Fraude
substantivo feminino
1. qualquer ato ardiloso, enganoso, de má-fé, com o intuito de lesar ou ludibriar outrem, ou de não cumprir determinado dever; logro (Dicionário Houaiss).
Então o governo Lula, apoiado pelo Senado Federal, resolveu encampar a ideia “genial” de forçar o pagador de impostos, que já sustenta o sistema público de educação, a pagar uma mesada e uma poupança extra para estudantes pobres permanecerem na escola pública até o final do ensino médio. Mesmo que os estudantes não aprendam nada. Também vamos pagar para que os estudantes que concluem o ensino médio participem do Enem. Inclusive – ou principalmente – para os estudantes que, aos 17 anos, ainda são analfabetos funcionais.
Parece uma ideia despropositada? É pior do que isso. É uma fraude e explico os porquês.
A ideia é implementar um programa de permanência no ensino médio, com bolsas mensais e uma poupança para reduzir a evasão escolar de estudantes pobres. Considerando que um número significativo de estudantes abandona os estudos porque precisa trabalhar, o governo pretende criar incentivos para que esses estudantes continuem na escola. O primeiro problema é – o que essa escola tem para oferecer a esses jovens?
Para se ter uma ideia, uma das condicionantes para o estudante ter acesso aos recursos do programa é a aprovação ao fim do ano letivo. Em tese, essa condicionante parece estar associada à expectativa de que só será beneficiado quem tiver o nível de aprendizado adequado das matérias escolares. Ou seja, seria um estímulo para o jovem se dedicar aos estudos. Ora, mas na verdade, qual é o risco de não ser aprovado? No 3º ano do ensino médio, só 31% dos estudantes têm nível de aprendizado adequado para a série em português. Em matemática, são míseros 5%. Ainda assim, apenas 6% são reprovados. Ao contrário da possível expectativa do governo, provavelmente o programa servirá como um incentivo a mais para aprovar automaticamente estudantes despreparados.
A verdade é que os alunos já chegam ao ensino médio com defasagem de aprendizagem; uma mesada e a perspectiva de uma poupança não vão mudar esse quadro. Mesmo que o programa estimule o estudante a concluir o ensino médio, nada sugere que ele sairá mais preparado do que os que saem hoje. Os planos do governo federal para a educação demandarão um aumento expressivo de gastos, particularmente no caso do ensino em tempo integral. No entanto, não representam qualquer expectativa de melhora da realidade porque nada relevante será alterado:
- As escolas públicas continuarão a ter o monopólio dos recursos públicos da educação. Seguirão sem concorrência real e sem prestar contas a quem as sustenta: o pagador de impostos.
- O novo Ensino Médio, se aprovado como o governo propôs, continuará dificultando o acesso de estudantes a cursos técnicos e voltará a impor um número excessivo de horas e disciplinas sem qualquer efeito educacional real. Afinal, como visto acima, a maior parte dos estudantes do ensino médio sequer entende o que lê.
- Teremos os mesmos professores, formados e capacitados a partir do mesmo currículo, baseado em pseudociência socioconstrutivista e marxismo identitário (Wokismo).
- Os novos professores continuarão a ser selecionados dentre os piores alunos do ensino médio.
- Continuaremos sem incentivos para a excelência docente já que ser um professor excelente não se traduz em melhores salários, e o despreparo ou descompromisso não levam a demissões.
- Os professores alfabetizadores continuarão sendo ensinados a ignorar o que as ciências cognitivas estabeleceram há décadas como o método mais adequado para alfabetizar. Ou seja, um percentual expressivo de estudantes, principalmente dentre os mais pobres, continuará chegando ao ensino fundamental 2 sem estar adequadamente alfabetizado.
- O nível de tolerância com a indisciplina e a violência dos estudantes continuarão impedindo professores de ensinar e estudantes interessados de aprender. Aliás, a tendência é isso piorar: com o incentivo financeiro para não faltar aulas ou evadir, estudantes violentos, indisciplinados e/ou desinteressados provavelmente serão mais numerosos nas salas de aulas.
- Idiotizados pela ideia de que cabe ao Estado prover educação “pública, gratuita e de qualidade”, a maioria dos pais e mães continuará terceirizando para a escola a educação dos seus filhos e acreditando nas boas intenções de populistas que propõem medidas salvadoras custeadas com o seu dinheiro.
- Em relação ao currículo, continuaremos pouquíssimo ambiciosos quanto ao potencial dos estudantes do ensino fundamental.
- O Enem seguirá sendo basicamente a única porta de entrada para universidades federais. Isso significa que continuará pautando o que é ensinado nas escolas, do que se aproveitarão os ideólogos para impor a agenda Woke.
- O documento referência proposto pelo governo federal para o Plano Nacional de Educação do próximo decênio estabelece que metas de aprendizagem sejam substituídas por educação de “qualidade social” – “diversidade”, “equidade” e “inclusão” – no lugar de meritocracia. Ou seja, as perspectivas são de resultados de aprendizagem ainda mais baixos do que ora temos.
- Organizações da sociedade civil e sindicatos ligados à educação – ou não –continuarão determinando políticas educacionais. Exemplos de entidades que contribuíram para o documento referência citado acima são a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), o Centro de Estudo das Relações do Trabalho e Desigualdades (CEERT), a União Brasileira de Mulheres (UBM), e a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), dentre outros sem qualquer relevância para a qualidade da educação.
Segundo Fernando de Holanda Barbosa, pesquisador sênior do Instituto Brasileiro de Economia (FGV Ibre), “qualquer ação que promova a qualificação de jovens no Brasil que não esteja alinhada com o mercado de trabalho será desperdício de recursos.” Não é apenas que a qualificação provida no ensino médio no Brasil não está alinhada com o mercado de trabalho. Como nos mostram os baixíssimos percentuais de aprendizado adequado, de modo geral, a qualificação provida é praticamente inexistente. E de onde virão os recursos que serão desperdiçados nessa fraude se não das famílias dos próprios supostos “beneficiários”?
Para piorar, com o intuito de apoiar a iniciativa do governo, o Senado aprovou um projeto que determina que os recursos – públicos – do Fundo Social usados para custear despesas com o programa não serão incluídos nos limites de gastos previstos para este ano. Pergunta: quem será afetado de forma mais contundente pelos efeitos do rombo fiscal que o Senado está ajudando a aumentar? Ora, os mesmos que o governo federal supostamente pretende “beneficiar” com o seu programa de incentivo. Os mais pobres pagarão mais, seja através da inflação, seja através do impacto dos impostos sobre serviços, seja através do aumento do desemprego.
Os valores previstos para esse programa representam o maior montante entre as políticas apresentadas pelo governo Lula na educação, como a da expansão de alunos em tempo integral e o compromisso de alfabetização na idade certa. Segundo simulação do MEC, o programa custaria R$ 10 bilhões por ano. Considerando os altos custos envolvidos e sabendo que o aumento do nível de escolaridade está relacionado ao aumento de remuneração ao longo da vida e à diminuição nos índices de criminalidade, cabe a pergunta: uma vez estabelecidas as metas relativas a esses fins – se é que serão estabelecidas quaisquer metas – qual será a responsabilização dos agentes públicos envolvidos caso elas não sejam atingidas dentro do prazo previsto? Evidentemente, nenhuma. Zero.
Segundo os autores da síntese de evidências mencionada pela Folha de São Paulo como referência para esse programa, “é possível que, em regiões mais pobres, gastos em infraestrutura sejam mais importantes para aprendizagem que incentivos financeiros aos alunos. Por isso, parece improvável que uma política nacional de incentivos com desenho único gere custo-benefício em todos os contextos locais.” Ou seja, mesmo do ponto de vista de comprovação a partir de evidências, a política proposta não se sustenta. Considerando o custo altíssimo envolvido, pagar para estudantes – ainda mais estudantes extremamente pobres – desperdiçarem três anos de suas vidas frequentando escolas de baixíssimo desempenho, sem qualquer ‘accountability’, não parece minimamente razoável.
Se o governo federal quisesse adotar um sistema de bolsas educacionais eficaz e com efeitos fiscais positivos, poderia testar o modelo de ‘Education Savings Accounts’, adotado por diversos estados americanos. Resumidamente, nesse modelo de financiamento, cerca de 90% dos recursos estaduais destinados à educação de um estudante são depositados em uma conta poupança no seu nome. Esses recursos, normalmente utilizados através de um cartão de débito, podem ser alocados pelos pais para ajudar a custear uma variedade de produtos e serviços educacionais autorizados pelo estado, além de mensalidades escolares. Por exemplo, os pais podem gastar em livros, aulas particulares, cursos online, terapia educacional e equipamentos para crianças com deficiências e material para homeschooling. Podem mais: podem economizar os recursos para pagar uma universidade.
A verdade é que a própria motivação alegada pelos proponentes do programa de incentivo à permanência em escolas disfuncionais também é fraudulenta, pois os estudos que mostram o impacto de políticas de escolha da escola na promoção dos efeitos positivos para a sociedade são muito mais robustos (revisões literárias, estudos individuais padrão ouro, etc.) do que os que relacionam incentivos financeiros à redução da evasão escolar. Alguns exemplos são os estudos que mostram o impacto na redução do absenteísmo e aumento a taxa de conclusão do ensino médio, na melhoria do desempenho de estudantes pertencentes a minorias, na mobilidade social, na renda, no engajamento cívico, na tolerância, na redução de criminalidade juvenil (1, 2, 3), na promoção de paz social e na redução de gravidez na adolescência (4, 5, 6).
Uma alternativa para o Brasil
No caso do Brasil, poder-se-ia adaptar o modelo de poupança educacional americano transferindo para os mais pobres 100% do que o Estado gasta com cada um na escola pública: 90% para serem usados em produtos e serviços educacionais autorizados, como no modelo americano, e 10% como apoio para o estudante.
Segundo dados da OCDE (2023) o Brasil investe por aluno da Educação Básica, cerca de US$3.000 por ano, o que equivaleria a cerca de R$1.200/mês em valores de hoje. Partindo desse valor, estudantes pobres do ensino médio receberiam R$1.080/mês para investir em sua capacitação, adquirindo serviços ou produtos educacionais autorizados pelo estado e uma mesada de R$120/mês. Menos do que os R$167/mês estimados pelo governo federal para seu programa de incentivo, mas sem qualquer peso extra para os pagadores de impostos – dentre os quais se incluem as famílias desses mesmos estudantes.
O valor também não inclui a poupança de R$ 3.000 para os estudantes que estejam vinculados ao programa do governo federal durante os 3 anos do ensino médio. No entanto, como na alternativa proposta aqui os estudantes não seriam obrigados a passar 5 horas dos seu dia, durante 3 anos, em uma escola onde não aprendem, já sairiam no lucro. Além da possibilidade de usar os recursos para ajudar a pagar uma escola privada focada em disciplinas acadêmicas, estudantes poderiam alternativamente investir em um curso técnico, em aulas particulares e/ou em tecnologias de aprendizagem adaptativa que os ajudaria no resgate de conteúdos que já deveriam ter adquirido. Matemática, por exemplo. Havendo um potencial mercado, não há dúvidas que modelos alternativos acessíveis de cursos que oferecessem um mix disso tudo estariam disponíveis para atender a esses estudantes.
Conclusão
O programa de incentivo à permanência de estudantes no ensino médio do governo federal é uma fraude em várias dimensões. Ao invés de permitir que jovens usem os recursos já disponibilizados para a sua educação junto a provedores educacionais que atendam às suas demandas, o programa cria incentivos para tornar esses jovens reféns de escolas onde não aprendem. Mesmo para promover maior nível de escolaridade e reduzir os comportamentos de risco associados à evasão, as evidências de sucesso de modelos alternativos de financiamento através de escolha da escola são muito mais robustas do que as associadas a programas de incentivo como o proposto pelo governo brasileiro.
Além disso, parece claro que há outras motivações. Para o sistema, é interessante que estudantes não evadam, pois a mera possibilidade de mais estudantes significa uma justificativa para mais recursos, mais professores contratados, mais escolas construídas, mais cargos administrativos, mais favores a serem trocados por votos, etc. Pouco importa que os estudantes não atinjam seu potencial, ou mesmo que não aprendam o que quer que seja. Como sabemos que não haverá metas claras e diferenciadas para contextos diferentes, não haverá monitoramento criterioso e muito menos responsabilização por resultados negativos.
Outras consequências potencialmente graves dos incentivos perversos criados também não parecem importar. Possivelmente, o interesse em receber o incentivo financeiro não será acompanhado de interesse pelas aulas que os “beneficiários” do programa serão obrigados a frequentar. Jovens desmotivados, despreparados, provavelmente entediados, presos em uma sala de aula. Sinto pela professora e pelos colegas interessados em aprender: muitos deles, pobres, mas não o suficiente para receber o benefício, embora suas famílias tenham que arcar com os custos do programa.
E, como destacamos acima, os supostos beneficiários desse programa são exatamente os mesmos de cujas famílias será exigido o maior esforço para financiá-lo. No entanto, para os políticos, programas fraudulentos como esse representam a chance de parecer comprometidos com o futuro dos jovens mais vulneráveis e com o desenvolvimento do país. Criaram o caos e agora vão vender muito caro falsas soluções.
Em última instância, esse programa é uma fraude porque além de não trazer quaisquer benefícios, alimentará uma fraude maior: o nosso sistema educacional. Os recursos que já são tomados de pagadores de impostos – sob a justificativa de educar crianças e jovens – continuarão a atender basicamente aos interesses dos sindicatos, que tudo fizeram para manter escolas fechadas, prejudicando principalmente os estudantes mais pobres. Além deles, outros grupos de interesse se beneficiam do sistema, como ONGs estrategicamente vinculadas ao ensino estatal e empresas, como grandes editoras que têm contratos milionários com o Estado. Os estudantes, que deveriam ser a razão de ser – o fim – do sistema educacional, continuarão a ser apenas o meio para a manutenção do sistema. Se isso não é fraude, nem eu, nem o dicionário Houaiss sabe o que é.
* Anamaria Camargo é mestre em Educação pela Universidade de Hull e Presidente e Diretora Executiva do Livre pra Escolher.
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