação da reitoria após intervenção judicial.
Houve, no entanto, nomeações de dirigentes alinhados politicamente à esquerda, inclusive vinculados a partidos políticos. Esse é o caso de Fábio Josué Souza dos Santos, da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), que é filiado ao PT há mais de 20 anos e, inclusive, já foi vereador pelo partido de 2005 a 2008. No caso que envolveu sua nomeação, a lista enviada ao governo contou com dois nomes "laranjas", ligados à chapa de Georgina Gonçalves dos Santos, candidata vencedora nas eleições informais.
Na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o reitor nomeado foi Alfredo Macedo Gomes, que ocupava a primeira posição da lista. Na época da nomeação, integrantes do PSL afirmaram que Gomes teria ligações com partidos de esquerda, como o PT e o PCdoB, que era favorável ao movimento “Lula Livre”, e que teria sido apoiado por grupos de esquerda para o cargo de reitor.
Ainda em 2019, na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Bolsonaro nomeou Natalino Salgado Filho, que tem relacionamento próximo com Fernando Haddad, candidato do PT nas eleições presidenciais de 2018 - naquele ano, inclusive, apoiou abertamente o petista contra Bolsonaro. Além disso, seu irmão – prefeito de Pindaré Mirim (MA) – é filiado ao PCdoB, partido do governador do Maranhão Flávio Dino, crítico do presidente da República.
Já Gleisson Pereira De Brito, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), integra o grupo de reitores mais “neutros”, que buscaram afastar-se de vinculações políticas em suas campanhas. Ele, que era o primeiro da lista tríplice, afirmou durante a campanha que propunha “uma gestão despida de viés político partidário” e que “sendo uma universidade federal, a imagem da Unila não deve ser imiscuída à imagem de quaisquer governos, partidos ou ideologias anteriores, atuais ou futuras”.
Como foram as nomeações dos reitores em 2020
Até agora, em 2020, Bolsonaro já nomeou 14 dirigentes universitários. Desses, quatro têm posicionamento político abertamente de esquerda e dois figuram politicamente à direita. Apesar de ter entrado em choque com parte da comunidade acadêmica em três oportunidades neste ano - ao selecionar candidatos que foram terceiros colocados entre os nomes enviados pelos colegiados -, o presidente acatou o primeiro nome da lista tríplice em oito ocasiões (quase 60% das vezes), em várias delas ratificando a escolha das consultas prévias e contando com comemorações por parte sindicatos e grupos de esquerda.
Um dos casos mais curiosos aconteceu na Universidade Federal Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), com a seleção de Francisco Ribeiro da Costa, terceiro colocado na lista com apenas 6,9% dos votos na consulta prévia. Ainda que os dois primeiros nomes tenham sido preteridos por Bolsonaro, o reitor escolhido é um crítico ferrenho do presidente da República.
No Plano de Trabalho divulgado por Costa durante sua campanha, ele destacou feitos dos governos Lula e Dilma e declarou que “no governo antinacional e antipopular de Bolsonaro esta tendência foi revertida”. No documento, ele também cita: que “O (des)governo tem também implementado diversas medidas conservadoras e antidemocráticas que ameaçam claramente a autonomia das universidades”.
Outro caso intrigante ocorreu na recente nomeação, em 9 de outubro, de Evandro Aparecido Soares da Silva para reitor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Soares, ligado a políticos de esquerda, era vice-reitor de Myrian Serra, que renunciou ao cargo de reitora no início de 2020 após um relatório da Controladoria-Geral da União (CGU) apontar graves falhas orçamentárias na sua gestão. A opção também causou estranheza pelo fato de os outros dois nomes da lista tríplice serem de professores considerados conservadores.
Recentemente, em 14 de outubro, Bolsonaro nomeou Emmanuel Zagury Tourinho à reitoria da Universidade Federal do Pará (UFPA). Tourinho havia recebido 92% dos votos na consulta acadêmica e era o primeiro nome da lista tríplice. Em 2018, durante a campanha eleitoral para a Presidência da República, o dirigente escreveu um artigo sobre as eleições presidenciais no qual mencionou: “Com um presidente democrata, poderemos discutir o aperfeiçoamento e a expansão da educação superior pública; com um presidente que empunha armas para ameaçar adversários, restará pouco além de lutar para que as instituições não sejam extintas ou entregues a empresas privadas controladas por fundos financeiros internacionais”.
Em 2020, foram poucas as ocasiões em que Bolsonaro nomeou reitores alinhados ideologicamente com o governo. Em uma dessas raras oportunidades, o presidente escolheu Ludimilla Carvalho Serafim de Oliveira, terceira colocada da lista, para a reitoria da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa).
Em seu primeiro dia de trabalho, a reitora já precisou lidar com protestos organizados pelo Diretório Central dos Estudantes (DEC). A manifestação contou com o apoio de Rodrigo Sandes, candidato que ocupava o primeiro lugar da lista tríplice. Paralelamente, uma ação judicial foi aberta a pedido dos opositores para tentar anular a nomeação da atual reitora.
Próximas definições
Até o fim do seu mandato, Bolsonaro ainda poderá definir os dirigentes de 37 universidades federais – a menos que a ação que tramita no STF seja aprovada. Dessas escolhas, dez serão feitas ainda em 2020; uma delas está relacionada à Universidade Federal do Paraná (UFPR), cujo Conselho Universitário recentemente fez uma manobra para evitar que o candidato Horácio Tertuliano, que é mais alinhado politicamente ao governo e ficou em segundo lugar na consulta à comunidade acadêmica, tivesse seu nome excluído da lista tríplice.
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