Mesmo aprovados e até sancionados, projetos de lei municipais e estaduais que regulamentam a prática do ensino domiciliar têm sido questionados judicialmente, sob o argumento de serem inconstitucionais. Para as famílias que já são adeptas da prática ou que pretendem adotá-la na educação de seus filhos, essa falta de definição sobre o homeschooling tem trazido incerteza e preocupação.
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O argumento da inconstitucionalidade foi usado pelo governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) para vetar integralmente o projeto de lei sobre homeschooling no início de julho. No texto do veto, o governador chama o projeto de “meritório”, mas argumenta que a proposta viola a competência privativa da União em legislar sobre o tema. Para reforçar o argumento, o voto traz trechos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2018 julgou uma ação sobre homeschooling. Segundo Leite, a decisão teria sido puramente técnica, feita a partir da avaliação da Procuradoria-Geral do Estado (PGE).
Para o autor da proposta, deputado Fábio Ostermann (Novo), porém, a decisão de Leite foi política. Ostermann salienta que a constitucionalidade da proposta foi reconhecida pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul por ampla maioria. Ele defende a ideia de que na ausência de norma federal, os estados devem exercer a competência legislativa plena e podem aprovar leis sobre homeschooling.
Com relação à situação do RS, segundo o parlamentar, a ideia é conseguir mobilizar os deputados gaúchos para derrubar o veto de Leite. “O governador Eduardo Leite procura carimbar o homeschooling como uma pauta ‘bolsonarista’ e, portanto, vetar a matéria foi a forma que encontrou para se contrapor ao Presidente da República”, avalia Ostermann.
Mas, afinal, municípios e estados podem ou não legislar sobre educação domiciliar? Embora a Constituição não proíba o ensino domiciliar no país, não há consenso sobre competência para legislar sobre o tema.
O advogado público Carlos Eduardo Rangel Xavier, que é membro da diretoria da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), opina que o reconhecimento legislativo da educação domiciliar não tem qualquer repercussão ou ligação com a política das diretrizes e bases da educação nacional. Assim, trata-se de tema relativo a “educação e ensino”, o que se insere na competência legislativa concorrente, ou seja, é assunto sobre o qual os estados, o Distrito Federal e até mesmo os municípios podem legislar.
De acordo com o representante da Aned, o homeschooling seria competência legislativa privativa da União somente se necessitasse de estabelecimento de novas “diretrizes e bases da educação nacional” - o que para ele não corresponde à situação da regulamentação da modalidade de ensino.
Em contrapartida, caso o entendimento venha a ser de que o reconhecimento do homeschooling depende de qualquer tipo de mudança nas diretrizes e bases da educação nacional, então a competência para legislar sobre o assunto seria, de fato, somente da União. Se for essa a tese adotada, ficará estabelecido que estados e municípios não podem aprovar leis sobre a educação domiciliar.
Xavier defende ainda que, ao contrário das propostas atualmente em discussão, que têm como objetivo regulamentar a educação domiciliar, o ideal seria que a legislação apenas reconhecesse o direto de as famílias optarem por essa modalidade. “A legislação deve privilegiar a liberdade educacional. E, nesse sentido, leis estaduais e mesmo municipais sobre a educação domiciliar podem ser compreendidas como atuação legislativa legítima dos entes federados em questão”, opina.
Já a advogada constitucionalista Vera Chemim, mestre em Administração Pública pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo, ressalta que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no âmbito do RE-888815-RS que o ensino domiciliar não é vedado constitucionalmente, mas que a Corte definiu que existe a necessidade de uma lei federal para disciplinar o tema. “Esse ponto acabou gerando, posteriormente, dúvidas sobre a constitucionalidade de leis que viessem a ser editadas e promulgadas por estados e municípios, no tocante à disciplina das espécies de ensino domiciliar”, explica a advogada.
Como já mencionado, o artigo 22 da Constituição Federal prevê que compete privativamente à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional. Mas a especialista lembra que há previsão de que lei complementar poderá autorizar os estados a criarem normas sobre questões específicas relacionadas à educação.
Na mesma direção, o artigo 24 ressalta que compete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação - não há menção a municípios. Por sua vez, o mesmo artigo determina que a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais, enquanto que os estados têm competência para suplementar as normas gerais dadas pela União. Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os estados poderão exercer a competência plena para atender a suas peculiaridades. Por fim, o artigo 30, determina que os municípios poderão suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.
Imbróglio
O grande problema é que esses artigos dão margem a diversas interpretações sobre as reais competências de estados e municípios no que diz respeito à aprovação de leis sobre temas relacionados à educação. Uma dessas interpretações seria a de que a União teria a competência privativa de legislar sobre normas gerais de educação, incluindo as que se refiram ao ensino domiciliar. Posteriormente, os estados e municípios tratariam sobre questões específicas relacionadas às suas peculiaridades.
Outro entendimento, lembra Vera, é o de que, em razão da ausência de lei federal, os estados teriam plena competência para aprovar e aplicar leis estaduais regulamentando o ensino domiciliar.
Uma terceira interpretação possível seria a de que uma vez existindo lei complementar que discipline o tema educação, como ocorre no Brasil, estabelecendo normas gerais, seria permitindo a edição e promulgação de lei estadual específica sobre o ensino domiciliar.
Por essas duas últimas interpretações, ressalta a advogada, as leis estaduais sobre homeschooling seriam constitucionais. Já os municípios só poderiam suplementar a lei federal ou leis estaduais. Assim, leis como as aprovadas em Cascavel e Toledo, no Paraná, seriam realmente inconstitucionais.
Recentemente, uma decisão do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR) teve esse entendimento ao analisar uma ação direta de inconstitucionalidade movida contra a Lei Municipal 7.160/2020, de Cascavel, que instituiu as diretrizes da educação domiciliar (no âmbito do município.
Na decisão, publicada no dia 21 de junho deste ano, a relatora do processo, desembargadora Maria José de Toledo Marcondes Teixeira, defendeu que o modelo constitucional de repartição de competências assegura aos municípios apenas a possibilidade de suplementar a legislação federal e estadual no que couber, isto é, em relação a assuntos de interesse local. Dessa forma, os municípios não teriam competência para legislar sobre educação, e os projetos aprovados pelas Câmaras de Vereadores e sancionados pelos prefeitos seriam mesmo inconstitucionais.
Embora não tivesse como foco julgar a competência estadual em legislar sobre o ensino domiciliar, a desembargadora ressalta que cabe à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre educação, cabendo ao primeiro ente estabelecer normas gerais sobre a matéria. Ela cita ainda a Constituição do Estado do Paraná, que também prevê a competência legislativa concorrente no que se refere ao tema educação.
Na Constituição paranaense, no artigo 24, há a determinação de que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos estados. No caso de inexistência de lei federal sobre normas gerais, o estado exerce a competência legislativa plena, para atender às suas peculiaridades.
Distrito Federal
Interpretação semelhante teve o Ministério Público Federal do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) em relação ao projeto de lei distrital regulamentando o homeschooling. Em nota técnica defendendo a legalidade do projeto, a Promotoria de Justiça de Defesa da Educação (Proeduc) entende que, uma vez que não há lei federal sobre o tema, estados e Distrito Federal têm plena competência para legislar e regulamentar o ensino domiciliar.
Para a promotora Márcia Pereira da Rocha, que assinou a nota, a proposta do DF observou todos os critérios de constitucionalidade e juridicidade, e não invade o campo de diretrizes educacionais, ou seja, não modifica nem amplia diretrizes e bases da educação fixadas pela União. “Trata-se, pois, de um modelo de operacionalização do ensino, sendo mais uma forma de se oferecer maior prestação do direito à educação para a sociedade do Distrito Federal”, ressalta a promotora.
Mesmo após a manifestação favorável do MPDFT, a aprovação do projeto na Câmara Distrital, e a sanção do governador Ibaneis Rocha (MDB), a lei do DF sobre homeshcooling está sendo questionada por meio de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Sindicato dos Professores no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Na última decisão sobre o caso, a Justiça do DF resolveu suspender por 180 dias a ação, atendendo a pedido do MPDFT.
O argumento usado pelo desembargador Alfeu Machado, que analisa o caso, é o de que já há uma lei federal em tramitação na Câmara dos Deputados, a qual busca incluir no ordenamento jurídico brasileiro a regulamentação sobre o ensino domiciliar no Brasil. A suspensão, segundo o desembargador, serviria “para evitar a prática de atos processuais e judiciais conflitantes e desnecessários, mantendo-se o Princípio da Segurança Jurídica e bem como a efetividade da prestação jurisdicional local com grande repercussão no âmbito educacional e também não subtrair as competências legislativas do Congresso Nacional”.
Lei federal
Enquanto o imbróglio jurídico se arrasta quanto a estados e municípios, a Câmara dos Deputados pode, finalmente, trazer segurança e tranquilidade às famílias educadoras. Mas o projeto de lei mais avançado sobre o tema está parado, mesmo estando pronto para ser votado.
O relatório final com o texto substitutivo a vários projetos que propõem a regulamentação do ensino domiciliar, apresentado pela relatora deputada Luisa Canziani, já foi disponibilizado aos líderes partidários e ao governo, e aguarda deliberação do presidente da Casa, Arthur Lira (PP), para ser colocado em votação no plenário.
No entender da deputada, a demora é justificável. “É um tema que mexe com a educação brasileira e, por esse motivo, todas as partes envolvidas foram ouvidas", afirma. Na visão da relatora, a Câmara tem trabalhado em diferentes assuntos de interesse do país, e "assim que o presidente Arthur Lira considerar que o tema deva entrar em votação, o relatório está pronto para ser apreciado", diz.
Para a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), a demora na apreciação do assunto na Câmara dos Deputados é compreensível até certo ponto, devido ao cenário político brasileiro e à natureza do tema, ainda considerado polêmico por alguns parlamentares. No entanto, lembra a associação, o Congresso tem recebido propostas parlamentares para regulamentação do ensino domiciliar desde 1994, o que, no entender da Aned, significa que o tema já foi debatido o suficiente.
“Para as famílias educadoras, é urgente essa regulamentação. Sobre ser aprovado ainda no segundo semestre deste ano, acreditamos ser uma ótima janela de oportunidade. Só não podemos cravar isso, pois em Brasília tudo pode acontecer, inclusive, nada”, diz o presidente da Aned, Rick Dias.
Segundo estimativas da Aned, aproximadamente 7.500 famílias já aderiram à modalidade de ensino do homeschooling - mesmo sem regulamentação -, com aproximadamente 15 mil alunos, com idades entre 4 e 17 anos, sendo educados em casa.
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