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Após mais de duas décadas de tramitação de projetos de lei que propõem a regulamentação do homeschooling no Brasil, há expectativas de que o PL 3179/2012 – proposta atualmente com maiores chances de ir a plenário na Câmara dos Deputados – seja votada pelos parlamentares ainda neste ano. Uma eventual aprovação na Câmara e também no Senado faria com que as cerca de 17 mil famílias - segundo estimativas do Ministério da Educação - que mantêm seus filhos em regime de educação domiciliar deixem de estar na informalidade.
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Apesar disso, o texto que está prestes a ser votado tem sido alvo de contestações por parte de famílias educadoras e de associações representativas. Itens como a obrigatoriedade de ensino superior a pelo menos um dos pais e a perda do direito à educação domiciliar para estudantes que reprovarem em dois anos consecutivos ou em três anos não consecutivos na avaliação anual prevista no texto têm sido questionados.
Por outro lado, há também famílias e entidades defensoras do homeschooling que, mesmo avaliando a redação do PL 3179/2012 como rigorosa, enxergam na proposta a única forma possível de haver uma regulamentação para a modalidade.
O que diz o texto substitutivo
Embora não haja lei que proíba o homeschooling e a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2018, considera que a modalidade não é inconstitucional, a educação domiciliar não consta na Lei 9.394/1996 – conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Além disso, a redação atual do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 55º, diz que “Os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Para os pais e responsáveis, a informalidade significa estar à mercê de denúncias pelo crime de abandono intelectual, previsto no artigo 246 do Código Penal.
Em maio deste ano, a deputada Luisa Canziani (PTB-PR), relatora do PL 3179, apresentou o texto substitutivo à proposta original. A redação propõe alterar a LDB adicionando a previsão à educação básica domiciliar “por livre escolha e sob a responsabilidade dos pais ou responsáveis legais pelos estudantes”; e adicionar também um dispositivo no ECA.
Os critérios para manter estudantes no homeschooling, no entanto, são variados. Veja a seguir os principais pontos da proposta:
- Obrigatoriedade de matrícula do estudante em uma escola (pública ou particular);
- Avaliação anual de aprendizagem do estudante a ser realizada pela escola em que estiver matriculado;
- Envio de relatórios bimestrais à escola pelos pais ou demais responsáveis legais;
- Registro, feito pela escola, de frequência da criança ou adolescente às atividades feitas na educação domiciliar;
- Comprovação de escolaridade de nível superior por pelo menos um dos pais ou responsáveis legais pelo estudante;
- Cumprimento dos conteúdos curriculares referentes ao ano escolar correspondente à idade do estudante, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular, admitida a inclusão de conteúdos curriculares adicionais pertinentes;
- Avaliação semestral do progresso do estudante com deficiência ou transtorno global de desenvolvimento por equipe multiprofissional e interdisciplinar da rede de ensino da escola em que estiver matriculado;
- Previsão de inspeção educacional, pelo órgão competente do sistema de ensino; e de fiscalização, pelo Conselho Tutelar, no ambiente em que a criança ou adolescente estiver recebendo a educação domiciliar;
- Perda do direito ao homeschooling para estudantes: que reprovarem em dois anos consecutivos ou em três anos não consecutivos na avaliação anual prevista; cujas famílias descumprirem as diretrizes do Conselho Nacional de Educação (CNE) as normativas locais – ambas a serem definidas – sobre a modalidade; ou quando o responsável legal direto for condenado ou<br /> estiver cumprindo pena por crimes previstos no texto substitutivo.
O que dizem as associações de homeschooling e as famílias associadas
Enquanto parte das entidades que atuam em defesa da educação domiciliar e de grupos de famílias educadoras avaliam que a aprovação de uma regulamentação, ainda que não seja a ideal, é o mais importante atualmente para retirar milhares de famílias da informalidade, outra parcela avalia que o texto é inadequado e pode causar ainda mais prejuízos às famílias que aderem à modalidade.
Para Diego do Nascimento Vieira, presidente da Associação de Famílias Educadoras de Santa Catarina (Afesc), o texto da deputada Luisa Canziani não traz às famílias educadoras liberdade nem segurança jurídica. “O PL é muito restritivo e não está em conformidade com a realidade das famílias brasileiras. Só a exigência do nível superior dos pais já impossibilitaria a maioria delas de fazer homeschooling”, afirma. Ele diz que, caso o projeto de lei seja aprovado como está, uma parte significativa das famílias associadas à Afesc permaneceria em condição irregular.
Em enquete elaborada pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) entre os dias 26 de junho e 2 de julho de 2021, que teve a participação de 2.888 pais, mães e responsáveis legais adeptos do homeschooling, 75% disseram ser preferível permanecer mais tempo sem uma regulamentação do que ter uma regulamentação muito restritiva; 25% disseram preferir uma lei, ainda que não a ideal, do que continuar na informalidade. Na mesma pesquisa, 89% declararam ser contrários à obrigatoriedade do ensino superior, e 69% disseram ser contra o cancelamento compulsório do exercício da educação domiciliar em caso de reprovação por dois anos consecutivos.
Em documento no qual apresenta sugestões de alterações ao texto substitutivo, a Aned aponta as mudanças que entende serem necessárias para que “a liberdade educacional seja reconhecida e seja exercida de forma justa, isonômica e desburocratizada”.
Alguns exemplos das mudanças apontadas pela entidade são:
- Retirada da comprovação, pelos pais, do ensino superior como condição para o exercício da educação domiciliar;
- Remoção da perda compulsória do direito à modalidade a partir da reprovação consecutiva;
- Substituição da palavra “escola” por “instituição”, permitindo que os estudantes possam estar vinculados a entidade certificadoras em vez de exclusivamente em escolas;
- Alteração da periodicidade dos relatórios de atividades de bimestral para semestral;
- Retirada a previsão de inspeção educacional pelo órgão competente do sistema de ensino e de fiscalização, mantendo a fiscalização por parte do Conselho Tutelar;
- Remoção da previsão de diretrizes gerais posteriores a serem editadas pelo CNE e pelas redes de ensino locais, bastando a lei regulamentadora em questão.
De acordo com Carlos Vinícius Reis, diretor de relações institucionais da Aned, as reivindicações acima foram levantadas a partir das demandas de famílias educadoras num processo de busca de melhorias.
“Não temos expectativas de um projeto de lei ideal. Mas não pode haver, por exemplo, tratamento discriminatório e desigual entre estudantes escolares e domiciliares, como se os do segundo grupo tivessem menos direitos”, afirma Reis.
Quanto à exigência do nível superior – que é o principal ponto de discordância ao texto – ele aponta que isso manteria um grande número de famílias na irregularidade e atenderia apenas a uma elite. “Apenas 17,4% da população brasileira tem superior completo, segundo o IBGE. Essa exigência de formação ocorre enquanto nem mesmo todos os professores em sala de aula no Brasil atualmente possuem tal titulação. Na Bahia, 40% dos pais que praticam educação domiciliar não têm ensino superior e permaneceriam na informalidade mesmo com a aprovação da proposta”, diz o representante da Aned.
Já o presidente da Afesc argumenta que o cancelamento automático do exercício da educação domiciliar nos casos específicos de reprovação já citados, bem como a maneira prevista para as avaliações nas escolas, também integram os principais motivos de insatisfação de uma parcela das famílias associadas. “Quanto ao cancelamento automático, nós temos a segurança de que as famílias educadoras têm dado uma educação de qualidade e também não somos contra a avaliação por parte do poder público. Mas se a reprovação vier a acontecer, especialmente quanto às crianças com necessidades especiais, esse cancelamento seria injusto”, aponta Vieira. “Hoje, se um aluno reprovar dois anos seguidos, ele não é obrigado a trocar de escola, e a escola não sofre nenhuma penalidade. Isso denota um preconceito contra as famílias educadoras”, reforça.
Associação de educação domiciliar do DF rebate críticas da Aned e demais entidades
Na contramão das associações e famílias contrárias à aprovação do texto substitutivo do PL 3179/2012 da forma atual estão entidades como a Associação de Famílias Educadoras do Distrito Federal (Fameduc-DF).
De acordo com Jônatas Dias Lima, presidente da associação, apesar de a redação da proposta estabelecer normas rigorosas, permanecer por mais tempo sem uma lei regulamentadora é “o pior dos mundos” para todos os envolvidos. As famílias que já são adeptas, que permaneceriam mais tempo como infratoras do ECA e da LDB; as que querem aderir, que prosseguirão sem a segurança jurídica para fazê-lo; e os agentes públicos, que permanecerão sem condições de mensurar a qualidade do ensino que essas crianças recebem e se seus direitos estão sendo preservados.
“O relatório resolve o principal, que é alterar a LDB e o ECA para que a modalidade seja inclusa na legislação brasileira. Ao mesmo tempo, inclui dispositivos que garantem a necessária proteção às crianças e aos adolescentes socialmente vulneráveis e que poderiam vir a ser vítimas de verdadeiros casos de abandono intelectual”, diz Lima.
Para ele, um texto mais flexível dificilmente encontraria consenso da maioria dos deputados a fim de viabilizar a aprovação da proposta. “Acredito que o relatório da deputada Canziani é, politicamente, a opção mais viável, pois é o que tem mais condições de obter adesão não apenas entre os parlamentares conservadores e de direita, mas também do centro e centro-esquerda. O texto, da forma como a Aned deseja, nós sabemos que não passa; é inviável e acaba atrapalhando a possibilidade da existência de uma lei”, ressalta.