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A ignorância científica atrasa a educação do nosso país há pelo menos 20 anos. E permanecer refratário aos achados da ciência não apenas nos coloca nos últimos patamares em rankings internacionais que medem a qualidade da educação no mundo. Na prática, esse cerco ao conhecimento adoece o ensino do "chão da escola" e faz com que alunos tenham desempenho sofrível.
No que se refere à qualidade da leitura-escrita dos estudantes brasileiros, a responsabilidade maior, sem dúvida alguma, é da "falácia socioconstrutivista", afirma Kátia Simone Benedetti, que estuda a abordagem educacional cujos fundamentos divergem da ciência.
Professora da rede municipal de Itatiba, em São Paulo, ela reuniu experiências e descobertas da própria prática docente de aproximadamente 20 anos em um livro, para esclarecer e divulgar o motivo pelo qual milhões de alunos deixaram de aprender a ler e escrever adequadamente.
A raiz do problema é antiga, da década de 90, pelo menos, de acordo com a autora, quando princípios falaciosos passaram a dominar as academias de ensino, documentos oficiais curriculares e materiais didáticos. Desde então, segundo ela, com a ciência cognitiva completamente menosprezada, os índices de qualidade despencam e alunos têm apresentado falhas no aprendizado quase que irreversíveis.
Mas após anos de "sono profundo", o país parece despertar para o que há de mais conveniente à luz da ciência. Medidas como a nova Política Nacional de Alfabetização e a Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências Científicas (Conabe), por exemplo, revelam que estamos a caminho de bons resultados, a médio e longo prazo. Há, por outro lado, desafios que não são de fácil solução, como a total reformulação da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Construtivismo e socioconstrutivismo
A abordagem socioconstrutivsta tem sido acolhida no Brasil desde a década de 1990. Sua origem está relacionada à aglutinação de, pelo menos, duas teorias psicopedagógicas: a Psicogênese da Língua Escrita, da psicóloga Emília Ferreiro, discípula do construtivismo do psicólogo Jean Piaget, e a Formação Social da Mente, obra representativa dos pressupostos sociointeracionistas do psicólogo russo Lev Vigotsky.
De acordo com Benedetti, essas teorias psicopedagógicas passaram a fundamentar e fomentar a abordagem global de ensino, aquela que rejeita a “fragmentação” do conhecimento em conteúdos específicos e de seu ensino progressivo. Além disso, a leitura e a escrita deixaram de ser consideradas como uma aquisição, um aprendizado que necessita de ensino explícito formal e passaram a ser consideradas como parte do processo de desenvolvimento cognitivo da criança.
Sendo assim, segundo ela, passou-se a acreditar que, para que se tornassem sujeitos de seu próprio conhecimento, ao invés de receberem ensino explícito por parte de um professor, as crianças devem agir com autonomia (empoderamento, na linguagem atual) diante do próprio aprendizado.
Já consolidada no meio acadêmico, a abordagem se tornou base para a elaboração de políticas públicas, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1998, além de outros documentos oficiais das gestões passadas do MEC. Currículos pedagógicos em universidades e materiais didáticos, em sua grande maioria, permanecem até hoje condicionados a esse viés teórico.
"Infelizmente, o socioconstrutivismo passou a ser o aporte teórico não apenas dominante na área educacional brasileira, mas praticamente absoluto", lamenta Kátia. "Essa miscelânea teórica foi progressiva e ininterruptamente ampliada na academia e pela academia, que a adaptou e transformou em propostas pedagógicas variadas".
Depois de todo esse sincretismo teórico, afirma Kátia, "a alfabetização e o ensino de língua portuguesa renderam-se completamente à teoria histórico-crítica da linguística da enunciação, segundo a qual a língua não deve ser concebida como um sistema, mas sim como um objeto social".
Mas, afinal, qual o problema com essa abordagem que domina a educação no país? Em suma, Piaget, Emília e Vygotsky vão na contramão da ciência.
A programação do cérebro
As descobertas do linguista e cientista cognitivo Noam Chomsky foram marco na história, conta Benedetti. Ele identificou uma predisposição no cérebro humano para a aquisição da linguagem verbal. Isso significa que, naturalmente, pelo simples fato de estarmos inseridos em ambientes letrados, aprenderemos a falar. Nosso cérebro foi programado para isso.
O equívoco socioconstrutivista foi considerar que esse mesmo padrão identificado por Chomsky se aplicaria à aquisição da leitura-escrita. O que, ela frisa, é totalmente inverídico. "A escrita, portanto, evoluiria espontaneamente em cada criança [...] desde que devidamente estimulada”, diz Kátia sobre a proposta de Emília, por exemplo.
Como explicou a Gazeta do Povo, no entanto, embora nosso cérebro tenha uma predisposição para a fala, esse órgão não é programado para ler, porque a escrita é um código cultural inventado pelo ser humano, só sendo possível aprendê-lo por meio do ensino sistemático e explícito.
É um equívoco, portanto, equiparar a natureza da linguagem oral à natureza da linguagem escrita. "A linguagem escrita é um artefato cultural e não um produto da psicogenética do desenvolvimento cognitivo. [...] Não é um aprendizado psicogenético no sentido de ser inato, pré-programado pela nossa bagagem biológica hereditária e despertado pela interação com o meio, tal como defendem os socioconstrutivistas", escreve a professora no livro.
"O resultado disso foi que pedagogos e professores alfabetizadores formados da década de 1990 em diante começaram a ir para as salas de aula com uma visão completamente equivocada sobre alfabetização, sobre como ensinar português, como a criança se apropria do sistema escrito, sem saber conduzir esse processo", lamenta a autora. Há quem defenda, inclusive, que o campo da pedagogia fracassou após se apropriar de abordagens dessa natureza.
Professor não é mais tão importante
A visão do socioconstrutivismo sobre a aquisição da fala está ligada a uma questão ainda mais profunda: o papel do professor no processo de ensino. Uma vez que se considera que a criança tem capacidade de fazer suas próprias descobertas no ensino, a hierarquia professor-aluno não é mais tão importante.
A partir de então, todo e qualquer ensino explícito, progressivo e sistemático foi sendo considerado um "grave erro" pedagógico e, mais ainda, como "totalitarismo", afirmou Benedetti.
"O ensino explícito e transmissivo de conteúdos é condenado por essa corrente pedagógica, que considera o aluno um sujeito 'autônomo' que não deve ser apenas 'passivo' dos conteúdos. Ele deve, ao contrário, elaborar hipóteses próprias sobre o funcionamento do código escrito", explica Kátia. "Métodos e cartilhas [...] passaram a ser considerados também como ferramentas disciplinadoras e opressoras, instrumentos de poder da hierarquia escolar que diminuíam o direito de falar dos alunos, ou o seu direito de se expressar como sujeitos."
Com a lógica invertida, na verdade, foi colocado um "fardo" sobre os ombros dos alunos, que passaram a ter de reinventar a roda, como afirmam estudiosos do tema. O ensino sistemático e explícito serve justamente para facilitar o processo de aprendizagem, mas os socioconstrutivistas abriram mão dessa ferramenta e jogaram a responsabilidade para o aluno.
No entanto, a própria ciência explica que os estudantes não desenvolvem essas descobertas por si próprios. Não, pelo menos, nos anos iniciais da educação.
Contraditoriamente, segundo a pesquisadora, os próprios professores negam seu papel no ensino, e há quem intimide colegas da área por não concordarem com esses pressupostos. "Professores que alfabetizam através de métodos sintéticos, como o fônico [contrário à abordagem global], são comumente perseguidos, diante de um cenário de confusão entre “ensino tradicional” e má didática. Há recriminação, por parte dos não adeptos, a estratégias de decodificação grafofonêmica da leitura, o que veio a se tornar uma espécie de dogma pedagógico nas academias", diz Kátia.
Sequelas
“Completamente alheios à realidade concreta das salas de aula de alfabetização e das necessidades de professores e alunos, esses teóricos permaneceram criando conceitos e pedagogias, deslumbrados com sua própria potência intelectual e indiferentes à derrocada da qualidade do ensino nacional”, diz Kátia, em um trecho, acompanhado de índices do Brasil no exame Pisa: ano 2000, por exemplo, último lugar, 32ª posição entre 32 países; ano de 2003, 38ª posição entre 41 países, ano de 2006, 49ª posição entre 56 países, ano de 2009, 53ª posição entre 65 países; ano de 2012, 58º lugar, entre 64 países, ano de 2016, 59ª posição entre 70 países.
Os índices não são números por si só, diz ela. Eles revelariam os problemas ocasionados por essas abordagens na educação brasileira. "Conheço alunos, inclusive de escolas particulares, que têm os mesmos problemas que os alunos de escolas públicas. É um padrão de erros, sequelas", diz a autora à Gazeta do Povo. "Erros de ortografia, sobretudo, pois eles não têm noção do uso correto das letras. Aglutinação de palavras, pois não têm noção da categoria da palavra. Expressões como 'por isso' acabam sendo aglutinadas. A sequela que eu acho mais nociva é a não identificação da sílaba tônica nas palavras. Alunos de 9º ano quando leem a palavra fúnebre, por exemplo, ignoram o acento, e leem funébre. Míope, leem miópe", conta.
"Inacreditavelmente, por mais que os profissionais da educação passem muito tempo discutindo as possíveis causas do mau desempenho dos alunos e de suas dificuldades em encontros, [...] nada se fala sobre o que a ciência tem trazido para ajudar as crianças a aprender melhor", diz ela. "Enquanto países sérios investem em ciência da educação, o Brasil permanece promovendo o contraproducente model de ensino 'histórico-crítico' progressista, e quem está pagando o preço por essa irresponsabilidade são as nossas crianças".