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John Corcoran: de aluno-problema a exemplo.
John Corcoran: de aluno-problema a exemplo.| Foto: Reprodução

Aos 48 anos, o americano John Corcoran era um empresário bem-sucedido do ramo imobiliário. Com um diploma universitário, ele foi professor de estudos sociais por 17 anos. Só depois disso é que ele aprendeu a ler de fato. Hoje, no comando da fundação que leva o seu nome, ele tenta chamar atenção para o analfabetismo funcional entre adultos nos Estados Unidos – que, segundo alguns cálculos, chega a 50%. Nos próximos meses, a fundação vai lançar um documentário em que conta as histórias de adultos que, assim como Corcoran, escondem esse segredo.

A mensagem é simples e poderosa: praticamente todas as pessoas podem aprender a ler, e o excesso de compaixão, a negação da realidade e o rebaixamento das expectativas causam um dano de proporções gigantescas. Em entrevista à Gazeta do Povo, Corcoran diz que as universidades americanas não fazem um bom trabalho ensinando professores a ensinar a ler. E que as autoridades americanas preferem não falar sobre o problema do analfabetismo adulto – da mesma forma que ele escondeu o seu problema pessoal por décadas.

Quando você decidiu buscar ajuda para o seu problema com a leitura?

John Corcoran: Na verdade, começou com a Barbara Bush, que era a primeira-dama. Ela tomou para si a causa da alfabetização adulta e, naquela época, eu a vi na televisão. Eu era uma pessoa sofisticada, tinha bastante conhecimento, mas, quando se tratava de leitura, eu ficava na defensiva: "Não vou deixar ninguém se aproximar e ver esse problema." E eu estava assistindo à primeira-dama falar na TV o problema. Ela estava convidando os adultos a aprender a ler. Havia milhões de adultos que não sabiam ler, e cada um tinha uma experiência diferente.

No fundo é a mesma história: não conseguimos ler e encontramos maneiras de contornar isso. E quando você é um adulto nessa situação, você já desistiu. Você já tentou 1.001 maneiras. Para mim, e acho que para milhares de adultos com quem falei, a verdade é que desistimos um pouco de nós mesmos. Aceitamos a grande mentira de que algo está errado com nosso cérebro e simplesmente não conseguimos aprender. E não contamos a ninguém sobre isso, porque é muito constrangedor. Muitas vezes as pessoas me perguntam por que não pedi ajuda. A quem eu deveria pedir ajuda? Não existia um programa para ajudar as pessoas.

E o que aconteceu em seguida?

John Corcoran: Quando vi Barbara Bush na televisão, foi a primeira sementinha. E, algum tempo depois, eu estava no mercado e havia duas mulheres na minha frente falando sobre o irmão de uma delas ir à biblioteca, que ficava do outro lado da rua da mercearia, para aprender a ler. Essa foi mais uma sementinha.

As pessoas me perguntam: “O que foi que te fez querer aprender a ler?” Na verdade, eu queria aprender desde os 5 anos. Minha mãe me mandou para a escola para aprender a ler, mas não deu certo. E, em uma tarde de sexta-feira, já adulto, tive um tempo livre, coloquei meu terno, entrei no meu Mercedes e fui até a biblioteca. Entrei e pedi para falar com a diretora, mas ela não estava. Eu estava finalmente ultrapassando as minhas barreiras. “Vai ser agora. Quero saber o que eles têm a me oferecer.” E assim foi. Depois de 48 anos.

Não foi algo que aconteceu de repente. Estava dentro de mim. Eu tive a sorte de me aproximar de uma mulher de 65 anos que era voluntária na biblioteca e achava que ninguém deveria passar a vida sem aprender a ler. E ela não era professora. Ela não conhecia a ciência disso. Pensando hoje nisso, eu a chamo de “motorista da ambulância”.

Ela me levou à clínica de leitura, onde fiz alguns testes de diagnóstico que nunca tinha feito antes, e descobri que eu tinha um problema grave de processamento auditivo. Mesmo que você usasse o método fônico comigo, eu não conseguia distinguir os sons. Eu era um construtor e empreiteiro naquela época, construía casas, e sabia que a eletricidade tinha um sistema. Mas eu achava que a linguagem era muito complicada e complexa. Até que fosse identificado um problema de processamento auditivo, e aí eu recebi um tratamento para isso.

A consciência fonêmica é mais do que apenas a fonética. Havia 44 sons no idioma inglês que eu não conseguia distinguir para decodificar e, quando que esse problema foi identificado, a ciência já estava mais avançada para me ajudar. Eu podia ouvir, mas não conseguia distinguir os sons. Por exemplo, ela me ensinou como eu fazia sons com a boca, como o som de “m”. E eu não conseguia.

Ela dizia, "Que é essa letra?" E então me fazia notar que o ar saía de certo modo pelo meu nariz, e esse era o som m. Assim, o meu cérebro captou isso. E a partir dali eu soube que podia distinguir esses sons e decodificar palavras, mas ainda não sabia como combinar os sons. Isso é o que eles aprendem na primeira e na segunda séries: a formação de palavras. Esse é o nível em que eu estava. Passei cerca de 100 horas com aquela senhora mapeando esse código, e fui da habilidade de um aluno da segunda série para o nível de alguém no último ano do ensino médio. Era o milagre pelo qual eu estava orando. É possível para qualquer um.

Então você escondia de todos a sua incapacidade de ler?

John Corcoran: Minha história pessoal foi muito bem escondida. Eu escondia um segredo. Minha esposa era a única pessoa que sabia que eu não sabia ler. E me formei na faculdade, dei aula na escola. Foi uma história vergonhosa e embaraçosa que eu escondi, e os Estados Unidos da América também fazem o mesmo. Eles têm o mesmo segredo que não contaram. Eles realmente não dizem o quão ruim é o problema.

Não vamos consertar a educação se metade das pessoas saírem do sistema educacional com habilidades de leitura de nível elementar. O idioma dominante para o sucesso na sala de aula é ler e escrever. Nos primeiros 3 anos, vamos à escola para aprender a ler. Lemos para aprender e pelo resto de nossas vidas é isso que fazemos. É realmente fundamental. É o coração da educação, e se o coração não estiver funcionando para metade das pessoas, temos um problema sério. É uma epidemia. Estamos tentando quebrar esse ciclo de fracasso.

Temos que ensinar os professores a ensinar a ler. Eles hoje se formam na universidade e nunca aprenderam a ensinar ninguém a ler.

Você acha que existe uma falta de interesse em tratar o assunto com a atenção que ele merece?

John Corcoran: Sim, eu acho. E é realmente uma coisa cultural. Minha professora e eu gravamos muitas sessões de treinamento, e eu mostrei para alguns amigos meus e eles disseram. “É tão chato assistir a isso”. E eu digo: “Esta é a melhor coisa que já aconteceu comigo na minha vida!”.

É como aprender a tocar violão. Está tudo bem, na primeira vez que você pega e quer tocar, e você vai aprendendo, então continua. Isso é difícil, e os professores acham muito chato. Mas não, não é chato para mim. Eu sou o estudante. É chato para você, professor, porque você tem que passar por isso comigo. É um trabalho árduo aprender a tocar violão. É difícil trabalhar para tocar piano. É um trabalho árduo fazer muitas coisas, e algumas pessoas têm uma aptidão ou um pouco melhor do que outras. Mas a boa notícia é que agora sabemos como ensinar pessoas como eu a ler. Se eles tivessem me ensinado aos 8 anos em vez de aos 48, eu não teria sido tão louco na escola.

Felizmente não fui para a cadeia porque minha família era muito sólida. O meu problema era com a escola. Era lá que eu tinha meus problemas. Percebi que estava perdendo todas essas batalhas e decidi: “Eu vou por outro caminho aqui. Eu vou mentir e trapacear”. Digo isso sem nenhum prazer.

Veja os dados atuais da Califórnia. Hoje, 85% dos adolescentes que estão enfrentando problemas com a Justiça têm um nível de leitura de segundo ano do ensino fundamental ou pior. Enquanto isso, ainda estamos tentando descobrir qual é a definição de analfabetismo. Nós focamos em questões menores em todo esse processo. Não temos liderança. Eu sei que existe uma solução. As pessoas que lidam com isso não são pessoas más. Elas não estão fazendo isso intencionalmente. Os professores não acordam de manhã e dizem: “Vou estragar a vida daquele garoto e garantir que ele vá para a cadeia”. Hoje, 70% das pessoas que mandamos para nossas prisões têm deficiências nas habilidades básicas de leitura e escrita.

Você defende que se utilize o método fônico de alfabetização em vez do método global?

John Corcoran: Eu acho que a fonética é um componente, e serve como um rótulo. Se fizemos algo certo nos Estados Unidos, nos últimos 25 anos, foram as pesquisas sobre a ciência da leitura. Existe uma ciência nisso, e a chave para ensinar a ler para crianças, adultos ou adolescentes é a instrução adequada. E isso vem de professores ou pais devidamente treinados. Nós, há 60 anos, não sabíamos como o cérebro humano adquiria a palavra escrita e, por isso, criamos um nome para essas pessoas com dificuldades como eu: chamamos de déficit de aprendizagem. Eu tinha um problema grave de discriminação auditiva, e nosso idioma é uma língua fonética. Nas pesquisas nos últimos 25 anos, chegamos à conclusão de que 97% dos seres humanos podem aprender a ler com a instrução adequada. A parte importante aqui é: o que é a instrução adequada? E isso não envolve apenas a fonética. Há muitas outras coisas que vêm junto com isso, mas definitivamente não inclui a abordagem do método global.

Qual é o objetivo do documentário que a Fundação John Corcoran vai lançar?

John Corcoran: É preciso contar a história e incluir a ciência. Você pode fazer uma palestra, falar e envolver emocionalmente uma pessoa na história. Mas quando ela vai embora, ela quer saber como podemos resolver o problema. E é isso que tentamos fazer com o filme. Queremos mostrar histórias interessantes, a que as pessoas vão prestar atenção. E há muita ciência também. Você assiste ao filme para se divertir e para aprender alguma coisa. Pela graça de Deus, encontramos o Nick Wanton, que é um contador de histórias fantástico e ganhou 24 Emmys. Ele desenvolveu uma paixão pelo assunto. O filme tem 90 minutos e está 98% pronto.

Qual público vocês têm em mente?

John Corcoran: A ideia é atingir o público geral. Estamos contando histórias humanas para que as pessoas possam se identificar. Isso é o que Nick disse. Quando começou este projeto, ele não tinha ideia do quão profundo e amplo era o problema. E conversando com amigos sobre este projeto, ele notou que quase todos se interessavam porque tinham um filho, um primo, alguém cuja qualidade de vida melhoraria se soubesse ler. Meu objetivo é sempre contar ao mundo. Como João Batista [do Evangelho de São João]. Vá, conte tudo e então você descobrirá que alguns nunca entenderão, e alguns entenderão. Portanto, eu gostaria que todos vissem o filme, especialmente os pais. Uma coisa é falar sobre algo, outra coisa é contar uma história.

Mas qual você diria que é o maior problema, já que aparentemente não é a falta de recursos?

John Corcoran: Para resolver qualquer problema, você tem que articular o problema. E você tem que ser verdadeiro. Em minha própria jornada, era isso que eu precisava fazer. Eu tive que sair do escuro, jogar luz sobre isso e ser verdadeiro. Não temos sido sinceros nos Estados Unidos sobre isso, mas não por causa de alguma conspiração. É pura e simples ignorância.

Temos as melhores universidades do mundo, e os professores que formam professores não sabem como ensinar um menino como eu a ler. E ainda assim eles formam professores. Nós realmente temos que buscar a forma adequada de instrução, e isso está sempre em evolução.

A questão é: como as pessoas aprendem a ler? E como eu disse, voltando à ciência, podemos descobrir as respostas. O maior problema é implementá-las. Temos a resistência na velha guarda escolar. Existe uma cultura instalada, e é assim em qualquer instituição. Eles têm seu próprio bloqueio. É uma falha humana. O que temos agora é uma segunda classe de adultos que não sabem ler.

Não quero ser muito crítico. Mas, na minha vida, já tive muita raiva, certamente quando adolescente. Quando você é um adolescente e sabe que não pode atingir seus objetivos, você faz todo tipo de loucura. A maioria das crianças problemáticas na escola com certeza não sabe ler.

A minha filosofia como alguém que atua nesta área é a de “Não culpe, ensine.” E é isso que temos que fazer, e temos instituições nas quais temos que penetrar. Existem essas torres de marfim nas universidades que vão continuar com sua teoria. Há uma pequena brecha aqui e ali, mas eu digo que provavelmente cerca de 5% dos nossos formadores de professores universitários entenderam isso e estão se movendo nessa direção da ciência. Temos um longo caminho a percorrer. Tudo isso é uma pena, e é embaraçoso para quem não sabe ler. Não falamos sobre isso porque é um assunto delicado.

Isso também vale para as universidades e até mesmo para esta grande nação. Eles não podem dizer a verdade sobre isso. Eu amo os Estados Unidos e tenho paixão pela educação porque sei que ela é a chave para resolver muitos dos nossos problemas. Não se trata apenas de ler palavras, mas também de pensar e processar pensamentos. Quando aprendi a ler, percebi o quanto isso era poderoso para o indivíduo. Uma das piores coisas de não saber ler é depender de outras pessoas para obter informações. É muito limitante.

Você cita estatísticas impressionantes no documentário. Mas, claramente, o problema não é a falta de recursos. Por que o país mais rico do mundo não consegue alfabetizar efetivamente?

John Corcoran: Eu acho, e conheço programas de sucesso que fazem isso, que temos que parar de pensar que os seres humanos têm déficit de aprendizagem (em inglês, learning disabilities, que carrega o sentido de "incapacidade"). Se você coloca essa ideia na sua cabeça e articula isso verbalmente, acaba convencendo a pessoa de que ela é incapaz e não pode fazer algo. Temos que superar isso.

É uma mudança de atitude. Lembre-se do dado que acabei de lhe dar, de que o cérebro humano com instrução adequada pode aprender a ler. Nós chegamos a um ponto em que todo mundo algum transtorno. Bem, aprendi a contar dinheiro e a calcular o troco antes de ir para a escola. Eu fui para a escola, tinha habilidades matemáticas e cumpria os horários em dia, e a matemática é apenas outra linguagem. E então cometemos um grande erro nisso tudo: construímos toda uma indústria em torno de pessoas com déficit de aprendizagem. Além disso, estamos passando por uma fase que estamos procurando desculpas o tempo todo.

O dinheiro nunca teve a ver com o meu caso. Na América, despejamos dinheiro nesses problemas e simplesmente não conseguimos respostas para eles. A resposta é complicada, mas é muito simples.

Em primeiro lugar, temos que dar urgência a esse assunto e focar nele. Estou falando da cultura em si. Falei sobre a ciência, não porque sou um cientista, mas porque sou beneficiário dela. Aprendi a ler por causa da ciência e demorei 48 anos para descobrir.

Tive sorte de ir ao lugar certo e de encontrar a pessoa certa. Ela também se tornou uma mentora para mim e realmente me convenceu, e me disse: “Olhe para a ciência.” E eu pensei, “Existe uma história aqui a ser contada aqui. Por que não contamos ao mundo?” Os que controlam a informação, as pessoas que fazem a formulação de políticas, querem a ciência. Aqui e há alguma rejeição, mas está chegando lá. Se você seguir um pouco a ciência, ela se difundirá um pouco mais.

Temos que ensinar os professores a ensinar a ler. Eles hoje se formam na universidade e nunca aprenderam a ensinar ninguém a ler. Se eu estivesse supervisionando para as Universidades, eu diria: “Antes de você obter um diploma universitário — e é um homem que trapaceou para entrar na faculdade, que dá este conselho —, antes de você dar a alguém uma credencial de professor, você tem que demonstrar que podem ensinar uma criança a ler e um adolescente para ler e um adulto a ler. Esse é o requisito mínimo.” Precisamos continuar a articular o problema. Não podemos resolvê-lo até articularmos.

Falta uma medição adequada e avaliação de desempenho para professores nas escolas nos Estados Unidos, para poder avaliar o progresso ou a falta de progresso nesse campo?

John Corcoran: Ótima pergunta. Nós estamos mentindo e acobertando a realidade. Provavelmente metade dos estudantes está se formando no ensino médio sem estar preparadas para ir à faculdade, por causa da falta de leitura e compreensão. Eu testemunhei em primeira mão.

No estado da Califórnia, existem universidades e faculdades estaduais enormes. Elas sabem que esses jovens não estão preparados, que eles não sabem ler e não sabem escrever. Eles estão no nível elementar quando os colocamos no nível universitário, e eles não podem fazer o básico.

Você sabe o que fizemos no estado da Califórnia? Decidimos que não iríamos mais aplicar testes de admissão para as universidades. Não íamos fazer o que chamam de teste de nivelamento porque não queríamos saber o quão ruins eles eram. Você precisa estar preparado para isso para um nível superior, mas eles não querem saber disso. E assim baixamos os padrões no nível do ensino médio. Temos aprovação automática no nível universitário.

Olho para trás e digo o quanto trabalhei duro para conseguir um diploma universitário, o quanto trapaceei para conseguir um diploma. E agora eles abrem a porteira e simplificam muito as coisas para muitas pessoas como eu.

Nas universidades estaduais da Califórnia, abandonamos essa exigência dois anos atrás. E é lá que muitos dos professores vão para serem treinados. As universidades têm que se consertar assim como a segunda série que me instruiu. Está tudo conectado. Isso é que temos historicamente: os professores do ensino médio culpando os professores do ensino fundamental pelos alunos que não sabem ler. E os professores do ensino fundamental culpam os pais e as universidades. E todos decidiram que não vamos tratar disso. Só vamos fechar os olhos, como se fosse o problema de outra pessoa. É muito difícil dizer a verdade para alguém e para uma instituição que estão entrincheirados.

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