O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) estava no poder havia apenas nove meses quando, em setembro de 2003, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados lançou um relatório que pretendia ser um marco na área. O documento foi elaborado por sete especialistas, todos doutores na área de educação, e sintetizava tanto os estudos acadêmicos mais recentes quanto a experiência de outros países. Eles afirmavam que o Brasil havia ficado para trás.
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“A principal conclusão é a de que as políticas e práticas de alfabetização de crianças no Brasil e os currículos de formação e capacitação de professores alfabetizadores não acompanharam a evolução científica e metodológica que vêm ocorrendo nos últimos 30 anos em todo o mundo. Esse fosso que separa o país dos conhecimentos e práticas mais atualizados pode ser responsável, em parte, pelo insuficiente desempenho escolar de expressiva fatia da população escolar brasileira”, dizia o texto.
O relatório, com mais de 200 páginas, ainda afirmava que a “postura eminentemente política ou ideológica levou, em diversos países, e continua levando, no Brasil, a uma rejeição de evidências objetivas e científicas sobre como as crianças aprendem a ler”.
Dentre as sugestões apresentadas no relatório, estavam uma remodelagem dos métodos usados, mudanças na formação dos professores e a adoção de um sistema de avaliação permanente dos estudantes. Seria uma mudança radical no que até então era fomentado pelo Ministério da Educação (MEC) e os secretários de educação de estados e municípios da época.
Porém, o alerta foi deixado de lado. Mesmo tendo sido apresentado ao governo federal petista, ao Congresso, às ONGs de educação que dominam as políticas públicas. Quase duas décadas depois do relatório, o país coleciona avanços tímidos, alguns retrocessos e a percepção de que a falta de um progresso mais amplo prejudicou uma geração inteira.
Alerta ignorado
As conclusões do relatório continuam válidas. Tanto que o documento ganhou mais duas edições, a mais recente em 2019, e também baseou um estudo por parte da Academia Brasileira de Ciências (ABC), em 2011. Ainda assim, os alertas e sugestões feitas pelos especialistas não foram levadas a sério.
O PT governou o país durante 13 anos seguidos. Durante esse período no poder, o partido não só não acatou as sugestões do relatório como dobrou a aposta no sistema então em vigor - que conjugava gastos elevados e resultados pífios. Àquela altura, o país já havia atingido a universalização do acesso ao ensino. De forma geral, já não faltavam escolas.
O passo seguinte seria aprimorar os métodos de alfabetização. O crescimento econômico iniciado em 2003, em meio a uma explosão no preço das commodities que beneficiou o Brasil, criou as condições ideais para um salto nesse sentido.
Mas o salto não veio. Entre 2003 e 2007, a nota do Brasil no quesito Leitura do PISA — principal avaliação internacional do tipo — passou de 403 a 407. A pequena mudança foi incapaz de tirar o país dos últimos lugares do ranking do teste. No mesmo período, o Chile saiu de uma nota parecida com a do Brasil e atingiu os 459 pontos.
Método global e Paulo Freire
Um dos pontos centrais do relatório de 2003 era a superação do ultrapassado método global, também chamado de “ideovisual”. Nessa abordagem, o estudante inicia o aprendizado já por meio da representação visual das sílabas e palavras. O método Paulo Freire se encaixa nesta categoria. A alternativa defendida pelo relatório era incluir a abordagem fônica, que se baseia no som das palavras, para, a partir daí, passar a outras etapas do ensino da leitura e da escrita.
Diferentemente de falar, a leitura e a escrita são convenções humanas e é preciso ensinar para a crianças os fonemas, do contrário elas terão de “descobrir” como funciona o idioma ao invés de serem ensinadas. Essa forma de deixar a criança no escuro, tendo de “reinventar a roda”, sem ensinar os fonemas que são as ferramentas do idioma, é uma conduta ultrapassada e abandonada há décadas pelos países bem-sucedidos em alfabetização.
“O desenvolvimento da consciência fonêmica e o domínio do princípio alfabético devem situar-se na base de qualquer programa de alfabetização”, afirmava o relatório, que cita dezenas de estudos.
Por que Bolsonaro não fez mais?
A gestão de Jair Bolsonaro foi a primeira a enfrentar o problema da precariedade da alfabetização brasileira, mas não com a força que seria necessária. A resistência veio dos próprios servidores de esquerda nos corredores do MEC, órgão aparelhado nos 13 anos do PT. Só no governo Dilma, o MEC cresceu em quase 100 mil pessoas, totalizando cerca de 300 mil servidores. Estados e municípios igualmente se mostraram resistentes a mudanças. O bloqueio ainda veio de algumas ONGs de educação, acostumadas a viver de dinheiro público por meio de parcerias questionáveis. E também de educadores, defensores de Paulo Freire e pedagogos ultrapassados, que viram nas tentativas do governo federal uma forma de "doutrinação".
Mesmo assim, o governo federal fez o que nunca se tinha visto até então: promoveu um congresso com especialistas em alfabetização internacionais, onde foram apontados os principais erros feitos no país até então, tudo com base em evidências científicas. Por meio da Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação (Sealf), o governo criou o Programa Nacional de Alfabetização (PNA), fundamentado no que há de mais moderno em termos de alfabetização, proposta que é uma verdadeira ruptura do que se tem feito até agora no país. Além disso, desenvolveu uma forma de treinamento online de professores, elogiado pela OCDE. E, com a ajuda de especialistas, traduziu para o português um jogo finlandês de alfabetização online, o GraphoGame, que já teve quase 1 milhão de downloads.
Mas faltou coragem e expertise para enfrentar alguns problemas sérios: a necessidade de alteração da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para os primeiros anos do ensino fundamental, o currículo obrigatório das escolas que segue os equívocos do passado; a baixa qualidade dos livros didáticos; a doutrinação e a falta de exigência de qualidade nos cursos de Humanas em geral e nas faculdades de pedagogia – a atual presidente da Capes, por exemplo, chegou a flexibilizou a tentativa de aumentar o nível em pesquisas em todas as áreas, permitindo a continuidade de critérios questionáveis de avaliação de cursos, por meio de portaria publicada em 2021, que acabou sendo revogada após críticas. Igualmente, faltou empenho de recursos e pessoas para levar o PNA com capilaridade a estados e municípios; e valentia para manter em postos-chave no MEC pessoas com capacidade para manter alto o nível de exigência da educação brasileira, pois teve de abrir mais espaço para o Centrão em troca da estabilidade política.
Culpa compartilhada
Para João Batista Oliveira, doutor em Educação, fundador do Instituto Alfa e Beto e um dos autores do estudo apresentado em 2003, a falta de avanços do Brasil no campo da alfabetização tem causas que vão além do governo do momento. “O problema da alfabetização no Brasil não é partidário, é ideológico. Essa ideologia foi e continua sendo compartilhada em praticamente todas as faculdades de educação e em todo o espectro político, inclusive nas grandes ONGs empresariais”, diz ele, criticando o apego a métodos já ultrapassados.
Para Oliveira, a gestão atual deu um passo na direção correta, mas vem fazendo menos do que poderia. “O presente governo fez um avanço com a PNA – a Política Nacional da Alfabetização. Mas não avançou o suficiente nem de forma adequada em outros aspectos da questão. Faz política de terra arrasada, ignorando experiências exitosas”, diz ele. Também, segundo o especialista, o governo “cai na tentação do dirigismo” ao produzir, ele próprio, material didático em vez de criar as condições para que estados e municípios o façam.
O professor Luiz Carlos Faria da Silva, da Universidade Estadual de Maringá (UEM), foi revisor da edição mais recente do relatório. Para ele, a estagnação nas duas últimas décadas tem muitos responsáveis. “Os governos, a sociedade, a universidade, a imprensa fecharam os olhos a uma iniciativa com potencial para resgatar do fundo do poço a qualidade da alfabetização no Brasil”, diz ele, em referência ao grupo de trabalho formado em 2003.
Silva também afirma que o governo federal não pode ser apontado como o único culpado. “A Educação Infantil e Ensino Fundamental I são de responsabilidade dos municípios. Há mais de 5000 municípios no Brasil, com prefeitos de todos os partidos. Assim, a responsabilidade direta não cabe ao governo federal. Nem a um partido político”, afirma. O professor diz que a opção pelo método global se consolidou com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) definidos em 1996, durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Essas normas definem que, desde a alfabetização, a unidade de ensino de língua portuguesa é o texto. “Na prática, é uma abordagem global”, diz ele.
O professor afirma ainda que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 2017 sob o governo de Michel Temer (MDB), referendou os critérios do PCN. Quanto à gestão de Jair Bolsonaro (PL), ele afirma que houve um avanço modesto. “O governo atual publicou a Política Nacional de Alfabetização, que é uma iniciativa importante, mas não atualizou a BNCC na parte de língua portuguesa, onde se inclui a alfabetização”, afirma. “O governo não enfrentou essa espinhosa tarefa”, conclui.
Base curricular ultrapassada
Para Simone Benedetti, professora e autora do livro A Falácia Socioconstrutivista, o maior obstáculo à mudança nos métodos de alfabetização é de fato a BNCC, que herdou a carga histórica do método global. Na avaliação dela, o governo atual perdeu uma oportunidade ao colocar a nova BNCC em vigor. Embora tenha sido aprovada durante a gestão Temer, a medida só passou a valer durante o governo Bolsonaro.
“A ‘nova’ BNCC acabou por ser, neste governo, completamente implantada em todos os sistemas de ensino do país, públicos ou privados, de maneira que hoje não há um único sistema de ensino que não seja obrigado a segui-la. Infelizmente, o governo atual perdeu completamente a oportunidade de mudar a educação nacional ao não barrar a BNCC”, afirma Simone. “Em relação à alfabetização, a abordagem global ainda permanece, apenas com algumas menções sobre o desenvolvimento da consciência fonológica. Contudo, a maneira como a base recomenda a organização do currículo faz com que esse objetivo seja incidental e não tenha sustentação e lógica na estrutura curricular”, complementa ela.
De acordo com a professora, a BNCC utiliza a premissa do antigo método global, que tem o texto como elemento central da alfabetização. “A Sealf (Secretaria de Alfabetização do Ministério da Educação) se manteve como uma célula isolada no MEC e, aparentemente, sem apoio do próprio governo. Suas ações voltadas para a alfabetização, que são contrárias às prescrições da BNCC e facultativas (não obrigatórias), têm sido praticamente ignoradas pelos sistemas de ensino”, diz Simone.
Sob a tutela de Carlos Nadalim, a Sealf tem apostado na inclusão da abordagem fônica e de outras etapas imprescindíveis para a alfabetização desde que o atual governo tomou posse, em 2019. Mas não é possível fazer muito sem as ferramentas legais. Por isso, mudanças significativas no método de alfabetização só podem ser alcançadas a partir da revisão da BNCC e popularização do método fônico, além de outras melhorias que aumentem a eficiência dos programas de alfabetização. Outra medida, esta mais plausível, seria dar mais poder à Sealf, inclusive com o uso de incentivos financeiros para estados e municípios que implementarem programas que se aproximem da abordagem fônica.
Próximo governo terá desafio maior
O deputado Gastão Vieira (PROS-MA) era o presidente da Comissão de Educação da Câmara quando o relatório de 2003 foi elaborado. Ele afirma que o novo Congresso e o presidente eleitos em 2022 terão um desafio ainda maior quando tratarem da alfabetização. “O impacto da pandemia foi muito forte na educação brasileira. Nós não conseguimos medir, mas alguns estudos já apontam que o problema se agravou muito. Nossa educação, que já não vinha bem antes da pandemia, com a ausência da aula presencial ficou muito pior”, diz ele.
O deputado diz ainda que o problema não é a falta de dinheiro: ele avalia que o volume de recursos reservado para a Educação Básica no Orçamento da União é suficiente. Pragmático, Gastão Vieira afirma que uma medida viável seria vincular a distribuição de recursos à obtenção de resultados pelos estados e municípios, de forma a incentivar um desempenho melhor das redes de ensino.
“Nós precisamos avançar na alfabetização. Se a entrada continuar ruim, o ensino médio vai continuar ruim. O financiamento é suficiente. Mas é preciso que a gente aplique esse financiamento como uma forma de reconhecer o mérito daqueles que conseguem acertar o seu passo e fazer uma coisa melhor”, diz ele.
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