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liberdade de cátedra

Existe Escola sem Partido em outros países? Conheça casos polêmicos

 | Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo
(Foto: Rodolfo Buhrer/Arquivo Gazeta do Povo)

No último dia 23 de novembro, o Supremo Tribunal Federal divulgou um levantamento inédito a respeito da posição do judiciário sobre a liberdade de cátedra em seis países, mais a União Europeia. Realizado pela Coordenadoria de Análise e Jurisprudência do órgão, o estudo visa enriquecer os debates a respeito da proposta do Escola sem Partido.

De fato, a polêmica que o Brasil está debatendo neste momento não é exclusiva. Em muitos outros lugares, a legislação busca o equilíbrio entre duas forças: de um lado, a liberdade de expressão individual, incluindo a autonomia para um professor se manifestar sobre diferentes assuntos que leciona. De outro, a legislação, o respeito à Constituição e as leis que restringem a doutrinação ideológica e a apologia a comportamentos criminosos.

“O problema de definir o que é permitido (e o que não é) expressar em sala de aula passa longe de ser um fenômeno local”, afirma a professora de direito Amanda Costa Thomé Travincas, autora da tese de doutorado “A tutela jurídica da liberdade acadêmica no Brasil: a liberdade de ensinar e seus limite”, vencedora do Grande Prêmio Capes de Tese. “Essa discussão ganha coloridos diferentes a depender do contexto”.

Confira abaixo as conclusões a que chegaram sete tribunais superiores, das Américas e da Europa, a respeito de casos que provocaram polêmica ao longo das últimas décadas.

1. Alemanha

Qual é o problema em uma professora utilizar véu sobre a cabeça em sala de aula? A questão mobilizou os tribunais alemães e chegou à corte suprema do país. O motivo: era preciso entender até que ponto a professora, praticante do islamismo, não estaria fazendo apologia de sua religião, num país onde a educação é, por lei, obrigatoriamente laica. Mas, se a fé praticada pela profissional exige que ela use o véu, proibi-la de lecionar não representaria uma agressão a sua liberdade individual?

O documento do STF explica a resposta da Corte Suprema alemã em 2003: “A posição particular de dever de um funcionário público tem precedência sobre a proteção dos direitos fundamentais, em razão do cargo público que ocupa. Assim, o uso intransigente do lenço na cabeça é incompatível com a exigência de um funcionário público ser moderado e neutro”.

Mas, em 2015, a posição foi revista: a corte revogou a proibição e autorizou o uso do lenço, assim como qualquer tipo de peça de roupa, masculina ou feminina, que permita identificar a religião que o docente professa. A primeira-ministra do país, Angela Merkel, já se declarou contrária a essa avaliação – em dezembro de 2016, ela declarou que o véu que cobre todo o rosto das mulheres deveria ser proibido. Sete países da Europa, aliás, proíbem o uso, em lugares públicos, de véus que cubram todo o rosto.

2. Chile

O Tribunal Constitucional do país já se manifestou sobre a liberdade de cátedra, em sentença de 2004. “Enquanto o direito social à educação exige a prestação de ações educativas para sua satisfação, o direito à liberdade de cátedra garante aos agentes educacionais a atuação livre de interferência, cujo exercício é assegurado pela Constituição a todas as pessoas singulares e coletivas, sem exceção ou distinção”, explica o estudo do STF, que ainda assim lembra que o país proíbe, dentro dos ambientes de ensino, a propagação de qualquer tendência política partidária.

3. Colômbia

Em junho de 2018, a Corte Constitucional decidiu pela reintegração da professora universitária Mónica Godoy Ferro, que havia sido demitida em agosto de 2017 depois de denunciar, inclusive em sala de aula, situações de assédio sexual contra funcionárias e uma aluna da Universidade de Ibagué. A decisão da Corte Constitucional não abordou apenas esse episódio, mas dissertou a respeito da liberdade de expressão dentro de sala de aula.

Concluiu que ela é protegida pela Constituição do país, a não ser em quatro situações: propaganda em favor da guerra; discurso de ódio, discurso discriminatório, defesa do crime e defesa da violência; pornografia infantil; incitamento a atos de assassinato e genocídio. A decisão é coerente com outra sentença, esta de 1994, assim descrita pelo estudo do STF: “A liberdade acadêmica não é um direito absoluto, sendo limitado pelos objetivos do Estado, entre os quais a proteção de direitos, como a paz, a convivência e a liberdade de consciência, dentre outros.”

4. Espanha

Desde os anos 1980, pelo menos, a legislação do país prevê que, em caso de desentendimento ideológico entre instituição e professor, o profissional pode ser demitido. “Uma atividade docente hostil ou contrária à ideologia de um centro de ensino privado pode ser motivo legítimo para a demissão do docente”, descreve o estudo, citando uma decisão judicial de 1985, “desde que o fato constitutivo de ‘ataque aberto ou furtivo’ à ideologia da instituição seja comprovado de forma clara e específica pelo empregador.”

5. Estados Unidos

Em 2016, a professora Jeena Lee-Walker moveu uma ação contra o departamento estadual de educação da Cidade de Nova York. Alegou que foi cerceada em seus direitos ao ser demitida. O motivo: ela repassou a seus alunos do nono ano, como leitura obrigatória, a obra Nilda, de Junot Diáz. A escola em que ela trabalhava pediu que Jeena não ensinasse sobre o livro, porque o texto cita a palavra “nigger”, uma forma pejorativa de se referir a pessoas negras em inglês. Essa é uma polêmica antiga: uma editora americana se especializou em publicar livros clássicos de Mark Twain retirando a expressão, que era usada originalmente, centenas de vezes ao longo das obras.

Jeena Lee-Walker também alegou que foi perseguida por abordar, em sala de aula, o caso de 1989, quando cinco jovens negros e latinos foram injustamente condenados por estuprar uma mulher branca no Central Park. Em novembro de 2016, o Tribunal Distrital de Nova York rejeitou o caso da autora. Entendeu que a demissão foi justa, porque, como funcionária pública, a profissional deveria seguir as recomendações de seus superiores.

Decisão de mesmo teor foi emitida em 1998, quando o professor Dilawar Edwards foi demitido da California University of Pennsylvania, uma universidade pública instalada na cidade de Califórnia, na Pensilvânia, por professar suas crenças religiosas durante uma palestra. O Tribunal de Apelações do Terceiro Circuito concluiu que a universidade tinha o direito de dispensar um profissional que não atue segundo seus preceitos. A análise do STF indica que, nos Estados Unidos, decisões semelhantes remontam à década de 1950.

“Nos Estados Unidos, é possível perceber um movimento de redimensionamento da liberdade de ensinar pós-11 de setembro, quando o temor de ocorrência de atos terroristas acaba apontando para um dever de prudência em sala de aula, de modo a inibir ideias e expressões tendentes a de algum modo encorajar práticas como aquelas”, diz a professora Amanda Costa Thomé.

6. França

Em 1984, o Conselho Constitucional da França seguiu uma linha interpretativa bastante diferente da americana, ao concluir que os regulamentos internos de uma instituição de ensino não podem se sobrepor ao direito de livre expressão de ideias e opiniões dos profissionais de ensino.

7. União Europeia

Em decisão que serve como recomendação para todos os países membros do bloco, em 1995 o Tribunal Europeu de Direitos do Homem decidiu que o governo alemão não tinha o direito de afastar Dorothea Vogt, uma professora de escola pública de ensino médio, apenas porque ela era filiada ao Partido Comunista Alemão. “A escola justificou a sanção disciplinar sob o argumento de que a docente descumpriu seu dever constitucional de lealdade política”, explica o documento do STF. “Constatou-se que o único risco inerente ao cargo ocupado era a possibilidade de que ela pudesse doutrinar seus alunos. No entanto, nenhuma crítica foi feita a ela sobre este ponto. Pelo contrário, seu trabalho na escola havia sido aprovado por unanimidade”. E concluiu que, sendo o Partido Comunista Alemão legalizado no país, o afastamento deveria ser suspenso porque feria os direitos à liberdade de expressão e de associação.

E no Brasil?

A Câmara dos Deputados acaba de desistir de votar um projeto de lei que tentava instituir as medidas defendidas pelo movimento “Escola sem Partido”, como a afixação de um cartaz com seis deveres do professor. Entre eles estariam o dever do professor de não fazer propaganda político-partidária em sala de aula e o de respeitar o direito dos pais dos alunos a que os filhos recebam educação religiosa e moral de acordo com suas próprias convicções.

Como a proposta deverá ser arquivada, por enquanto, segue o previsto na lei atual.

Mas o que diz a legislação atual? “A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 206, II, diz que a ‘liberdade de ensinar’ é um princípio que deve informar o processo educacional”, diz Amanda Costa Thomé. “A liberdade de ensinar é também prevista em nossa norma geral referente à educação, que é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a LDB. Ocorre que, como todo direito, a liberdade de ensinar está condicionada a limites. Não é ilimitada, porque o professor é, antes de todo o mais, um profissional que executa uma atividade voltada a um fim”.

Segundo a professora de Direito, enquanto na Europa e em boa parte dos países latino-americanos, o que se nota como problemático são questões relacionadas a gênero, no Brasil isso se estende a opções religiosas e político-partidárias.

“Apesar destas diferenças, o que há de comum em todo lugar é uma bifurcação: de um lado, um movimento defendendo a eliminação de controvérsias e discussões em sala de aula; de outro, aqueles que, compreendendo que a preparação de cidadãos se faz com diálogo, resistem a tal movimento”.

Profissão perigosa

Existem lugares onde os professores correm risco de vida constantemente:

* Entre setembro de 2017 e agosto de 2018, foram registrados no mundo

- 79 assassinatos e desaparecimentos de professores

- 88 prisões

- 22 perdas de emprego em resultado de perseguição ideológica

- 15 restrições para viajar

- 875 estudantes mortos ou presos por manifestar suas opiniões

* No Afeganistão, uma bomba foi detonada em junho de 2018, nos arredores da Universidade Politécnica de Cabul, quando um grupo de 2000 acadêmicos se reuniam para criticar o extremismo religioso. O ataque matou 14 e feriu 20.

* Em outubro de 2017, no Quênia, uma van com estudantes, professores e funcionários da Universidade Técnica de Mombasa foi atacada no meio da rua, por dez atiradores. Dois acadêmicos morreram.

* No Paquistão, em dezembro de 2017, três homens com explosivos presos ao corpo e vestindo burcas entraram no campus do Instituto de Treinamento para a Agricultura de Peshawar. Mataram seguranças e se dirigiram ao dormitório de estudantes, onde abriram fogo. Doze pessoas morreram e 37 ficaram feridas.

* A Universidade de Maiduguri, na Nigéria, vem sendo alvo de uma série de ataques desde janeiro de 2017. Foram oito diferentes ataques, sempre promovidos por homens usando coletes com explosivos. Na maior parte dos casos, a polícia matou os terroristas antes que eles agissem.

Fonte: Relatório Free to Think 2018, produzido pela entidade Scholars at Risk.

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